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Criação sob três aspectos, e sempre adequada ao seu fim*

Thaís Barbosa Gonçalves|

01/09/2023

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Thaís Barbosa Gonçalves

Bacharel em Ciência da Computação (UNESP), Pós-graduanda em Literatura e Teologia e em Educação Cristã pelo Instituto Reformado de São Paulo, e cooperadora na área de ensino da Vineyard Teu Reino.

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Como citar

Gonçalves, Thaís Barbosa. Criação sob três aspectos, e sempre adequada ao seu fim. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Relacionar os textos da Bíblia sobre a criação à ciência moderna é o grande desafio de Mark Harris, que na obra Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e a Ciência, dedicou-se em demonstrar o impacto da ciência na interpretação da Bíblia, apresentando três aspectos da criação: creatio ex nihilo, creatio continua e creatio ex vetere.

Da breve análise do sumário, fica claro que o autor navega por um oceano de conteúdos. É bastante previsível que ele deverá se apressar na condução de seus temas, a fim de entregar seu estudo em pouco menos de trezentas páginas. Todavia, apesar de não se comprometer em trazer visões gerais de campos de estudo já existentes, o autor consegue introduzir o leitor ao estudo de ciência e religião, elucidando questões cruciais que possibilitam aventurar-se — ainda que superficialmente — nessa discussão histórica.

Em seu primeiro capítulo, traz uma breve abordagem científica que versa sobre espaço, tempo, matéria, leis da natureza, Big Bang e Darwin, culminando na temível evolução biológica. Esse pontapé inicial é suficiente para relembrar o leitor otimista de que aplicar a ciência à narrativa bíblica não será uma tarefa fácil, e extrair conclusões seguras e precisas nesse campo de estudo seria muita pretensão. Entretanto, o autor foi feliz em apontar que tais descobertas científicas podem, em determinado aspecto, enriquecer nossa fé na criação.

O autor segue trazendo nos dois capítulos seguintes os relatos da criação contidos na Bíblia e apresentando não apenas questões teológicas acerca deles, mas reflexões sobre o tipo de narrativa empregada nos textos inaugurais do Pentateuco, fazendo seu estudo chegar à pessoa de Cristo e o seu papel redentor.

Nesta apertada síntese dos relatos da criação, que irrompe nas discussões do terceiro capítulo sobre o tempo de Deus e espaço em que Ele habita, a afirmação de que a criação experimenta naturalmente o sobrenatural e vive na tensão de um reino que já se iniciou, mas ainda não está completo, traz-nos a convicção de que os textos bíblicos jamais se limitarão às balizas científicas.

Em que pese todo o esforço do autor — a propósito, bem-sucedido — em demonstrar que a ciência não precisa refutar a Bíblia, queda-se inequívoco que ciência não consegue andar por muito tempo de mãos dadas com a Bíblia, já que nunca será capaz de acessar toda profundidade da sabedoria e conhecimento do Criador.  

No quinto capítulo, o autor passa a apresentar os diferentes aspectos da criação, ressaltando, a priori, a conexão existente entre a creatio ex nihilo e creatio continua, apontando como o mesmo Deus, que transcende e entra continuamente no mundo, promete uma nova criação em seu fim escatológico. 

queda-se inequívoco que ciência não consegue andar por muito tempo de mãos dadas com a Bíblia, já que nunca será capaz de acessar toda profundidade da sabedoria e conhecimento do Criador.

A despeito de os títulos dos capítulos finais flertarem mais com a teologia do que com a ciência, tratando de temas como “A queda”, “O Sofrimento e o mal” e “Escatologia científica e nova criação”, há questões intimamente ligadas à ciência que são trazidas para a discussão de maneira instigante. São elas: o conhecimento da morte como consequência do passado evolutivo, o lado sombrio da boa criação e a ressurreição como terceira categoria da criação.

No que concerne ao tema da “morte”, o autor pontua a aparente irrelevância de uma árvore da vida no Éden antes mesmo que a queda acontecesse. Supõe-se que, talvez, homem e mulher sempre tivessem sido mortais. Para se desvencilhar da proposta de um Deus que proferiu inverdades — já que homem e mulher, ao invés de morrerem, atingem um novo patamar de conhecimento, tal como havia predito a serpente —, traz-se à tona a argumentação de que a narrativa de uma queda histórica não seria tão relevante para a história da Bíblia.

