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A subcriação como resposta ao Criador

Rebeca Emanuele Arruda de Sousa Albuquerque|

02/01/2024

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Rebeca Albuquerque

Escritora de ficção, teóloga de formação, com pós-graduação em Educação Cristã Clássica e está atualmente cursando mestrado em Ciências das Religiões, com foco em estudar a mitologia grega a partir da perspectiva do autor J.R.R. Tolkien. No momento, ela está envolvida em uma pesquisa que explora a relação entre a literatura fantástica e o cultivo de virtudes.

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Como citar

Albuquerque, Rebeca Emanuele Arruda de Sousa. A subcriação como resposta ao Criador. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Ler Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental é como revisitar algumas histórias da Terra Média de J.R.R. Tolkien, que nos apresenta duas raças em seu mundo imaginário: os Elfos e os Orcs.

O primeiro grupo foi formado por Eru Ilúvatar, o Ser Supremo e onipotente que criou Arda, a Terra, de maneira excelente. A segunda raça, por sua vez, foi forjada por Melkor – ou Morgoth –, anteriormente próximo a Eru, mas que se corrompeu pela soberba ao desejar governar sobre todos. Os Elfos criaram coisas belas, como armas mágicas, belas canções e cidades para acolher e cuidar dos viajantes exaustos, assim como aquele que os criou, enquanto os Orcs, criaturas do Senhor do Escuro, encontram prazer em criar armas terríveis e causar destruição notável.

Norman Wirzba, teólogo e professor da cátedra Gilbert T. Rowe de Teologia Cristã na Duke University, acertadamente afirma que “o que você acredita sobre si mesmo molda seus comportamentos e crenças”.¹ Citando novamente o contraste existente entre os Elfos e os Orcs, a noção de quem os criou se aplicava ao que reproduziam diariamente: os Elfos, criados por um ser bom, praticavam o que era bom. Os Orcs, forjados pelo Primeiro Inimigo, deixavam um rastro de destruição e dominação completa.

Em nosso próprio mundo, Wirzba explica que assumir a condição de criatura em função daquele que nos criou altera a forma como vivemos, pois há uma lógica que interliga a Criação e a formação humana. Na Era Moderna, muitos veem o mundo como uma zona de extração, enquanto outros consideram o planeta Terra como um mero gerador de recursos naturais. Aqueles que acreditam na primeira definição podem se enxergar como simples aglomerados de células em processo de oxidação no mundo, enquanto os indivíduos que creem na segunda visão podem se posicionar como os proprietários e dominadores da fábrica – a Terra – dos recursos naturais, abusando, esgotando e fazendo mau uso dos materiais.

Quando os humanos controlam e governam o mundo como se fosse um espaço criado para essa atividade intensiva, os resultados se manifestam por meio de mudanças climáticas, danos nos habitats e aumento do aquecimento global; consequências de atos gananciosos e egoístas.

Se a sociedade enxerga a natureza como sua serva e o mundo como um “reino amoral que pode ser manipulado e explorado à vontade”,² o desdobramento apontado por Wirzba³ é o que entendemos como o Antropoceno: “os esforços humanos […] originaram e exigiram a destruição de lugares e comunidades”.⁴ Em maior ou menor escala, os sistemas planetários e biológicos continuam funcionando, no entanto, é possível observar na natureza os efeitos decorrentes da intensa atividade humana. O crescimento do Antropoceno e o anseio por uma vida transumanista, isto é, quando há o desejo de superar as limitações indesejáveis da condição humana, como o envelhecimento e as doenças, refletem uma antiga e profunda insatisfação humana, pois tanto um como o outro são resultados do desejo humano de viver em constante expansão, visando à superação das imperfeições.

Ao falar da relação de J.R.R. Tolkien com a tecnologia, W. Christopher Stewart resume o pensamento e o desejo transumanista ao afirmar que os seres humanos possuem o poder de alterar o clima, clonar a si próprios, prolongar a velhice e aniquilar povos inteiros com armas de destruição, mas questiona se a sabedoria do homem acompanhou o avanço de nossa tecnologia.⁵

A ciência sem sabedoria resulta, inevitavelmente, em hábitos comuns no Antropoceno de destruição, domínio e exploração intensa; os verdadeiros traços dessa era. No capítulo 1, Wirzba declara que os defensores dessa linha de pensamento estão confiantes de que “o conhecimento e a tecnologia, combinados com a sabedoria, podem permitir que o Antropoceno seja um período bom”, ou mesmo excelente, ao passo em que outras enxergam o Antropoceno como um período de “degradação da terra e dos sistemas de vida dos quais dependem todas as criaturas”, como menciona An ecomodernist manifesto.

