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Criacionismo Evolutivo

Reconciliando teologia e teoria da evolução

Samara Monteiro de Andrade|

26/07/2024

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Samara Monteiro de Andrade

Farmacêutica formada pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Servidora Pública na Prefeitura Municipal de Viçosa. Esposa de filósofo e mãe de duas crianças.

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Como citar

Andrade, Samara Monteiro. Quem tem medo da evolução? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Em Criação ou evolução: precisamos escolher, Denis Alexander não se limita a responder à pergunta proposta no título, mas o faz com robusto embasamento teológico e científico, e de forma marcadamente cristã. Humildade intelectual, apego à ortodoxia bíblica e amor aos irmãos de fé que abraçam visões diferentes das suas permeiam todo o livro. Alexander não tem dificuldade em declarar que, embora busque defender que a teoria da evolução não entra em conflito com o cristianismo, considera-o um assunto não essencial para a fé cristã, um assunto sobre o qual cristãos verdadeiros podem discordar e, ainda assim, manterem-se unidos, compartilhando a mesma base de fé. Apresentarei criticamente os principais argumentos do autor e defenderei que sua visão sobre a queda da humanidade assemelha-se às visões de John Walton, Irineu de Lyon e C. S. Lewis.

O livro se destina a cristãos que creem na Bíblia como Palavra de Deus revelada. Por isso, questões como a existência de Deus e a autoridade das Escrituras não são discutidas, mas pressupostas para os demais argumentos. Ainda assim, o autor mostra-se cuidadoso ao caracterizar termos que serão importantes no decorrer do livro e que podem ter sentidos diferentes a depender do contexto eclesiástico de cada leitor.

A primeira caracterização importante é a de criacionismo. Ele afirma que todo cristão é criacionista,¹ uma vez que o cristianismo se baseia na crença imprescindível de que o universo (e tudo o que existe e é distinto de Deus) foi criado pela vontade livre e soberana de Deus, qualquer que tenha sido o meio utilizado. Criacionista, portanto, é todo aquele que crê que Deus criou o mundo. Essa definição nada diz sobre a idade do universo, a origem das espécies ou a tese de um primeiro casal humano do qual descendem todos os seres humanos. Segundo essa definição, a afirmação amplamente disseminada de que o criacionismo defende que o universo surgiu há menos de 10 mil anos é simplesmente falsa. Alguns criacionistas podem defender um universo jovem, mas, para Alexander, isso é um adendo à tese da criação, não um elemento essencial dela.

Criacionista, portanto, é todo aquele que crê que Deus criou o mundo. Essa definição nada diz sobre a idade do universo, a origem das espécies ou a tese de um primeiro casal humano do qual descendem todos os seres humanos.

Em seguida, ele caracteriza imanência como sendo a “atividade criativa contínua”² de Deus em relação ao universo. Diferentemente do deus deísta, que cria a matéria e as leis naturais, mas em seguida se afasta, deixando o universo seguir seu curso de forma autônoma, ele defende que a Bíblia reiteradamente nos apresenta um Deus que não apenas criou – e, por isso, é transcendente –, mas continuamente sustenta e se envolve ativamente em sua criação. Uma implicação direta da imanência, para Alexander, é que “o papel dos cientistas, quer reconheçam ou não, consiste em descrever as atividades [presentes] de Deus na criação”.³ Em sua visão, portanto, a atividade criativa contínua de Deus é tão ampla que descrever a realidade criada é descrever a ação de Deus ocorrendo no presente. Possivelmente ele tem em mente algo como a doutrina do concursus Dei,⁴ em que Deus age como causa primária em toda relação causal do mundo natural.  

Alexander apresenta também o que os cientistas entendem por evolução. Ele explica conceitos básicos de genética, processos de seleção natural, mecanismos de especiação e os principais métodos de datação. Também são discutidas as principais objeções levantadas pelo público leigo à teoria da evolução e seus processos.

Munido dessas caracterizações de termos fundamentais, Alexander passa a argumentar em defesa do Criacionismo Evolutivo. Ele explora com profundidade as características literárias do texto de Gênesis 1 e 2 com o mesmo rigor e a mesma profundidade utilizados para abordar os temas científicos dos capítulos anteriores. Sua defesa de que se trata de um texto carregado de linguagem figurada é embasada em elementos textuais, como a análise de termos em hebraico e da estrutura literária, e corroborada por uma longa tradição de comentaristas bíblicos, desde Agostinho e Orígenes até Karl Barth, os quais compartilham dessa mesma forma de interpretação.