Para reforçar seu ponto de vista, o autor se esforça para associar a crença na queda histórica ao conflito de Agostinho e Pelágio, manobrando os textos de Paulo para ratificar seu argumento de que se houve uma queda inicial, e esta se deu “para cima”, concebendo-a como um aprimoramento e despertamento da consciência da finitude pessoal, assegurando, desse modo, que ela não venha a colidir com a ciência evolutiva.

Logo, o autor argumenta que o sofrimento e a morte não precisam ser encarados como males em si mesmos. Assim sendo, tenta refutar a convicção de uma criação perfeita, apresentando a ideia de que esta estava adequada ao seu propósito.

Nesse aspecto, o autor muda o foco, que sempre esteve na perfeição do Criador e na inconcebível existência de uma criação “com defeitos”, e modela tal pensamento acerca dos atos perfeitos de Deus para revelar que, possivelmente, o lado sombrio da criação tivesse sido pretendido pelo Criador, o qual, em sua soberania e sabedoria, planejou a criação para conviver com o mal natural, aceitando o sofrimento evolutivo até que fosse capaz de refletir a perfeita bondade de Deus na plenitude dos tempos.

Após combater a queda histórica e expor o “estado caído” como uma característica integral da criação inicial objetivada pelo próprio Deus, o autor discorre sobre a perfeição no futuro escatológico. Nessa toada, o que ele faz é aplicar a esperança no futuro como resposta para as dúvidas do passado e do presente, noticiando que o começo do mundo só haverá de encontrar seu real significado quando Cristo completar sua obra de redenção. 

Nessa toada, o que ele [autor] faz é aplicar a esperança no futuro como resposta para as dúvidas do passado e do presente, noticiando que o começo do mundo só haverá de encontrar seu real significado quando Cristo completar sua obra de redenção.

Destarte, ele decifra que a antiga criação não foi e não será descartada; pelo contrário, “é a matéria-prima do que está por vir”.¹ Encerrando tal raciocínio, o autor encoraja à esperança incondicional nos propósitos de Deus, os quais jamais poderão ser inteiramente aclarados pela ciência.

Neste diapasão, o que o autor parece arrematar é que chegará um momento neste trajeto em que a ciência não mais será capaz de caminhar ao nosso lado e, a partir deste ponto, deveremos prosseguir acompanhados tão somente da fé, nosso único recurso para “provar” as coisas que não podemos ver.

Ao passar por tais pontos, um assunto substancial trazido nesta obra são as “perspectivas da criação”: creatio ex nihilo, creatio continua e creatio ex vetere. Esses temas são o pano de fundo do livro para o desenrolar de toda a argumentação do autor. Queda-se impossível completar a leitura deste livro sem associar tais “categorias de criação” aos papéis assumidos pelas pessoas da Trindade no enredo da salvação do mundo criado, pois, nesse aspecto, a obra nos apresenta lampejos de compreensão acerca do nosso Deus. Vejamos.

Se, no princípio de tudo, temos um Deus que — transcendendo sua divindade, perfeição e completude — ordena e cria um mundo a partir do nada, trazendo vida à terra, pelo poder de sua palavra, com o propósito de compartilhar seu amor pela sua criação, podemos então identificar a seguinte organização da Trindade na criação ex nihilo

Ao apresentar o Deus Pai como o grande arquiteto do universo, encontramos no Deus Filho aquele por meio de quem tudo veio à existência, ou seja, aquele que materializou o que Deus Pai estava dizendo e, no Deus Espírito que pairava sobre as águas e em quem estava a fonte de vida da nova criação, aquele que pôs fôlego nas narinas de cada ser que foi chamado à existência.

Tendo criado céus e terra, e tudo o que neles há, nosso Deus não se ausentou deste lugar; pelo contrário, seu objetivo sempre foi torná-lo o templo de sua habitação. Deparamo-nos então com um Deus não apenas transcendente, mas também imanente, o qual não nos cria e em seguida nos abandona. Pelo contrário, trata-se de um ser superior que se coloca como parte inseparável da sua criação, sustentando todas as coisas pelo seu poder e por sua soberania.

Tanto é que, após homem e mulher adquirirem consciência a respeito de seu pecado por haverem rejeitado o governo e cuidado de Deus, o mesmo Deus que busca a humanidade, dá ouvidos à sua criação e a disciplina, é também aquele que prepara roupas em demonstração de cuidado para essa nova etapa da vida na terra.

Tendo criado céus e terra, e tudo o que neles há, nosso Deus não se ausentou deste lugar; pelo contrário, seu objetivo sempre foi torná-lo o templo de sua habitação.

