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Criação e evolução

Derrubando muros e construindo pontes

Daniel P. Rosa|

12/07/2024

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Daniel P. Rosa

Graduando em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória. Criador do canal "Desejando o Reino" no Youtube, dedicado à divulgação e popularização de conteúdos teológicos de qualidade na internet.

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Como citar

Rosa, Daniel. Criação e evolução: derrubando muros e construindo pontes. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Apresentação

A relação antagônica entre evolução e criação está profundamente enraizada na consciência evangélica. Líderes evangélicos proeminentes afirmaram que “a teoria da evolução foi inventada para matar o Deus da Bíblia”.¹ Tal afirmativa sugere uma visão amplamente negativa concernente à evolução, retratando-a não apenas como uma teoria científica, mas como um sistema de crenças conflitantes com os valores e princípios mais elementares da fé cristã. Infelizmente, essa polarização reforça estereótipos e preconceitos, os quais dificultam a construção de pontes entre o conhecimento bíblico-teológico e o científico. É a partir desse contexto que a obra de Denis Alexander, intitulada Criação ou evolução: precisamos escolher?, mostra-se como uma obra indispensável àqueles que desejam explorar uma abordagem intelectualmente robusta e honesta da relação entre criação e evolução.

No livro em questão, Denis Alexander tem como objetivo central explorar as possibilidades de conciliação entre a teoria da evolução e uma perspectiva bíblico-teológica da criação. Para isso, enfatiza a importância de reconhecer e respeitar os limites intrínsecos e as capacidades distintas de cada um desses campos epistemológicos. Para o autor, esses domínios do conhecimento são complementares e enriquecem a nossa compreensão da realidade, desde que sejam observadas as diferentes formas pelas quais cada um desses saberes busca compreender o mundo e os fenômenos que o cercam.

A obra e seus principais argumentos

“Todos os cristãos são, por definição, criacionistas”.² Ao abrir seu primeiro capítulo com essa afirmação, Alexander sublinha a relevância de seu livro. Ele esclarece que, embora todos os cristãos se identifiquem como criacionistas, o termo “criacionismo” na linguagem popular tem sido associado a um conjunto específico de crenças defendido por alguns cristãos, as quais estão relacionadas à forma particular pela qual os criacionistas de Terra jovem interpretam o relato da criação em Gênesis. Não obstante, conforme ressalta o autor, outros grupos cristãos, como os criacionistas evolutivos e os de Terra antiga, adotam hermenêuticas da criação que os diferenciam do primeiro grupo.

Segundo Alexander, embora a linguagem popular associe o termo “criacionismo” a essa primeira concepção de criação citada, tal percepção não pode obscurecer o fato de que todos os cristãos são, em essência, criacionistas, pois compartilham a crença fundamental de que Deus é o criador do universo. Em razão disso, o autor observa que a divergência predominante dentro do espectro do criacionismo reside, principalmente, nas formas pelas quais cada abordagem criacionista interpreta o processo criativo de Deus.

Diante disso, nos dois primeiros capítulos dessa obra, o autor se propõe a expor uma teologia da criação fundamentada em uma teologia bíblica cuidadosa. Nesses dois capítulos, Alexander lembra-nos que, para compreendermos o ensino bíblico concernente à criação, é necessário que se estabeleça princípios hermenêuticos sólidos, dentre os quais podem ser citados o reconhecimento da intenção autoral e a análise detalhada do contexto literário e histórico em que os textos bíblicos foram escritos.

Além disso, ainda nesses dois capítulos iniciais, Alexander destaca que, a despeito do que muitos cristãos pensam, o ensinamento bíblico relacionado à criação não se limita aos primeiros capítulos de Gênesis, mas se estende e é articulado com o restante da Bíblia. Assim, a construção de uma compreensão abrangente e substancial da teologia da criação demanda não somente a análise dos relatos de Gênesis, mas também a investigação da forma como essa temática é tratada em outros livros e em outras passagens bíblicas. Por isso, nesses primeiros capítulos, Alexander nos conduz por uma visão panorâmica das Escrituras, evidenciando temas relacionados à criação dispersos por toda a Bíblia, tais como: a transcendência, a imanência, a pessoalidade e a providência de Deus.

Nos quatro capítulos seguintes, o autor explora minuciosamente as principais evidências científicas que sustentam a teoria da evolução, abordando áreas como geologia, genética e biologia populacional. Denis Alexander, doutor em neuroquímica, professor emérito da Universidade de Cambridge e ex-diretor do Instituto Faraday de Ciência e Religião, é amplamente qualificado para abordar esses assuntos. Por conta dessa expertise, o exame das evidências científicas a favor da teoria da evolução realizado pelo autor é extremamente abrangente, mostrando-se muito útil especialmente para leitores leigos e não familiarizados com esse tipo de conhecimento científico.

