QUEM SOMOS

ARTIGO

Mantendo a fé

Christian Smith|

12/07/2024

9d1912f0dc2690bcef87

Christian Smith

Professor de Sociologia e Diretor do Centro para o Estudo da Religião e da Sociedade da Universidade de Notre Dame. Smith é conhecido pela sua investigação centrada na religião, nos adolescentes e adultos emergentes e na teoria social. Smith obteve o seu mestrado e doutorado na Universidade Harvard e sua licenciatura no Gordon College. Foi professor de Sociologia na Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill durante 12 anos antes de se mudar para Notre Dame.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Smith, Christian. Mantendo a fé. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Recentemente, certo pastor brasileiro causou polêmica ao sugerir que a vida acadêmica, por si só, seria motivo para o abandono da fé por parte de jovens universitários. Sendo assim, sugeriu que os pais “não mandem os filhos para a faculdade”. Mas, afinal, que papel os pais têm na transmissão de sua fé para os filhos?

Christian Smith, renomado sociólogo americano, oferece aqui uma resposta para essa importante questão, fundamentada em cerca de duas décadas de estudos e pesquisas. Seu artigo foi publicado originalmente na revista First Things, que gentilmente concedeu permissão para a sua reprodução aqui em português. Cremos que nossos leitores, especialmente os que são pais e que se preocupam com a fé de seus filhos, serão extremamente beneficiados pelas informações contidas neste texto (N. E.).

❊ ❊ ❊

Quanto mais comprometidos religiosamente os pais são, mais desejam que os seus filhos cresçam acreditando e praticando a religião da família, e isso é especialmente verdadeiro para pais que são tradicionalistas ou conservadores no que diz respeito à religião. Nesse sentido, o desejo de transmitir a fé aos seus filhos em um mundo que não parece apoiar esse objetivo pode exercer grande pressão sobre pais religiosos para não “falharem”.

A maioria dos pais religiosos sabe que o número de americanos não religiosos cresceu nas últimas décadas, especialmente entre os jovens, e também que a cultura de seus filhos valoriza a autodefinição autônoma, espera algum grau de rebelião juvenil e exerce forças que consideram minadoras da religião. Todos os pais religiosos já ouviram histórias sobre filhos de pais devotos que, ao crescer, negligenciaram ou rejeitaram a religião. Isso pode ser muito doloroso e a preocupação de que isso possa acontecer com os próprios filhos pode ser um pesado fardo.

Depois de passar duas décadas estudando a vida religiosa e espiritual de adolescentes e jovens adultos americanos, passei a estudar a paternidade religiosa. Como sociólogo, não procurei produzir um livro do tipo “como fazer para”, mas sim compreender de que maneira os pais religiosos americanos abordam a tarefa de transmitir a religião aos seus filhos. No entanto, os meus anos de estudo sobre a dinâmica religiosa familiar intergeracional produziram resultados claros, que sugerem implicações para os pais interessados ​​na formação religiosa dos seus filhos.

A boa notícia é que, dentre todas as possíveis influências, de longe são os pais os que exercem a maior influência com repercussões na religiosidade de seus filhos. Dito de outra forma, a má notícia é que quase toda a responsabilidade humana pelas trajetórias religiosas da vida dos filhos recai sobre os ombros dos pais. A evidência empírica é clara, uma vez que em quase todos os casos nenhuma outra instituição ou programa chega perto de moldar os jovens religiosamente como os seus pais o fazem – nem congregações religiosas, grupos de jovens, escolas religiosas, missões e viagens de serviço, acampamentos de verão, escola dominical, ministros de jovens ou qualquer outra coisa. Esses outros elementos podem reforçar a influência dos pais, mas quase nunca a superam ou anulam. O que torna todas as outras influências quase insignificantes é a importância (ou não) das crenças e práticas religiosas dos pais americanos no dia a dia de suas vidas – não apenas nos dias santos, mas todos os dias, ao longo de semanas e anos.