O autor inova ao sugerir que a ação dos poderes exploratórios que produzem o Antropoceno não é algo novo e tem sido praticada ao longo do tempo, refletindo uma perspectiva equivocada que os humanos têm de si mesmos. É aqui que Wirzba introduz um ponto válido: a condição de criatura. Esse conceito relembra uma ideia que Tolkien aplica ao contrastar os Orcs e os Elfos.

Em seu ensaio “Sobre Estórias de Fadas”, Tolkien chama de “subcriação” toda a produção humana, porque “fazemos em nossa medida e em nosso modo derivativo, porque somos feitos, e não somente feitos, mas feitos à imagem e semelhança de um Criador”.⁶ Ao ser chamado de subcriador, o homem não assume o status de Criador, mas se vê como alguém que gera coisas de forma derivativa e dentro de sua própria medida, respeitando as obras daquele que o criou. Se o Criador cuida até dos corvos (Lucas 12:22-24), as suas criaturas humanas devem criar ambientes que abençoem esses animais. Se o Criador cuida dos lírios (Lucas 12:27-30), seus filhos não devem agir de maneira diferente.

Se o Criador cuida até dos corvos (Lucas 12:22-24), as suas criaturas humanas devem criar ambientes que abençoem esses animais. Se o Criador cuida dos lírios (Lucas 12:27-30), seus filhos não devem agir de maneira diferente.

A mesma distinção que Tolkien faz entre o poder, a saber, o domínio e exploração, e a subcriação, entendida aqui como a não dominação,⁷ se manifesta na obra de Wirzba. Aqueles que se veem como senhores totais – assim como os Orcs – inevitavelmente vão viver poluindo os mares, desmatando as florestas e esgotando os recursos. Por outro lado, aqueles que se reconhecem como criaturas – os Elfos – agirão de acordo com essa identidade, honrando a saúde ecológica, protegendo as florestas e procurando meios para não agredir e esgotar os recursos. Uma vez tendo sido criados por um ser corrupto que violou a ordem natural da Terra Média, os Orcs passaram a viver da mesma forma: controlando, dominando e regendo tiranicamente tudo o que desejavam. Os Elfos, todavia, honram o bom criador onipotente, não cedendo à dominação opressiva da criação e utilizando seus poderes para beneficiar as demais criaturas.

“Reconhecer sua condição de criatura”, afirma Wirzba, “é afirmar sua própria finitude e necessidade, e respeitar a bondade e a santidade dos semelhantes com quem vive e de quem depende”.⁸ O escritor esclarece que o livro em questão se concentra na perspectiva bíblica que defende a santidade presente nos lugares e nos seres humanos. Essa noção de santidade, que permeia tudo o que existe, é alcançada quando se assume a categoria de criatura, gerando um entendimento de que “a vida é uma dádiva a ser recebida com gratidão, respeitada humildemente e com a qual nos envolvemos com responsabilidade”.⁹

Para nos enxergarmos como criaturas e vivermos nesse mundo de acordo com essa posição, o autor argumenta que é necessário revisitar o relato de Gênesis, porquanto “a história do Jardim do Éden tem o propósito de fazer as pessoas olharem para baixo e ao redor, e não para cima e para longe”.¹⁰ Além disso, o livro ensina que os seres humanos devem cuidar das fontes de vida que os sustentam, porque a criação é a “manifestação material de uma energia divina que concede, nutre e encoraja a vida diversa”.¹¹ Se a Criação manifesta a divindade de Deus, ela é, logicamente, sagrada.

Longe de serem fragmentos insignificantes e isolados, Wirzba argumenta que aqueles que foram divinamente criados por Deus são amados desde o princípio e são inseridos em uma comunidade de vida que lhes proporciona crescimento e liberdade.¹² Portanto, na perspectiva do autor, afirmar que um ser humano é um filho de Deus indica que os diversos lugares do mundo são dádivas sagradas. Declarar a vida como sagrada é “descobrir em sua particularidade a expressão de um amor divino que jamais será encontrada em outro lugar”,¹³ o que transforma os seres em criaturas singulares.

