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Ninguém paga meus boletos

Individualismo, ética e o chamado à retidão

Tiago de Melo Novais|

16/08/2024

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Tiago de Melo Novais

Graduado em Teologia pela FTSA, mestre em Ciências da Religião pela PUC Campinas e doutorando em Ciências da Religião pela UMESP, com período de pesquisa na Yale Divinity School. É editor assistente na Academia ABC² e fellow do programa Life Worth Living – Yale Center for Faith and Culture.

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Como citar

Novais, Tiago de Melo. Ninguém paga meus boletos: individualismo, ética e o chamado à retidão. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Conscientes ou não, estamos já habituados com os ambientes que nos estimulam uma disposição individualista. No trabalho, a competição com a performance e a produtividade dos colegas nos leva a pensar que a jornada profissional é sempre cada um por si. Na formação escolar e universitária, a demonstração de quem sabe de mais ou de menos dá a impressão de que estamos constantemente atrás dos demais aprendizes na corrida que só premiará alguns poucos no futuro. Nas redes sociais, a comparação com as conquistas profissionais, com a beleza corporal, com os astronômicos likes alcançados, fazem parecer que precisamos nos engajar com o público para receber igual recompensa. O que a soma desses ambientes imprime em nós é uma forma de vida em que não cabe muita gente além deste eu que ocupa a maior parte do espaço na economia da atenção e da preocupação do nosso ser interior. Ao seu lado, um restritíssimo número de pessoas é digno de espaço: filhos e filhas, o companheiro ou companheira, os amigos e amigas que nos são como irmãos, e raras vezes, uma cota de estranhos que nos rouba a atenção por alguma razão especial.

Não é difícil perceber que o individualismo se tornou tão familiar que nem sequer nos damos conta de sua presença. E como poderíamos, já que um dos seus efeitos é uma “dormência ética” que age inibindo o dever moral para com o outro e disfarçando a dependência que dele temos? De fato, a disposição individualista está profundamente incorporada em nossa consciência, e expressões como “não devo nada a ninguém”, “ninguém paga meus boletos”, “eu não tenho nada que ver com o problema dele” já nos são vernaculares. Mas não precisa ser assim. Podemos cultivar a esperança de viver (um pouco) melhor.

Não é difícil perceber que o individualismo se tornou tão familiar que nem sequer nos damos conta de sua presença.

Uma forma de pôr a questão é refletir sobre a responsabilidade humana. Esse é um dos tópicos centrais da ética. De forma contrária ao espírito atual, a ética nos desafia com questões como: por quem sou responsável? A quem presto contas? A quem devo meu compromisso? Naturalmente, é preciso responder que somos responsáveis por nós mesmos e por nossas ações. Contudo, a cada passo da vida, somos interpelados pela presença de outros. E é aí que a ética nasce. Quando nos damos conta de que a realidade não se rende ao nosso projeto próprio de ser (como diria Sartre), somos convidados a pensar no lugar do outro no eu.

O filósofo judeu Emmanuel Levinas é de grande ajuda neste tópico. Após presenciar as duas grandes guerras, mas sobretudo assolado pela Segunda Guerra Mundial devido à sua pertença étnica e religiosa, Levinas se pôs a refletir sobre a ética. Perceba, estamos falando de um período de horror e genocídio, onde o mal e a morte foram banalizados em pról da expansão do poder. Diante de um cenário assim, não seria surpresa se Levinas se dedicasse ao tema da solidariedade, ou da paz, como resposta ao antissemitismo que ameaçava extinguir os judeus na Europa. Em vez disso, o filósofo lituano funda uma ética centrada no tema da alteridade – principalmente na sua principal obra, Totalidade e infinito (de 1961), e em Ética e infinito, série de entrevistas de 1982.

