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O lugar da sacralidade em meio ao Antropoceno

Ed Ney G. Braga|

02/01/2024

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Ed Ney G. Braga

Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Graduando em Psicologia pelo Centro Universitário Maurício de Nassau.

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Como citar

Braga, Ed Ney G.. O lugar da sacralidade em meio ao Antropoceno. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

O teólogo e historiador canadense Norman Wirzba já é um nome consolidado nos debates contemporâneos sobre a interação entre o cristianismo e a contemporaneidade, e Nossa vida sagrada é uma demonstração inequívoca do mérito desse status. A obra se propõe a traçar uma nova “topografia moral”¹ como forma de responder aos dilemas ambientais do Antropoceno.² Por meio de uma rica coleção de insights recolhidos da teologia, da biologia, da antropologia, da filosofia, da sociologia, da economia e até mesmo da literatura, Wirzba delineia uma proposta multifacetada, erudita e sensível que busca lidar com o lugar do ser humano em relação à natureza, a outros seres humanos e a Deus.

Meu objetivo aqui será, em primeiro lugar, apresentar as propostas de Wirzba nas três partes nas quais o livro consiste, e, em seguida, traçar alguns comentários críticos que apontam, ao mesmo tempo, para a pertinência da obra e para alguns dos possíveis problemas de sua argumentação, especialmente filosóficos e teológicos.

Uma voz profética ecoa por todo o texto de Nossa vida sagrada. A Parte 1, em especial, se desenvolve com a indignação e o senso de uma desgraça próxima que ecoa o estilo de autores bíblicos como Jeremias e Joel. Nela, Wirzba traça um diagnóstico sobre o Antropoceno que não se restringe a um catálogo de atualidades ou a um conjunto de previsões catastróficas sobre um futuro próximo. Assim como para esses profetas hebraicos, para Wirzba os caminhos históricos que trouxeram os seres humanos até o dilema contemporâneo são tão importantes quanto o status atual desse dilema ou seus iminentes desdobramentos.

Wirzba percebe que no Antropoceno opera uma recusa cada vez maior da criaturalidade do ser humano, sendo essa recusa a raiz de comportamentos e ideologias de escravização da Terra e da redução de seu papel a um palco inerte e passivo no qual a humanidade se desenvolve à revelia das condições de sua própria sobrevivência. Individualismo, colonialismo, racismo, escravismo, transumanismo e neoliberalismo se entrelaçam num padrão de rejeição humana pela natureza enquanto criação e pelo próprio ser humano enquanto criatura. A criação de sistemas de trabalho industrial degradantes e alienantes, a pseudociência criogênica do casal More³ e a marginalização de Sócrates em relação ao seu corpo físico⁴ são algumas das tendências que funcionam como fortes pinceladas com as quais o autor desenha o Antropoceno e seus precedentes em suas lógicas de exploração e apropriação. Embora Wirzba reconheça que algumas dessas tendências trouxeram enormes avanços, predomina no argumento um tom extremamente crítico.

Wirzba percebe que no Antropoceno opera uma recusa cada vez maior da criaturalidade do ser humano, sendo essa recusa a raiz de comportamentos e ideologias de escravização da Terra e da redução de seu papel a um palco inerte e passivo no qual a humanidade se desenvolve à revelia das condições de sua própria sobrevivência.

Mas, como em todo processo de tratamento de uma doença, diagnosticar não basta; buscar a cura e aplicá-la são os próximos passos, expostos a partir da Parte 2 do livro, que pode ser considerada, em grande medida, um exercício modificado de teologia natural. Wirzba utiliza processos naturais como exemplos complexos que podem auxiliar na formação de insights morais robustos. Por exemplo, o autor concebe a relação de enraizamento da planta com o solo como uma maneira de recuperar a concepção cristã do ser humano como uma criatura. Sob essa perspectiva, uma criatura é alguém que recebe sua dignidade e suas potencialidades de um Criador, cuja vida está enraizada e sintonizada com locais e comunidades, e cuja liberdade consiste na fidelidade a uma malha de relações de dádiva (contrastadas a relações de dívida e acumulação).

