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Cristologia, sofrimento divino e esperança cristã na teologia de Karl Barth

Breno Seabra|

05/07/2024

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Breno Seabra

Doutorando em Religião na Emory University e Mestre em Divindade pelo Western Theological Seminary, onde também trabalhou como pesquisador assistente do Dr. J. Todd Billings. Sua pesquisa explora a interseção entre a doutrina da criação, teologias da identidade humana, teologia política e sociologia da religião, com foco especial nos desafios sociais contemporâneos do Brasil.

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Como citar

Seabra, Breno. Cristologia, sofrimento divino e esperança cristã na teologia de Karl Barth. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

No coração da mensagem cristã está a afirmação da esperança — a firme certeza de que a ordem presente já está sendo restaurada e que o mal será finalmente vencido. Entretanto, quando confrontados com as inúmeras situações de sofrimentos inerentes à era presente, pode a teologia cristã oferecer algum consolo real? Seria a esperança cristã meramente uma “ilusão útil” ou há de fato alguma plausibilidade em crer na vitória última do bem sobre o mal?

Uma resposta adequada a essas questões só pode ser oferecida quando consideramos, primeiro, uma pergunta ainda mais fundamental: quem Deus é? Ou, mais especificamente, quem é o Deus cristão em meio aos nossos sofrimentos? Os cristãos têm tradicionalmente confessado que o caráter de Deus é revelado de forma suprema em Jesus Cristo e, portanto, é à luz de sua existência histórica que podemos conhecer a identidade de Deus em meio as nossas tribulações.

A essa altura, porém, nosso tema parece expor uma tensão fundamental do pensamento cristão, pois no centro da fé cristã está a confissão de que Jesus Cristo, Deus encarnado, não só sofreu, como também morreu na cruz do Calvário. Uma vez que os cristãos confessam Jesus de Nazaré como verdadeiramente Deus, perfeito em sua divindade e humanidade, a implicação parece ser que a própria natureza divina sofre na pessoa de Cristo. Se for esse o caso, um novo conjunto de questões pastorais e teologicamente carregadas emerge: Como pode um Deus que está sujeito ao sofrimento e ao mal fornecer qualquer esperança ou consolo significativo à realidade dos nossos sofrimentos? Em que medida deveria a cristologia — em particular, o fato de Jesus ter sofrido e morrido na cruz — impactar nossa visão da natureza e impassibilidade divina? O fato de Deus sofrer em Cristo significa que devemos abandonar adjetivos como “todo-poderoso”, “onipotente” ou “soberano”?

No século 20, poucos teólogos da tradição reformada refletiram mais profundamente sobre essas questões do que Karl Barth. Barth ganhou proeminência teológica em meio às guerras mundiais e à brutalidade do Holocausto. Portanto, o “problema” do sofrimento não é para ele um interesse abstrato, mas uma questão existencial e concreta. Além disso, Barth é amplamente conhecido por sua dedicação irresoluta de pensar o caráter de Deus à luz da revelação divina na vida e morte de Cristo.

Com isso em mente, este artigo buscará apresentar o pensamento de Barth sobre cristologia e sofrimento divino. Em especial, espero demonstrar como a teologia de Barth oferece um caminho frutífero de reflexão para questões cristológicas, pastorais e doutrinárias cruciais na tarefa de cultivar a esperança em um mundo marcado pela morte e sofrimento.

Cristologia e sofrimento divino

Barth lida com o tema da cristologia e sofrimento divino no contexto de suas reflexões sobre a doutrina da expiação e reconciliação, mais especificamente na obra Church Dogmatics, na seção IV/1, §59.1.¹ Ele começa sublinhando o caráter histórico da expiação e a centralidade desse evento tanto para Deus como para a humanidade. Uma vez que Jesus é o personagem central dessa história, sua pessoa e sua obra devem informar todos os aspectos das nossas reflexões sobre a obra divina de reconciliação. Ele é em si mesmo o “Deus reconciliador” e a “criatura reconciliada”. Portanto, sua história é a verdade e o pressuposto fundamental a partir do qual devemos compreender tanto a identidade divina quanto a humana.²

Ele é em si mesmo o “Deus reconciliador” e a “criatura reconciliada”. Portanto, sua história é a verdade e o pressuposto fundamental a partir do qual devemos compreender tanto a identidade divina quanto a humana.

Para Barth, o significado teológico dessa história começa com a condescendência divina em Jesus de Nazaré. Ao encarnar, o Filho unigênito, ainda como Senhor Deus, humilha-se e assume a forma de Servo Sofredor em obediência ao Pai a fim de tornar-se o reconciliador da humanidade com Deus. Seguindo o testemunho do Novo Testamento e das comunidades cristãs primitivas, Barth reconhece que, a fim de realizar tal obra, Jesus deve ser verdadeiramente humano e verdadeiramente Deus.³ Entretanto, o que distingue o homem Jesus de Nazaré como verdadeiramente Deus é precisamente aquilo que parece estar em absoluto contraste com o ser divino, a saber, sua obediência irrestrita ao Pai.⁴