A coisa funciona mais ou menos como se segue: assim como um despertador que toca às 6h da manhã, alertando para a necessidade de sair do conforto das cobertas e acordar para um novo dia, a cada encontro interpessoal que temos somos interpelados pelo outro e desafiados a lidar com sua alteridade, que suspende o nosso individualismo. Para Levinas, o encontro face-a-face é chave para o despertar da ética. Com a mesma importância que seu precursor Martin Buber dava ao “encontro”, Levinas ensina que a cada encontro tenho a oportunidade de responder à interrupção do fluxo egocêntrico e individualista que temos como padrão, e ao me deparar com a alteridade do outro, sou provocado a reagir à sua existência. Mais do que isso, o rosto do outro, como dizia Levinas, é uma “epifania”. De forma um tanto poética, falava que o rosto me revela o infinito: seja lá quem for, quem está diante de mim não pode ser apreendido, dominado, entendido na totalidade, e mesmo que eu o conheça bem (como conheço minha esposa ou melhores amigos), haverá nele um universo interior que permanecerá inacessível a mim – sua alteridade é “infinita”, como gostava de pôr.

Levinas ensina que a cada encontro tenho a oportunidade de responder à interrupção do fluxo egocêntrico e individualista que temos como padrão, e ao me deparar com a alteridade do outro, sou provocado a reagir à sua existência.

No mundo de Levinas, isso está diretamente ligado à realidade da guerra e o encontro com estranhos-inimigos. Isto é, defrontar-se face a face com o inimigo, que carrega no seu rosto o peso total de sua alteridade (alguém de outra nacionalidade, leal ao poder inimigo, pertencente à outra ideologia), obriga uma escolha ética: devo assassiná-lo? Devo me entregar? Não há tantas opções quando o assunto é a guerra, mas, mesmo assim, há uma escolha a ser feita. No fim das contas, a escolha é uma só: eu ou ele? Por quem sou responsável, por mim ou por ele? A quem eu devo meu compromisso? Bem, aqui a coisa fica interessante.

A ética da alteridade é justamente a proposta de uma inversão de prioridades, onde a responsabilidade e o compromisso por si próprio são postos em xeque quando a face do outro me interpela com um “chamado à retidão”. Como assim? Que chamado? Ora, aquele que diz, mesmo sem nenhuma palavra, que somos seres vulneráveis e necessitados; o chamado a me responsabilizar pelo outro e atender sua necessidade, mas desinteressadamente, sem esperar dele a recíproca. Assim, Levinas entende que o rosto do meu próximo é um “portador de uma ordem” para que eu tome a responsabilidade gratuita – “e inalienável, como se o eu fosse escolhido e único”.¹

Atender ao chamado (divino!) que se revela no rosto de alguém é o que Levinas chama de “santidade” – ou “retidão”, isto é, santo é aquele que opta por não assassinar (“Não matarás”), mas por se fazer responsável pelo outro; aquele que depõe o eu de sua soberania e escolhe priorizar um outro indivíduo à despeito de si mesmo – “cada um considere os outros superiores a si mesmo”, diz Paulo em Filipenses.

Serei mais claro. Pense na mais ordinária experiência das pessoas que moram em grandes cidades: se deparar em todo canto com pessoas que estão em situação de rua e miséria extrema. Enquanto não houver o face a face, são vultos sem rostos, mas tão logo os olhares se cruzem e um encontro aconteça, temos ali uma convocação que seu rosto me faz, aguardando por resposta – “O ser que se exprime impõe-se, mas precisamente apelando para mim da sua miséria e da sua nudez – da sua fome – sem que eu possa ser surdo ao seu apelo”.²

A própria presença do próximo me convida a agir em seu favor. Alguém, porém, pode questionar a falta de necessidade do outro, afinal, não são todas as pessoas que estão em pobreza, que são órfãos ou viúvas. A questão aqui é ainda mais fundamental. A vulnerabilidade, a necessidade e a nudez são aquelas que estão na constituição da nossa “condição humana” (Sartre, de novo). Somos todos vulneráveis e necessitados uns dos outros. Embora o individualismo trate de disfarçar com destreza as nossas mazelas, experimentamos com frequência nos encontros interpessoais que, tanto as nossas fragilidades quanto as dos outros, são desveladas. Eis aí o poder do encontro: proporcionar-nos um convite à retidão, que embora promova a minha liberdade, dando-me uma escolha para agir, também “suscita a minha bondade”, como diz Levinas.