Além do tratamento do texto de Gênesis, sua defesa do Criacionismo Evolutivo conta com suporte histórico. Alexander relata que, quando de sua publicação, no final do século 19, a teoria da evolução apresentada em A origem das espécies foi bem aceita entre os principais pensadores cristãos. O que ocorreu a partir do início do século 20 foi a transformação ideológica do darwinismo, cuja terminologia foi cooptada por diferentes formas de pensamento e passou a ser utilizada para defender ideais diferentes e até mesmo contraditórios, como capitalismo, comunismo, racismo, eugenia e ateísmo. A rejeição de certos cristãos a determinadas propostas ideológicas foi o que os levou à rejeição do darwinismo. Sendo assim, a fim de separar a teoria científica proposta por Darwin de suas diferentes deturpações ideológicas, Alexander nos convida a “batizá-la” em nossa visão cristã de mundo, adotando o que ele chama de Criacionismo Evolutivo: um modelo capaz de reconciliar as descobertas científicas atuais com a tradição cristã. Isso significa, para ele, retirar a evolução tanto do papel de espantalho (para os que a criticam sem conhecê-la de fato), quanto do papel de bezerro de ouro (para os que a sobrepujam ao texto bíblico), colocando-a em seu “devido lugar em meio às outras maravilhas da criação divina”.⁵ Essa visão avalia aquilo que é central à doutrina da criação (caracterizada anteriormente) e à teoria da evolução (também já explicada), e conclui que não há entre elas nenhuma contradição, explícita ou implícita.

Sendo assim, a fim de separar a teoria científica proposta por Darwin de suas diferentes deturpações ideológicas, Alexander nos convida a “batizá-la” em nossa visão cristã de mundo, adotando o que ele chama de Criacionismo Evolutivo [...].

Alexander discute, então, como o modelo do Criacionismo Evolutivo se relaciona com as principais dificuldades que surgem no diálogo entre a teoria da evolução e a narrativa de Gênesis: a historicidade de Adão e Eva e as doutrinas do pecado original e da Queda. Embora talvez não haja conflito entre a noção de criação e a teoria da evolução quando consideradas estritamente, caso haja um conflito entre um desses elementos e a evolução, isso seria, por si só, suficiente para muitos cristãos rejeitarem a teoria da evolução e acusarem o Criacionismo Evolutivo de heresia.

Quanto à existência histórica de Adão e Eva, o Criacionismo Evolutivo de Alexander se aproxima da defesa apresentada por John Walton em sua obra O mundo perdido de Adão e Eva.⁶ Tanto Alexander como Walton assumem a existência de dois indivíduos, Adão e Eva, como figuras históricas. Alexander propõe que eles sejam considerados não como os primeiros Homo sapiens, mas como os primeiros Homo divinus: humanos espiritualmente vivos a quem o Deus de Israel escolheu se revelar. Walton, por sua vez, desenvolve a ideia de Adão e Eva como representantes federativos ao apresentá-los como sacerdotes colocados no espaço sagrado do Jardim do Éden para exercerem funções sacerdotais.⁷ Para ele, a relação de Adão e Eva com os outros seres humanos não é apenas arquetípica, mas, como sacerdotes, eles foram escolhidos para servirem como mediadores entre Deus e o restante da humanidade. Após desobedecerem ao mandamento divino, eles foram destituídos de sua função sacerdotal, expulsos do espaço sagrado, e, com isso, toda a humanidade perdeu o acesso à Árvore da Vida – à vida de comunhão com Deus.