O caráter e a natureza dessa obediência, por sua vez, só podem ser devidamente compreendidos quando vemos a encarnação do Filho de Deus em sua concretude, ou seja, em sua determinação histórica, cultural e teológica como uma “carne judaica”.⁵ Isso significa que a vida obediente e sofredora de Jesus deve ser entendida no contexto da aliança de Deus com Israel. O que a igreja diz sobre Jesus deve

estar sempre relacionado a vida humana de um homem que é visto não como um homem genérico, um homem neutro, mas como aquele que é a conclusão e resumo da história de Deus com o povo de Israel, aquele que cumpre a aliança feita por Deus com este povo.⁶

Sendo assim, o significado teológico da morte e sofrimento de Cristo está intimamente relacionado ao contexto da aliança de Deus com Israel. A história de Jesus

tinha que ser uma história de sofrimento e tinha que ser cumprida como tal — não apesar de, mas precisamente em virtude de ser essa a história do povo escolhido de Deus... O Filho de Deus em sua união com este homem existe em solidariedade com a humanidade de Israel, que sofre sob a poderosa mão de Deus... Ele não sofre um sofrimento qualquer, mas sim o sofrimento deles; o sofrimento dos filhos castigados pelo Pai.⁷

Em outras palavras, para Barth, as exigências específicas da expiação — em especial, o sofrimento e morte de Cristo — derivam da história pactual do povo de Israel com Deus.⁸ Em Jesus, Deus se une à criatura eleita e sofre a justa punição pela quebra do pacto. Este é o mistério da divindade: em Cristo, vemos de forma suprema que o Deus da aliança é “capaz, está disposto e pronto para condescender” desta forma, em sofrimento substitutivo e vicário.⁹

Este é o mistério da divindade: em Cristo, vemos de forma suprema que o Deus da aliança é “capaz, está disposto e pronto para condescender” desta forma, em sofrimento substitutivo e vicário.

Entretanto, como isso é possível? Como pode o Deus onipotente, transcendente e todo-poderoso, que estabelece a aliança de forma soberana, sofrer? Não seria tal movimento uma contradição fundamental em seu ser?

Barth nega enfaticamente que o sofrimento de Cristo implique qualquer contradição no ser de Deus, pois, nesse caso, estaríamos assumindo uma noção de divindade apática e alheia ao sofrimento, completamente desconectada da revelação de Deus em Cristo. Em vez disso, a identidade do único Deus verdadeiro, da natureza de sua divindade, deve ser descoberta a partir do que acontece na existência concreta de Jesus Cristo na carne: “Não cabe a nós falar de uma contradição ou ruptura no ser de Deus, mas aprender a corrigir nossas noções do ser de Deus, a reconstituí-las à luz do fato de que ele faz isso”.¹⁰

De acordo com Barth, o significado teológico da existência de Cristo envolve “dois momentos”, a saber, (1) sua obediência ao Pai e (2) sua auto-humilhação na forma de seu sofrimento na cruz.¹¹ E, aqui, chegamos a um ponto crucial da abordagem de Barth.

Ao articular a relação entre esses dois momentos inter-relacionados, o autor emprega a distinção entre Deus em seu ser interior e Deus em suas obras externas na criação.¹² O sofrimento e a morte de Jesus na cruz são descritos como a forma da sua obediência. No entanto, apenas a obediência de Jesus refere-se ao ser interior de Deus, enquanto seu sofrimento diz respeito ao mistério da sua divindade em sua obra ad extra — isto é, na economia dos atos exteriores de Deus. Ele escreve,

Do ponto de vista da obediência de Jesus Cristo como tal, cumprida naquela forma surpreendente, trata-se do mistério do ser interior de Deus como o ser do Filho em relação ao Pai. Do ponto de vista desta forma, do caráter dessa obediência como obediência de sofrimento, da auto-humilhação de Jesus Cristo, do caminho do Filho ao país distante, trata-se do mistério de sua divindade em sua obra ad extra, em sua presença no mundo.¹³

Em outras palavras, a obediência de Jesus caracteriza, de fato, a sua relação ontológica com o Pai; mas seu sofrimento e sua morte na cruz são a manifestação concreta, externa e temporal dessa obediência, não seu conteúdo intrínseco.¹⁴

Desse modo, Barth interpreta o “autoesvaziamento” do Filho, sua kenosis e seu sofrimento não como a renúncia à sua forma divina, mas como um ato de assumir em si a forma de servo. O Filho não deixa de ser Deus nesse ato; antes, exerce sua liberdade e capacidade de se humilhar e ser obediente nesta forma particular como humano. A kenosis do Filho não é a expressão de uma contradição no ser divino, mas uma expressão da “liberdade do amor divino” manifestada dessa forma para a salvação da humanidade. Longe de anular sua impassibilidade, unidade e transcendência, essa ação é uma “possibilidade […] incluída em seu ser inalterável” e uma manifestação da onipotência, imutabilidade e eternidade radicalmente transcendente do Deus que existe pro nobis.¹⁵

A kenosis do Filho não é a expressão de uma contradição no ser divino, mas uma expressão da “liberdade do amor divino” manifestada dessa forma para a salvação da humanidade.

