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A resposta divina ao problema emocional do mal

Arthur Henrique Soares dos Santos|

26/07/2024

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Arthur Henrique Soares dos Santos

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), graduado em Filosofia pela UFPA. Atua como professor no ensino básico.

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Como citar

Santos, Arthur H. S. A resposta divina ao problema emocional do mal. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Introdução

Diante do contexto de caos vivenciado pelo povo de Judá, Habacuque inicia seu lamento perguntando: “Até quando, Senhor, clamarei pedindo ajuda, e tu não me ouvirás?” (Habacuque 1.2 – NAA). O sofrimento do profeta se dá ao observar todos os grandes males que estavam presentes entre o povo. Ele contemplava violência, iniquidade, idolatria e opressão ao pobre. A desgraça era imensa. Por conta disso, Habacuque pergunta até quando Deus permitirá que isso ocorra. Não é o Senhor um Deus de bondade? Como pode esse Deus de bondade tolerar a opressão e a miséria? A questão do profeta não é apenas cognitiva, mas também – e talvez principalmente – emocional. Diante de um quadro semelhante, podemos ser levados a questionar do mesmo modo que Habacuque. Muitas vezes nos perguntamos: por que Deus permite o mal no mundo?

Todos esses questionamentos levam ao centro da nossa discussão: o problema emocional do mal. Afinal de contas, o mal não é apenas algo intelectualmente desconcertante para aqueles que sustentam proposições teístas; é também algo emocionalmente avassalador para muitos de nós, abalando até mesmo a fé daqueles que têm mais firmeza em Deus. Entretanto, o próprio Deus dá uma resposta a esse problema emocional, e, para o cristianismo, essa resposta passa por Cristo.

O problema do mal

Para nossos propósitos, é importante compreender o que é exatamente o problema do mal. Ele consiste em perguntar como pode existir um Deus inteiramente bom e todo poderoso ao mesmo tempo em que o mal existe. Essa dificuldade levou muitos a formularem argumentos contra a existência de Deus. Um exemplo é o filósofo John Leslie Mackie, que defendia a existência de uma contradição entre as proposições “Deus é onipotente”, “Deus é totalmente bom” e “o mal existe”.¹ É o que se costuma chamar em filosofia de argumento lógico do mal. Trata-se da afirmação de que a existência de Deus e do mal são contraditórias; portanto, como é óbvio que o mal existe, Deus não existe.²

Uma resposta clássica a esse argumento pode ser remetida aos trabalhos de Agostinho, para o qual o mal é resultado de um mau uso da liberdade dada por Deus. Portanto, sendo a liberdade um bem maior dado por Deus, não há contradição lógica entre a existência de Deus e a existência do mal. Nessa linha de resposta, há, por exemplo, a chamada “defesa do livre-arbítrio”, que foi desenvolvida com grande rigor por Alvin Plantinga³ e aceita até mesmo por muitos filósofos ateus e agnósticos.⁴ Obviamente, existem ainda outras respostas distintas ao problema. Há a proposta de John Hick de que estamos em um vale de formação da alma no qual o mal é necessário para alcançar um estado espiritual superior.⁵ Há ainda o teísmo cético de Stephen Wykstra, o qual alega que Deus tem alguma razão para permitir o mal, mas que não podemos saber tal razão, dada a nossa distância epistêmica em relação a Deus.⁶ Embora tenha minhas opiniões sobre tais respostas, este artigo não pretende se comprometer com a aceitação ou rejeição de nenhuma delas. Basta a suposição de que elas são respostas possíveis.

O problema emocional do mal

Contudo, dar uma resposta racional ao problema do mal não significa necessariamente aquietar o coração de uma pessoa que sofre com o mal no mundo nem significa levar a pessoa a vencer os obstáculos para crer num Deus bondoso que a ama. Afinal, para muitas pessoas, o problema do mal não é simplesmente intelectual, mas sim emocional. Muitos, inclusive, sentem amargura em relação a Deus por causa do mal e do sofrimento.

dar uma resposta racional ao problema do mal não significa necessariamente aquietar o coração de uma pessoa que sofre com o mal no mundo nem significa levar a pessoa a vencer os obstáculos para crer num Deus bondoso que a ama.