Embora possa parecer estranho ao pensamento de grande parte dos cristãos ocidentais, interpretações como as de Alexander e Walton não contradizem o texto bíblico nem afetam a autoridade das Escrituras. As doutrinas do Pecado Original e da Queda conforme elaboradas por Agostinho de Hipona fazem parte de uma tradição, havendo outras formas possíveis, dentro da ortodoxia cristã, de interpretar os capítulos iniciais de Gênesis. Para Agostinho,⁸ o pecado de Adão alterou a natureza humana de tal forma que, através do nascimento, toda a sua descendência tornou-se herdeira do pecado. Irineu de Lyon, no entanto, foi um dos Pais da Igreja que desenvolveu uma leitura de Gênesis alternativa à visão agostiniana. Em sua interpretação, Adão e Eva teriam sido criados imaturos e colocados no Jardim do Éden para desenvolver seu potencial até alcançar a maturidade, e, após a maturidade, alcançar a imortalidade.⁹ Ao desobedecerem a ordem de Deus, comendo do fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, eles foram expulsos do Éden, o local de comunhão plena com o Pai sem terem atingido o fim – o estado de maturidade – para o qual foram criados. Nessa visão, a Queda teria mais a ver com a humanidade perdendo o relacionamento com Deus e, por consequência, a possibilidade de alcançar seu pleno desenvolvimento, do que com alguma alteração em sua natureza material que a fizesse perder a imortalidade. Trata-se aqui do paraíso não ganho em vez da famosa ideia de um “Paraíso Perdido”, popularizada pelo épico de John Milton.¹⁰

Nessa visão, a Queda teria mais a ver com a humanidade perdendo o relacionamento com Deus e, por consequência, a possibilidade de alcançar seu pleno desenvolvimento, do que com alguma alteração em sua natureza material que a fizesse perder a imortalidade.

Na literatura, C.S. Lewis traduziu brilhantemente para a ficção essa ideia da Queda como a perda de um potencial não atingido, em vez da destituição de um estado de perfeição. Em seu romance Perelandra,¹¹ o segundo livro da Trilogia Cósmica, o protagonista Ransom (cujo nome significa “resgate”) é levado a um planeta chamado Perelandra e descobre haver ali um único casal humano, vivendo em estado de inocência. No decorrer da trama, Ransom testemunha a mulher sendo tentada por um ser maligno a desobedecer uma ordem divina previamente estabelecida. Conhecendo a história bíblica de Adão e Eva, Ransom impede que os habitantes de Perelandra sejam enganados, evitando que uma Queda similar aconteça naquele planeta. Tendo vencido a tentação, o homem e a mulher são coroados Rei e Rainha daquele planeta, com autoridade sobre toda a natureza, e recebem como presente o que lhes havia sido anteriormente proibido pela divindade. A humanidade apresentada por Lewis em sua obra foi criada com o potencial tanto à degradação como à perfeição, e aquilo que foi perdido por Adão e conquistado por Cristo na Terra, foi alcançado conforme o plano original em Perelandra – o potencial à degradação não foi atualizado (na terminologia filosófica) como na Terra, mas sim o potencial à perfeição.¹² A implicação aqui é que o Éden (ou a Perelandra inicial) não era a perfeição em si, mas um estado intermediário, anterior à perfeição. Sendo assim, em vez de um paraíso perdido que é recuperado, temos um paraíso provisório que é aperfeiçoado.

Embora utilizem linguagens diferentes, Denis Alexander, Irineu de Lyon e C.S. Lewis discorrem sobre o tema da Criação e da Queda sob pontos de vista muito semelhantes, que convergem para uma visão escatológica. Os três autores entendem que a humanidade não foi criada perfeita, mas sim para alcançar a perfeição, e esse destino glorioso esteve disponível ao homem e à mulher no Jardim do Éden, que o rejeitaram ao quebrarem o mandamento de Deus, mas agora, graças ao sacrifício de Cristo, podemos aguardar algo ainda melhor que o Éden: Novos Céus e Nova Terra.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Denis R. Alexander, Criação ou evolução – precisamos escolher?, 2017, p. 23.

2. Ibidem, p. 37.

3. Ibidem, p. 40.  

4. Heber Carlos de Campos, A providência e sua realização histórica, 2001, p. 185.

5. Alexander, 2017, p. 180.

6. John Walton, O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, 2016.

7. Ibidem, p. 97-107.

8. Alexander, 2017, p. 285-286.

9. Matthew Craig Steenberg,  Irenaeus on Creation: The Cosmic Christ and the Saga of Redemption, 2008, p. 141.

10. Alexander, 2017, p. 268.

11. C.S. Lewis, Perelandra, 2011.

12. Ibidem, p. 282.

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