O Deus imanente é aquele que oferece seu Espírito para que homens pecadores governem com sabedoria e promovam anos de paz para o seu povo. É também aquele que vem ao encontro da sua criação, seja em episódios de teofania, seja por meio de profetas, para lhe orientar, conduzir e fazer promessas que trazem esperança acerca do futuro.

E quando a Lei “não é o bastante” para restaurar o mundo corrompido pelo mal ou fazê-lo atingir o fim para o qual foi criado, esse Deus transcendente e imanente chega ao ápice de seu trabalho como criador e sustentador, assumindo seu papel restaurador. Nesse ponto da história bíblica, vemos o Deus Pai amando de tal forma a sua criação que nos envia Jesus, agora sua palavra encarnada em forma humana, parte da criação, a fim de que, por meio de sua vida terrena, pudéssemos ser ensinados a viver de acordo com o propósito para o qual fomos criados.

Jesus, a imagem do Deus invisível, por intermédio de quem tudo passou a existir, vem até nós para dizer tudo aquilo que o Pai queria que soubéssemos. Sobre ele repousa o Espírito Santo, trazendo novo fôlego de vida ao Redentor, que agora haveria de experimentar a mais dura consequência desse mundo quebrado para reconciliar todas as coisas ao seu Criador. Não me refiro à morte tal como muitos apontam, mas ao cálice da ira do justo Deus. É a Trindade se realinhando para que a criação continua conceda espaço à criação ex vetere.

Ora, é por meio da vitória de Cristo sobre a morte que devemos manter viva nossa esperança na transformação dessa criação. Se Jesus se sujeitou à morte de cruz a fim de suportar a culpa pelos nossos erros para com o Criador e ressuscitou para nos assegurar a promessa de uma criação restaurada, sabemos que, pela fé, com ele também ressuscitaremos para uma nova vida, como participantes de seus sofrimentos e, também, de sua vitória triunfante.

Dentro deste último aspecto da criação, creatio ex vetere, vemos, enfim, o Deus Filho detentor de toda autoridade no céu e na terra, ocupando seu trono como Rei Eterno, provando que em tudo tem supremacia e que todas as coisas subsistem por meio dele. Vemos também o Deus Pai concluindo sua obra, momento em que toda a criação passa a ser perfeitamente (ou novamente) boa.

Dentro deste último aspecto da criação, creatio ex vetere, vemos, enfim, o Deus Filho detentor de toda autoridade no céu e na terra, ocupando seu trono como Rei Eterno, provando que em tudo tem supremacia e que todas as coisas subsistem por meio dele.

Na plenitude dos tempos, o Grande Arquiteto é finalmente glorificado em tudo e em todos. Vemos ainda a intercessão constante do Deus Espírito, grande responsável pela consumação da obra de redenção da criação. Aquele por meio de quem fomos convencidos do pecado, fomos aconselhados, fomos relembrados acerca do que Cristo disse e viveu. Aquele que fez com que tudo cooperasse para nossa aproximação com o divino até que a boa obra do Criador em nós fosse completada.

Ante o exposto, concluímos que criação ex nihilo, continua e ex vetere fazem parte do grande projeto da Criação de Deus e, ainda que a ciência se aventure em explicá-lo, afirmá-lo ou contestá-lo, nós, que cremos que a mensagem do Evangelho é o Seu poder, sabemos que haverá um momento em que a ciência chegará ao seu ponto final. E quando tudo passar, restará somente o amor do Senhor, manifestado na sua obra de criação, sustentação e redenção.

Por fim, não há razões para insistirmos em contra-atacar a ciência como se a Bíblia precisasse de defesa ou lhe fosse rigorosamente contrária. Até o ponto do trajeto em que as Sagradas Escrituras iluminam a ciência, que possamos andar de mãos dadas com elas a fim de desenvolver uma fé racional e naturalmente sobrenatural. A partir do ponto em que a ciência não puder mais acompanhar a nossa fé, que nos agarremos à mensagem do Evangelho, a qual poderá parecer loucura para alguns, mas para nós, que estamos sendo salvos, é, de fato, o poder do Criador que nos levará ao mais alto ponto da evolução humana: ser a imagem e semelhança de Cristo.

 

 

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* Estudo selecionado na 2ª Chamada de Estudos de Livros do Radar ABC².

1. Mark Harris, Discutindo a criação, 2023, p. 232.

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