A boa notícia é que, dentre todas as possíveis influências, de longe são os pais os que exercem a maior influência com repercussões na religiosidade de seus filhos.

Os jovens americanos que cresceram comprometidos religiosamente quase sempre tiveram pais muito comprometidos religiosamente. Contudo, a transmissão bem-sucedida da fé não é de forma alguma garantida, e os resultados variam amplamente, tendo em vista que os  filhos acabam fazendo suas próprias escolhas. Mas, deixando de lado os casos excepcionais, o que é quase garantido é que os pais americanos que não são especialmente empenhados, atentos e intencionais na transmissão da sua fé produzirão filhos que serão menos religiosos do que eles – se é que eles próprios o são –, e esse conhecimento pode incomodar alguns pais, mas pode também capacitá-los.

Então, o que pais religiosos e comprometidos podem fazer para aumentar as chances de criar filhos que, quando jovens adultos, acreditem e pratiquem alguma versão de sua religião? A primeira resposta é simplesmente serem eles mesmos: acreditar e praticar a sua própria religião de forma genuína e fiel, tendo em mente que os filhos não se deixam enganar por performances, ou seja, eles veem a realidade. E quando essa realidade é autêntica e vivificante, eles podem ser atraídos para algo semelhante.

acreditar e praticar a sua própria religião de forma genuína e fiel, tendo em mente que os filhos não se deixam enganar por performances, ou seja, eles veem a realidade.

Além deste conselho de “fazer o que falamos”, uma série de características específicas tendem a influenciar religiosamente os filhos. Aqui estão algumas das mais importantes.

Estilo parental. Embora se saiba que a influência do estilo parental varia um pouco em função de raça e etnia, em geral é verdade que os pais religiosos que criam com mais sucesso filhos religiosos tendem a exibir um estilo parental “autoritativo”. Esses pais combinam duas características cruciais. Primeiro, eles consistentemente exigem que seus filhos cumpram expectativas, padrões e limites claros e exigentes em todas as áreas da vida. Em segundo lugar, eles se relacionam com os filhos com muito carinho, apoio e cuidado expressivo. Não é difícil perceber por que esse estilo parental funciona melhor para criar filhos religiosos, uma vez que a combinação de expectativas claras e calor afetivo é poderosa na formação e desenvolvimento dos filhos.

Também não é difícil perceber por que as alternativas são piores. Pais rígidos e exigentes com os filhos, mas que demonstram pouco calor ou apoio emocional, adotam um estilo parental “autoritário” e, consequentemente, proporcionam aos seus filhos poucas oportunidades de conexão, envolvimento e identificação, dificultam-lhes assim a internalização de uma identificação com as preocupações dos pais. Já os pais que são puro afeto e empatia, mas que oferecem aos seus filhos poucos limites e padrões, exibem um estilo parental “permissivo”, sinalizando aos seus filhos que não importa muito o que fazem, inclusive no que diz respeito à religião. E, por fim, pais que não dão a seus filhos nem calor afetivo nem expectativas claras apresentam um estilo parental “passivo”, que também fornece pouca base para transmitir a religião.

Em suma, as crianças americanas são mais propensas a abraçar a religião dos seus pais quando desfrutam de uma relação com eles que expressa tanto clara autoridade parental quanto calor afetivo, pois esses filhos sabem que seus pais consideram padrões elevados precisamente porque os amam. Eles sabem também que, quando não cumprirem esses padrões, haverá consequências, mas essas consequências nunca incluirão a supressão do amor e do apoio. Os outros três estilos parentais não transmitem essas mensagens tão claramente e as consequências da transmissão da religião são empiricamente evidentes. Não funciona tão bem.