Uma vez que as evidências apresentadas pelo autor são vastas, foge ao escopo desta resenha detalhá-las exaustivamente. Não obstante, será suficiente expor resumidamente apenas um dos argumentos trazidos por ele, para que o leitor se sinta encorajado a explorar a obra em sua totalidade. Tal evidência a ser apresentada agora é comumente denominada evidência genética. Conforme explicado por Alexander, o consenso científico acerca da evolução genética é evidenciado pelas descobertas oriundas do mapeamento do genoma humano e da comparação com os genomas de outras espécies animais. Em uma análise mais detalhada, o mapeamento do genoma humano revelou a história genética da humanidade por meio da identificação de fusões, quebras, mutações, retrovírus e pseudogenes.

Um exemplo que ilustra muito bem esse conceito de evolução genética são os pseudogenes, que são segmentos de DNA que compartilham semelhanças com genes funcionais, mas que perderam sua capacidade de codificar proteínas ou realizar funções biológicas específicas. Com isso, esses pseudogenes acumulam mutações ao longo do tempo sem prejudicar o organismo humano, tornando-se registros “fósseis” de genes antigos.

Um exemplo de pseudogene presente no genoma humano que perdeu a sua função biológica é o da postura de ovos, descoberta esta que levanta a seguinte questão: por que existe um gene inativo no genoma humano associado à capacidade de botar ovos? A resposta dos geneticistas é que esse pseudogene se originou a partir de um ancestral genético comum, compartilhado com outros mamíferos que possuem essa capacidade. Embora os seres humanos não depositem ovos e, portanto, não necessitem de um gene funcional para tal função, esses genes não funcionais ainda estão presentes em nosso genoma.³ Portanto, esse pseudogene representa um “registro fóssil” genético, refletindo nossa ancestralidade distante e compartilhada com outros grupos de mamíferos.

Após a exposição sobre os dados científicos a favor da teoria evolutiva, Alexander direciona sua análise para o âmbito da teologia, propondo, no capítulo sete uma interpretação dos capítulos iniciais de Gênesis. A análise que ele faz dos capítulos iniciais de Gênesis, especificamente Gênesis 1 e 2, é caracterizada pela concisão aliada à profundidade hermenêutica e exegética, o que revela uma compreensão sólida e abrangente não apenas das expressões hebraicas empregadas e seus significados, mas também do contexto cultural no qual Gênesis foi concebido, conhecido como Antigo Oriente Próximo. Ademais, nesse capítulo, o autor enfatiza seu compromisso inabalável com o princípio da autoridade bíblica e recorre aos primeiros comentaristas cristãos de Gênesis, como Agostinho e Orígenes, para respaldar sua interpretação.

Nesse sentido, Denis Alexander, seguindo as interpretações de alguns pais da igreja, sugere que as passagens iniciais de Gênesis estão principalmente centradas em transmitir ensinamentos teológicos sobre a natureza de Deus, a origem da humanidade e o propósito da criação. Para o autor, adotar uma interpretação estritamente literal de Gênesis, além de ser uma forma de leitura demasiadamente moderna, pode resultar em uma compreensão limitada e superficial dos ricos significados teológicos e existenciais presentes no primeiro livro da Bíblia.

Para o autor, adotar uma interpretação estritamente literal de Gênesis, além de ser uma forma de leitura demasiadamente moderna, pode resultar em uma compreensão limitada e superficial dos ricos significados teológicos e existenciais presentes no primeiro livro da Bíblia.

Nos capítulos restantes do livro, Alexander delineia seu modelo preferido para reconciliar a ciência evolutiva com a teologia, apresentando uma abordagem conhecida como criacionismo evolutivo. Sob essa perspectiva, o criacionismo evolutivo é concebido como uma tentativa de integrar a teoria da evolução dentro da estrutura de crenças cristãs, preservando integralmente a autoridade das Escrituras e os ensinamentos bíblicos sobre a criação, ao mesmo tempo que se engaja em uma interpretação dos desígnios providenciais e da obra divina ao longo do processo evolutivo. Ao adotar essa posição, Alexander identifica-se como um participante de uma tendência crescente no pensamento teológico cristão, caracterizada pela valorização da Bíblia e pela incorporação dos princípios fundamentais da ciência evolutiva à cosmovisão cristã.

Um aspecto crucial explorado nesta seção do livro é a distinção entre a teoria científica da evolução e sua interpretação ateísta, a qual tentou instrumentalizar a evolução para seus próprios propósitos. O autor sustenta que nas mãos de filósofos ateus, o darwinismo foi sujeito a uma transformação ideológica, tornando-se uma ferramenta utilizada contra o teísmo. Embora muitos cristãos associem frequentemente a evolução ao naturalismo, Alexander argumenta que essa conexão é uma construção histórica, e não ontológica.