Essa questão não está ausente das Escrituras. Talvez a descrição mais intensa do problema do mal na Bíblia esteja espalhada ao longo do livro de Jó. Na trama, Jó perde seus filhos e todas as suas riquezas, bem como sua saúde. Em resposta, ele chega a dizer: “então saibam que Deus foi injusto comigo e me cercou com sua rede” (19.6 – NAA).

Sem dúvida, é possível que, diante de males terríveis, alguém possa abandonar o comprometimento com Deus. Diante de males horrendos, pode parecer que não há um Deus bom e poderoso que nos observa do céu. Talvez até haja, mas podemos sentir que há algo de repugnante nele. É possível ter a atitude de C. S. Lewis diante do luto e chamar Deus de “sádico cósmico”.⁷ Mas a boa notícia é que há no Evangelho uma resposta ao problema emocional do mal. O Deus triúno vai além das respostas filosóficas: Ele age na história para lidar definitivamente com o mal.

A resposta divina ao problema emocional do mal

Para compreendermos essa resposta divina ao problema emocional do mal, gostaria de começar com uma resposta filosófica: o supralapsarianismo de Plantinga. De acordo com ele, há algo no nosso mundo de grande valor: o inimaginável bem da encarnação e da expiação: “Jesus Cristo, a segunda pessoa da Trindade Divina, incomparavelmente bom, santo e sem pecado, estava disposto a se esvaziar de si mesmo, tomar nossa carne e se tornar encarnado, sofrer e morrer para que nós, seres humanos, possamos ter vida e ser reconciliados com o Pai”.⁸ O núcleo dessa resposta está no valor da encarnação e da expiação, que justificam Deus permitir o pecado e o mal no mundo a fim de efetivar o bem incomensuravelmente grandioso da redenção de criaturas pecadoras. Independentemente da eficácia ou não dessa tese como uma explicação do mal, ela lembra algo central: de um ponto de vista cristão, a resposta divina ao problema mal passa pelo Evangelho.

de um ponto de vista cristão, a resposta divina ao problema mal passa pelo Evangelho.

Isso tem uma grande relevância para o problema emocional do mal. Afinal de contas, a encarnação de Cristo tem em vista um objetivo específico: sofrer a morte de cruz. O Deus triúno das Escrituras se importa tanto com o nosso sofrimento a ponto de Ele mesmo vir a esse mundo para sofrer a morte de cruz. Como diz Plantinga, “Deus não fica de braços cruzados […]. Ele entra em nossos sofrimentos e deles compartilha. Ele sofre angústia ao ver seu Filho, a segunda pessoa da Trindade, entregue à morte amargamente cruel e vergonhosa na cruz”.⁹

Para o crente, isso muda tudo. Aos que sofrem, é dada uma notícia reconfortante: o próprio Deus decidiu se identificar com o nosso sofrimento. Porém, a história é ainda mais chocante quando lembramos que o sofrimento do homem-Deus Jesus Cristo é muito maior que qualquer coisa que possamos imaginar. E Ele sofre por uma humanidade pecadora, a fim de que a salvação seja alcançada para nós, de modo que sejamos eternamente unidos ao Deus triúno.

O crente “conhece o amor divino revelado na encarnação, o esplendor impensável do sofrimento e morte de Jesus Cristo, ele mesmo o divino filho unigênito de Deus, por nós”.¹⁰ Na cruz, contemplamos o Deus Encarnado que se dispôs a sofrer terrivelmente por amor a nós, a fim de que pudéssemos ser reconciliados com Deus. Afinal, “Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo” (2 Coríntios 5.19 – NAA). A relevância disso para o problema emocional do mal é a seguinte: “Leio acerca de mais uma atrocidade gigantesca e fico talvez abalado. Mas então penso na grandiosidade inconcebível do amor exibido no sofrimento e morte de Cristo […], e a minha fé pode ser restaurada”.¹¹

Mas a história do Evangelho não acaba na sexta-feira da crucificação: no domingo, Jesus Cristo ressuscitou, e essa ressurreição de Cristo aponta para o futuro. Afinal, como diz Paulo em 1Coríntios 15.21-22: “Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como, em Adão, todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” (NAA). A ressurreição de Cristo anuncia nossa ressurreição futura para vivermos no Reino que há de vir, pois Cristo voltará e irá redimir todas as coisas.