Rotina de conversa sobre religião. Uma segunda característica dos pais que transmitem com sucesso a fé e a prática religiosa aos filhos é que, como parte normal da vida familiar durante a semana, conversam com os filhos sobre coisas religiosas – o que acreditam e praticam, o que isso significa e implica, e por que isso é importante para eles. Nessas famílias, a religião faz parte da trama da vida cotidiana, de modo que a conversa sobre ela flui facilmente e, portanto, não está compartimentada em determinados horários da semana, nem é um tema incomum ou estranho. Em vez disso, essa conversa faz parte de “quem somos e com o que nos importamos”. Isso não significa que essas famílias falem sobre religião o tempo todo, mas indica para os filhos que a religião é importante e que é suficientemente relevante para as outras áreas da vida, de forma que surge naturalmente em discussões normais sobre uma série de tópicos.

Nessas famílias, a religião faz parte da trama da vida cotidiana, de modo que a conversa sobre ela flui facilmente e, portanto, não está compartimentada em determinados horários da semana, nem é um tema incomum ou estranho.

Novamente, esta é uma questão de pais e famílias serem autenticamente quem e o que são, e não de decidirem de repente fazer sermões. Assim, juntamente com a importância da fé religiosa pessoal dos pais e a consistência de sua prática religiosa está esta variável: o quanto se fala de religião em casa durante a semana. Os filhos que mais tarde praticam alguma forma da religião dos seus pais relatam que a religião era um tema frequente de discussão em casa durante a sua juventude, ao passo que aqueles que dizem que a religião raramente ou nunca era discutida têm muito menos probabilidade de se tornarem verdadeiramente religiosos mais tarde.

Os pais também têm maior probabilidade de conseguir transmitir a religião aos seus filhos se permitirem que estes explorem e expressem as suas próprias ideias e os seus próprios sentimentos na sua caminhada, sem, no entanto, deixar que as discussões se transformem em um vale-tudo relativista. Isso significa conceder a liberdade de considerar dúvidas, complicações e alternativas sem medo de condenação, em combinação com o envolvimento sério dos pais com os seus filhos, expressando-lhes suas próprias crenças, razões e esperanças. Os pais que batem o martelo em qualquer coisa considerada inaceitável ou que transmitem conforto se acomodando a “qualquer coisa” terão menos sucesso.

Canalização para internalização. Eu disse anteriormente que as influências não parentais – congregações, grupos de jovens, escolas religiosas, e assim por diante – são pequenas em comparação com a influência dos pais, mas isso não significa que esses outros fatores sejam irrelevantes. Eles podem fazer a diferença na formação religiosa dos jovens, mas normalmente isso se dá porque pais religiosamente comprometidos e intencionais “providenciam” isso.

Os sociólogos da religião chamam isso de “canalização” religiosa. A ideia é que os pais canalizem (direcionem) os seus filhos para envolvimentos e relacionamentos que reforcem (e não substituam) a sua influência parental mais direta. Canalizar significa induzir, apresentar e orientar sutilmente os filhos nas direções religiosas “certas”. Uma boa canalização é proposital e até estratégica, mas não controladora ou autoritária. Ela cria oportunidades, propicia contatos e incentiva o envolvimento, mas não coage nem suborna crianças para a religião.

O objetivo da canalização religiosa é que os filhos personalizem e internalizem a sua fé e identidade religiosa ao longo do tempo. Quando a canalização é eficaz, os filhos, à medida que se aproximam da idade adulta independente, pensam em si mesmos mais como pessoas que acreditam e praticam a sua própria fé, em vez de crianças que acompanham os seus pais. Em outras palavras, a canalização propicia uma variedade de influências na vida dos filhos que ajudarão essa transição a acontecer.

A pesquisa sugere que, entre as mais importantes destas influências de canalização, está a presença de adultos em congregações religiosas que não têm parentesco com a família, mas que conhecem bem as crianças e podem envolvê-las em conversas sobre temas sérios, para além de conversas superficiais. Quanto mais esses adultos estiverem presentes, mais a igreja, o templo, a sinagoga ou a mesquita será percebida como uma comunidade ou uma família ampliada, o que é por si só uma forte força de ligação. Os pais que canalizam eficazmente sabem como encorajar o desenvolvimento de tais relacionamentos congregacionais para os seus filhos.