Ao contrário do entendimento dos Orcs e de muitos seres humanos, há uma lógica de criação, criatura e criatividade; uma linha de pensamento que enfatiza a relação entre o Deus Criador e sua criatura, bem como seus atos criativos que permeiam a essência existencial. Dessa forma, as pessoas não podem agir como deuses que manipulam inconsequentemente a natureza, mas devem reconhecer os fundamentos e os enredamentos que as conectam ao movimento cíclico de dar e receber, tocar e ser tocado, influenciar e ser influenciado.¹⁴ Se o ser humano encontra prazer no excesso de poder demonstrado nas consequências do Antropoceno – como o desmatamento em massa, a poluição dos oceanos e a queima de combustíveis fósseis, por exemplo –, a natureza, de acordo com Hermisten Maia, é menosprezada, tornando-se apenas um detalhe cósmico “que o ser humano poderia utilizar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destrutivos”.¹⁵ Por outro lado, quando o ser humano encontra satisfação em sua relação com o Criador e a Criação, haverá a produção de coisas boas, pois “o mundo é digno de atenção, amor e talento”¹⁶ à medida que o Senhor nutre, encoraja e sustenta a vida diversa.

Ao contrário do entendimento dos Orcs e de muitos seres humanos, há uma lógica de criação, criatura e criatividade; uma linha de pensamento que enfatiza a relação entre o Deus Criador e sua criatura, bem como seus atos criativos que permeiam a essência existencial.

Nas palavras de Wirzba, “o livro adota uma lógica radicalmente diferente das formas de pensamento e ação que nos levaram ao Período Antropoceno”,¹⁷ e isso fica mais claro ao longo das páginas. O autor acredita que só é possível superar a crise ambiental se os seres humanos começarem a cuidar da Criação como solo sagrado e assumirem o seu papel de criaturas que dependem uns dos outros, além de dependerem do próprio Criador e da Criação para viverem no que ele chama, no capítulo 4, de mundo entrelaçado em uma rede. De acordo com o escritor, as coisas da terra “não têm existência, nem vida, nem sentido sem as relações que os enredam em um conjunto”¹⁸ de linhas entrelaçadas.

A obra irá destacar que, uma vez que passamos a enxergar o mundo e a vida em seu aspecto sagrado, as criaturas são ativamente convocadas a contribuir com sua criatividade para desenvolver, cultivar e zelar pela Criação. Tolkien afirmou de forma semelhante que em uma de suas cartas que a “liberação dos meios que se sabe que o criador já usou é a função fundamental da subcriação”,¹⁹ ou seja, a criatura deve cuidar da Criação de maneira análoga ao Criador.

A mensagem central do livro que foi comunicada de forma tão excelente por Wirzba, portanto, é a exposição da vida como sagrada, em que tanto lugares quanto criaturas são valiosas, já que foram forjadas por um Deus sagrado e valioso. O trabalho fundamental das criaturas humanas, em última análise, consiste em “unir sua devoção e suas habilidades ao acolhimento e à educação mútuos”,²⁰ pois, “ao criar coisas úteis e belas, as pessoas demonstram que este mundo e sua vida são dignos de serem apreciados”.²¹ A subcriação, a partir daí, passa a ser uma resposta ao Criador.

A mensagem central do livro que foi comunicada de forma tão excelente por Wirzba, portanto, é a exposição da vida como sagrada, em que tanto lugares quanto criaturas são valiosas, já que foram forjadas por um Deus sagrado e valioso.

Pode-se concluir este estudo afirmando que o descontentamento causado pelo pecado, resultando no transumanismo, maltrata a alma de tal maneira que impede que o ser humano se reconheça como uma criatura amada e moldada por Deus. Para alcançar esse pensamento, considerando o mundo como uma dádiva sagrada e usando a subcriação para servir ao Criador, é necessário “livrar-se das paixões que distorcem a vida das criaturas para servir às ambições (muitas vezes violentas e brutais) dos outros”,²² criando em si mesmo “um lugar corporificado no qual Deus possa residir e sentir-se em casa”.²³



Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023, p. 19.

2. Ibidem, p. 23.

3. Ibidem, p. 21.   

4. Ibidem.         

5. William Irwin e Eric Bronson et al., O Hobbit e a Filosofia, 2013.

6. J.R.R. Tolkien, Árvore e Folha, 2020, p. 63.

7. J.R.R. Tolkien, As Cartas de J.R.R. Tolkien, 2010.

8. Wirzba, 2023, p. 51.

9. Ibidem.         

10. Ibidem, p. 103.

11. Ibidem, p. 25.

12. Ibidem, p. 171.

13. Ibidem, p. 25.

14. Ibidem, p. 111.

15. Hermisten Maia, Senhor e Rei que preserva a sua criação, 3 maio de 2023. Clique aqui para acessar.

16. Wirzba, 2023, p. 24.   

17. Ibidem, p. 23.

18. Ibidem, p. 228.

19. Tolkien, 2010, p. 316.

20. Wirzba, 2023, p. 27.

21. Ibidem.         

22. Ibidem, p. 297.

23. Ibidem.       

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