Conclusão: imutabilidade divina e a plausibilidade da esperança cristã

A combinação de uma cristologia profundamente enraizada no contexto teológico pactual do Antigo Testamento com o emprego judicioso da clássica distinção entre trindade imanente e trindade econômica permite que Barth, por um lado, preserve a transcendência, onipotência e imutabilidade da vida trinitária perfeita de Deus, e, por outro, desenvolva uma doutrina de Deus genuinamente informada pela morte e sofrimento de Cristo na cruz sem absolutizar o sofrimento e a morte como qualidades ontológicas inerentes ao ser divino.

Se os sofrimentos e a morte de Cristo implicam que a própria natureza divina em sua essência sofre, então morte e sofrimento devem ser integrados essencialmente à natureza divina. Nesse caso, porém, é difícil imaginar como Deus seria capaz de derrotar o sofrimento de forma definitiva sem, ao mesmo tempo, colapsar seu próprio ser. Além disso, a imutabilidade e transcendência divina seriam substituídas pela instabilidade e imanência de um deus profundamente engajado nas agruras da era presente, mas, em última instância, incapaz de trazer os novos céus e a nova terra — comprometendo, assim, a plausibilidade da esperança cristã.¹⁶

Como vimos, uma vez que Barth desenvolve sua cristologia à luz da aliança de Deus com Israel, o sofrimento de Cristo não é interpretado como a definição material última da divindade, mas como a expressão histórica concreta da obediência do Filho e da disposição resoluta do Deus da aliança de resgatar e restaurar sua criação. Além disso, pelo fato de  Barth empregar a distinção entre Deus em seu ser interior e Deus em suas obras ad extra, ele é capaz de afirmar a existência humana de Jesus em fraqueza, humilhação e sofrimento como parte fundamental da nossa compreensão de Deus sem comprometer a imutabilidade e transcendência da vida interior trinitária plenamente realizada de Deus.¹⁷[2] Em Cristo, vemos que Deus é “absoluto, infinito, exaltado, ativo, impassível, transcendente; mas, em tudo isso, ele é aquele que ama em liberdade, aquele que é livre em seu amor e, portanto, não seu próprio prisioneiro”.¹⁸[3]

Em suma, a atenção bíblico-teológica de Barth lhe permite fazer uso criterioso de distinções teológicas clássicas e, assim, preservar o que considero elementos indispensáveis da plausibilidade da virtude cristã da esperança: a saber, a imutabilidade e transcendência de Deus. Do ponto de vista de Barth, portanto, podemos abraçar uma doutrina de Deus que é sempre informada pela cruz de Cristo sem comprometer a vida imanente e perfeita de Deus como uma comunhão amorosa eterna entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Deus é, ao mesmo tempo, o Deus sofredor e o Deus onipotente que, em Cristo, não só sofre genuinamente conosco, mas também é capaz de cumprir suas promessas de libertação e alegria eternas.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Karl Barth, Church Dogmatics, 1961, IV/1, p. 155.

2. Barth, 1961IV/1, p. 156.

3. Ibidem, pp. 160–164.

4. Ibidem, p. 164.

5. Ibidem, p. 166.

6. Ibidem.              

7. Ibidem, p. 174-175, grifo meu.

8. Ibidem, p. 176.

9. Ibidem.             

10. Ibidem, p. 186.

11. Ibidem, p. 177.

12. Essa distinção é também conhecida como a distinção entre Trindade imanente e Trindade econômica.

13. Barth, 1961, IV/1, p. 177, grifo meu.

14. A razão de Barth para esta estrutura específica é a exegese bíblica. Ele recorre a Mateus 11:25–30 e Lucas 10:21–24, onde a comunhão de Jesus com o Pai, embora afirmada nos termos mais fortes possíveis (“Todas as coisas me foram entregues por meu Pai”), é descrita como um mistério oculto (“que escondeste estas coisas aos sábios e aos prudentes”) que não pode ser compreendida nem deduzida da sua forma externa manifestada. Ver: Ibidem, pp. 178–180.         

15. Ibidem, p. 187.

16. Em seu livro God and Creation in Christian Theology: Tyranny or Empowerment?, Kathryn Tanner argumenta de forma convincente que a única maneira de preservar a plausibilidade da agência criativa, imanente e ilimitada de Deus na criação é afirmando sua transcendência radical sobre a criação (ver: cap. 2 e 3, especialmente p. 82). Nesse sentido, pode-se argumentar que, uma vez que a absolutização do sofrimento como inerente à natureza divina compromete o sentido radical da transcendência divina, a atividade criativa e soberana de Deus no mundo — a única forma de garantir o cumprimento da salvação eterna — perde sua plausibilidade. Bruce L. McCormack, embora adotando uma abordagem diferente da minha, concorda que a imutabilidade divina é necessária para manter a razoabilidade da esperança cristã. Ver: Bruce L. McCormack, The Humility of the Eternal Son: Reformed Kenoticism and the Repair of Chalcedon, 2021, p. 194, onde ele narra uma interação pessoal com Jürgen Moltmann sobre essa questão.

17. Barth, 1961IV/1, p. 187.     

18. Ibidem.

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