Pais religiosos podem “canalizar” seus filhos de outras formas eficazes, e uma delas é defender investimentos congregacionais em grupos de jovens e ministros de jovens de qualidade, e depois promover o envolvimento dos filhos neles. Outra é prestar atenção a quem são os amigos dos filhos e incentivar amizades mais estreitas com aqueles cuja influência parece mais positiva. Os pais podem envolver as suas famílias em retiros religiosos, projetos de serviço e outras atividades que os filhos possam achar divertidas e onde possam construir relacionamentos. Dependendo da família e das circunstâncias, expor os filhos às formas corretas de meios de comunicação religiosos, acampamentos de verão e educação religiosa pode adicionar “camadas” extras de contatos, experiências e modelos religiosos, o que aumenta as chances de que a fé e a prática religiosa “assumam” uma forma pessoal e internalizada. Independentemente de como a canalização seja feita, o objetivo é facilitar, sem coagir, ligações religiosas, contatos e crescimento.

Importante aqui é enquadrar a formação religiosa como uma série de passos em direção à prática adulta, e não como requisitos para a “graduação” religiosa. Os ritos de passagem religiosos, como a crisma e os bar e bat mitzvahs, podem ser experiências formativas importantes, mas também podem passar a ser vistos como obrigações que as crianças precisam cumprir para “se livrarem” e apaziguar os pais. Sendo assim, é importante, embora muitas vezes difícil, evitar essa perspectiva, pois, quando os envolvimentos religiosos são definidos como requisitos para a graduação,¹ eles facilitam involuntariamente o abandono da religião.

Importante aqui é enquadrar a formação religiosa como uma série de passos em direção à prática adulta, e não como requisitos para a “graduação” religiosa.

Aceitar as realidades descritas anteriormente pode ser difícil para muitos pais. Para alguns, a responsabilidade parece esmagadora, ao passo que outros temem que, ao se esforçarem demais para socializar religiosamente os filhos, acabem provocando a rebelião. Outros, ainda, sentem-se sobrecarregados por complicações como cônjuges que não os apoiam, doenças mentais na família, divórcio e outros fatores fora de seu controle. Além disso, certos pais abraçam a tarefa com tanta seriedade que são esmagados pela dúvida e pela culpa quando seus filhos não evoluem como o esperado ou planejado.

Vale lembrar que nada nesse processo é garantido. A vida é complicada e, afinal, os filhos é que são os agentes do seu próprio desenvolvimento. É verdade que os pais têm uma grande influência religiosa sobre os filhos, mas essa influência nunca é completa, controladora ou infalível. Então, o que os pais podem fazer – na verdade, tudo o que podem fazer – é praticar nas suas próprias vidas a fé que esperam que os seus filhos adotem, construir relacionamentos calorosos e autoritativos com seus filhos, estarem atentos e serem intencionais ao orientar os filhos em relacionamentos e atividades que possam ajudar a personalizar a religião internamente. E, então, orar e esperar que as forças divinas nas quais eles acreditam conduzam seus filhos a uma vida de verdade, bondade e beleza.

Tradução: Roberto Covolan

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Obtenção de um certo título ou status religioso (N. T.).

Outros artigos [n. 4]

deva-darshan-prmk-GVCBRo-unsplash
Ninguém paga meus boletos
jon-tyson-ks8RiLnKs0k-unsplash
Um segundo messias?
annie-spratt-d_mzrEx6ytY-unsplash
A resposta divina ao problema emocional do mal
pexels-jibarofoto-2258252
Racionalidade não é tudo
WhatsApp Image 2024-07-02 at 15.21

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!