O autor sustenta que nas mãos de filósofos ateus, o darwinismo foi sujeito a uma transformação ideológica, tornando-se uma ferramenta utilizada contra o teísmo.

Após uma apresentação geral desse modelo, o autor explora seis modelos integrativos, os quais são empregados para reconciliar as narrativas bíblicas com os conhecimentos científicos, destacando aqueles que demonstram a maior capacidade de harmonizar as duas perspectivas. Nesse contexto, ele mergulha nas implicações de cada um desses modelos em relação a questões cruciais, como a identidade histórica de Adão e Eva, a natureza da Queda e o desafio da teodiceia.

Conclusão

Embora Denis Alexander ofereça um modelo integrativo promissor para o diálogo entre fé cristã e ciência, é necessário reconhecer que muitas das propostas relacionadas a essa integração ainda demandam aprimoramento e refinamento. Assim, a obra de Alexander apresenta-se como um ponto de partida indispensável nessa conversa, mas a jornada rumo a uma integração mais completa e satisfatória entre criação e evolução certamente exigirá mais investigação, discussão e reflexão dentro da comunidade evangélica.

Dentre os principais desenvolvimentos e aprimoramentos que devem ser feitos no modelo do criacionismo evolutivo, destaca-se principalmente a necessidade de formular categorias teológicas que sejam pedagogicamente acessíveis para um público cristão mais amplo. Para  o aprimoramento dessa perspectiva, destaca-se a importância de resgatar o pensamento da patrística, especialmente o de Agostinho, para desenvolver estruturas teológicas fundamentadas em insights exegéticos e hermenêuticos que não estejam limitados pelo paradigma bíblico-teológico moderno, o qual apresenta obstáculos que eram desconhecidos na interpretação bíblica pré-moderna, como a polarização entre a leitura literal versus a leitura simbólica do texto de Gênesis, uma dicotomia ausente na exegese agostiniana.

A recuperação do pensamento agostiniano sobre a criação é crucial para o diálogo entre fé e ciência, pois evidencia como a interpretação bíblica contemporânea é fundamentalmente moldada por pressupostos modernos, tais como o racionalismo, o positivismo e o fundacionalismo. Por exemplo, é comum encontrar cristãos que desejam permanecer fiéis às Escrituras, mas que trazem inconscientemente tais pressuposições modernistas à sua hermenêutica bíblica da criação, resultando em uma leitura literalista e reducionista das narrativas de Gênesis. Essa abordagem literalista, porém, não é a única forma de se manter fiel às Escrituras. A hermenêutica agostiniana oferece uma alternativa rica e profunda à interpretação literalista, proporcionando uma abordagem mais matizada à nossa compreensão de Gênesis, mostrando que o processo de interpretação desses capítulos é mais que uma simples escolha entre uma leitura literal ou simbólica.

A hermenêutica agostiniana oferece uma alternativa rica e profunda à interpretação literalista, proporcionando uma abordagem mais matizada à nossa compreensão de Gênesis, mostrando que o processo de interpretação desses capítulos é mais que uma simples escolha entre uma leitura literal ou simbólica.

Alguns podem se surpreender ao descobrir que, na teologia da criação de Agostinho, existe o conceito de rationes seminales, que se assemelha à teoria evolutiva. Outros podem ficar perplexos ao saber que, com base no princípio de “beleza temporal”, o bispo de Hipona articulou a crença de que a morte animal é boa e faz parte do processo criativo original de Deus.⁴ Essas afinidades entre o pensamento agostiniano e o criacionismo evolutivo sugerem uma correlação que transcende a mera coincidência. Por isso, autores como Alister McGrath⁵ têm proposto que os criacionistas evolutivos se aprofundem na teologia criacional agostiniana, pois tal perspectiva teológica oferece um forte aporte bíblico-teológico para a compreensão e fundamentação do modelo criacionista evolutivo.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. John MacArthur, Creation: believe it or not, parte 1, 21 de março, 1999. Clique aqui para acessar.

2. Denis Alexander, Criação ou Evolução: Precisamos Escolher?, 2017, p. 23.

3. Alexander, 2017, p. 204.

4. Para mais informações, ver: Gavin Ortlund, Agostinho e a doutrina da Criação: uma sabedoria antiga para uma controvérsia moderna, 2023.

5. Alister McGrath, “Augustine’s origin of species: how the great theologian might weigh in on the Darwin debate”, Christianity Today, v. 53, n. 5, 2009. Clique aqui para acessar.

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