É por isso que Apocalipse 21.4 diz: “E [Deus] lhes enxugará dos olhos toda lágrima. E já não existirá mais morte, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram” (NAA). Assim, o problema emocional do mal é finalmente resolvido pela ação futura de Cristo na consumação – essa é a resposta divina de Deus ao problema emocional do mal. Talvez o crente não saiba exatamente o porquê de Deus permitir o mal, mas sabe que Deus dá uma solução concreta a esse problema, pois o próprio Deus intervém na história, compartilha de nossos sofrimentos para nos salvar e ressuscita ao terceiro dia nos anunciando o Reino que há de vir.

Talvez o crente não saiba exatamente o porquê de Deus permitir o mal, mas sabe que Deus dá uma solução concreta a esse problema, pois o próprio Deus intervém na história, compartilha de nossos sofrimentos para nos salvar e ressuscita ao terceiro dia nos anunciando o Reino que há de vir.

Podemos, então, lembrar um pouco de Jó. Após suas reclamações, Deus aparece a ele num redemoinho e pergunta: “Onde você estava, quando eu lancei os fundamentos da terra? Responda, se você tem entendimento” (Jó 38.4 – NAA). Por meio de uma série de perguntas, Deus deixa claro a Jó que ele não sabia tanta coisa e que as capacidades mentais humanas são pequenas demais comparadas a Deus. Na resposta final de Jó a Deus, o homem responde: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora os meus olhos te veem” (Jó 42.5 – NAA). Assim somos nós. Diante do mal e do sofrimento, talvez nos revoltemos contra Deus, mas Ele se manifesta a nós na pessoa de Cristo e nos aquieta o coração. É por isso que, além das respostas racionais da tradição cristã, temos também a ação divina na redenção para restaurar a fé diante do problema emocional do mal. Como dizem James Porter Moreland e William Lane Craig, “Deus é a resposta final para o problema do mal, pois ele nos redime do mal e nos leva à alegria eterna da incomensurável e agradável comunhão com ele”.¹²

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. John Leslie Mackie, “Evil and Omnipotence”, Mind, v. 64, n. 254, 1955, p. 200.

2. Há ainda o argumento evidencial do mal, o qual alega que a existência de Deus é improvável dada a quantidade e intensidade de certos males específicos. Por delimitação, esse argumento não será tratado aqui.

3. Alvin Plantinga, Deus, a liberdade e o mal, 2012.

4. Luís R. G. Oliveira, “Defending the Free Will Defense: A Reply to Sterba”, Religions, v. 13, n. 11, 2022, p. 1126-1138.

5. John Hick, O mal e o Deus do amor, 2018.

6. Stephen J. Wykstra, “The humean obstacle to evidential arguments from suffering: On avoiding the evils of ‘appearance’”, International Journal for Philosophy of Religion, v. 2, n. 1, 1984, p. 73-93.

7. C. S. Lewis, Anatomia de uma dor: um luto em observação, 2006, p. 59.

8. Alvin Plantinga, “Supralapsarianism, Or ‘O Felix Culpa’”, in Christian Faith and the Problem of Evil, 2004, p. 6.

9. Alvin Plantinga, “Self-profile”, in Alvin Plantinga: Profiles, 1985, p. 36.

10. Alvin Plantinga, Crença Cristã Avalizada, 2018, p. 484.

11. Plantinga, 2018, 485.

12. James Porter Moreland e William Lane Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, 2021, p. 849.

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