Eis aí o poder do encontro: proporcionar-nos um convite à retidão, que embora promova a minha liberdade, dando-me uma escolha para agir, também "suscita a minha bondade", como diz Levinas.

Mas a ética da alteridade não é meramente uma filosofia política – no sentido de dirigir-se aos problemas que emergem da realidade social, como no contexto da guerra –, mas se pretende um reavivamento da filosofia qua filosofia. Em Levinas, esta categoria, anteriormente subestimada, ganha um novo fôlego: a alteridade torna-se a pedra fundamental para sua crítica ao pensamento moderno, radicalmente centrado no sujeito (no eu, ego, self – como quiser chamar). Um caso emblemático da filosofia moderna é René Descartes, que depois de examinar criticamente tudo o que entendia por verdade (a dúvida hiperbólica), descobriu que há uma consciência indubitável de si mesmo. Isto é, se algo realmente existe, certamente é de que há um eu, pois, se posso pensar, tenho consciência de que ao menos sou uma coisa pensante – um res cogitans, segundo ele. Ora, a consciência que tenho de mim mesmo eu não tenho de outro – pois à minha semelhança, só ele mesmo a pode ter. Estabelece-se, assim, a primazia do sujeito. Além disso, o resultado ético deste princípio é que cada um deve ter consciência de si, sendo responsável por sua própria vida acima de tudo o mais.

Em resposta, o que a ética da alteridade representa é a refação do esforço filosófico per se, que não inicia mais com o sujeito, mas com a retirada da sua centralidade em direção ao outro. No evento do encontro face a face, a alteridade do outro suscita a reflexão ética. Por isso, Levinas usa a expressão de Aristóteles, dizendo que no lugar da metafísica, a filosofia primeira é, na verdade, a ética. A ética antecede as formulações sobre o ser (objeto da metafísica clássica: o ser enquanto ser), porque o encontro que tenho com alguém, concreto e situado na história, é anterior à apreensão que minha consciência faz do meu próprio ser e do ser de outrem. Para ele, a filosofia inicia-se aí.

Sem mais digressões teóricas, importa para nós reforçar o que foi dito, confrontando nossa realidade com um novo horizonte de possibilidade, a saber, a possibilidade de driblar o individualismo e aceitar a proposta radical que primeiro recebemos de Jesus, seus apóstolos, mas também de filósofos de alto calibre como Buber, Levinas e Paul Ricoeur – este último merece um tratamento individual ao qual posso me dedicar em uma oportunidade futura. A proposta de tornar-me responsável pelo outro e tê-lo como mais importante que eu mesmo.

A mania dos europeus de hifenização dos seus neologismos pode ser útil. Para Levinas, a ética da alteridade é a disposição em depor o “ser-para-si” e o “ser-em-si”, e o substituir com o “ser-para-o-outro”. Tornar-me infinitamente responsável, desinteressadamente comprometido com o outro: eis aí a santidade.

No mundo de hoje, o afastamento uns dos outros é intensificado pela tecnologia, pela força da competição capitalista e pelas aspirações individuais. Embora viver segundo o fluxo de nossa sociedade individualista seja certamente conveniente, estou convencido de que não é a melhor saída, nem para nós hoje, nem para as gerações futuras. Sem utopias, o que podemos aprender de Levinas é que enquanto houver encontros, haverá possibilidades. O segredo está aqui. Resistir ao impulso de me pôr em primeiro lugar e atender ao chamado à retidão que o encontro face a face me proporciona.

 

1. Emmanuel Levinas, Violência do rosto, 2014, p. 28.

2. Emmanuel Levinas, Entre nós: ensaios sobre a alteridade, 2004, p. 179.

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