Com a noção de malha (tomada emprestada do antropólogo britânico Timothy Ingold), Wirzba busca comunicar a intuição de que as interações entre criatura e criação são entrelaçamentos mutuamente constitutivos, em vez de meras aglomerações arbitrárias entre agentes autônomos, ou associações mutuamente excludentes nas quais, para que um indivíduo sobreviva, o outro deva ser necessariamente subjugado e eliminado. Ainda aqui a veia crítica do autor permanece. Comentários sobre a cisão existente entre as origens de nossos alimentos e o contexto no qual eles nos são apresentados para consumo, sobre o desenraizamento que decorre da valorização excessiva do status exclusivo do ser humano em relação às plantas e aos animais, e até mesmo sobre a marginalização de um léxico ligado à vida no campo em comparação com a vida urbanizada servem para evidenciar a urgência de um retorno à sacralidade da criação.

O desenvolvimento mais explícito dos contornos dessa noção de sacralidade ocorre na parte 3, a mais teologicamente densa do livro. Wirzba propõe a sacralidade em oposição a uma concepção mecanicista e niilista da criação, na qual o universo e seus componentes são apenas fragmentos desconectados de componentes sem nenhuma finalidade, sentido ou dignidade independente de uma atribuição feita por seres humanos. Para o autor, recuperar a sacralidade da criação (manifesta na tradição judaico-cristã, por exemplo, nos conceitos de Shabbath e shalom) é concebê-la como algo belo e bom, cujo sentido é externamente atribuído por Deus numa expressão enérgica de seu amor, para o crescimento e florescimento mútuo de todas as suas partes. Novamente, o autor assinala que a negação dessa sacralidade, seja na história, na biologia ou na ética, tem consequências catastróficas.

Wirzba propõe a sacralidade em oposição a uma concepção mecanicista e niilista da criação, na qual o universo e seus componentes são apenas fragmentos desconectados de componentes sem nenhuma finalidade, sentido ou dignidade independente de uma atribuição feita por seres humanos.

Um enfoque cristológico na criação também encontra seu espaço aqui. Wirzba apresenta Jesus Cristo como a chave hermenêutica que sinaliza da forma mais supremamente robusta não apenas a origem da criação, mas o seu propósito de ser incluída no plano redentivo de Deus. O mundo criado é aberto para a agência de Cristo, pois está pessoalmente relacionado à presença amorosa de seu Criador.⁵ Além disso, Cristo é apresentado como o paradigma ético de uma interação com a realidade criada e com a realidade do Criador que leve em conta a reciprocidade de dádiva e amor entre ambos. Wirzba também desenvolve em mais detalhes a noção de criaturalidade, com uma argúcia que caminha elegantemente desde a crítica pós-estruturalista da filósofa Judith Butler a uma concepção autocentrada de “eu”, até os comentários do teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer aos primeiros capítulos de Gênesis. O livro encerra-se com alguns de seus mais ricos insights, nos quais a sacralidade é relacionada com processos multifacetados como o trabalho, reformas econômicas e a criatividade artística, até acontecimentos cotidianos tipicamente considerados banais, como a alimentação.

O mundo criado é aberto para a agência de Cristo, pois está pessoalmente relacionado à presença amorosa de seu Criador.

O diagnóstico e a solução propostas em Nossa vida sagrada exigem uma ponderação séria, lenta e maravilhada não apenas por cristãos, mas por qualquer pessoa minimamente ciente e preocupada com a crise ambiental contemporânea. Alguns méritos da obra ainda merecem ser mencionados. Filosoficamente, a proposta de uma ontologia relacional (já antecipada na teologia por pensadores como Karl Barth, Joseph Ratzinger e Thomas F. Torrance) é um dos desdobramentos mais fascinantes do diálogo entre a fé e a ciência. Outra das forças argumentativas de Wirzba é ligar uma teologia da participação ao exercício da vocação humana de estar presente para a criação.⁶ É comum que a noção de participação apareça na teologia cristã em discussões a respeito de como Deus se relaciona com o mundo ou sobre o destino escatológico dos salvos. Contudo, para Wirzba, é quando o ser humano interage com a criação, reconhecendo a sacralidade e a dignidade que lhe são próprias, que ele participa do poder divino que ama, aprecia, preserva, e faz florescer a ambos.

para Wirzba, é quando o ser humano interage com a criação, reconhecendo a sacralidade e a dignidade que lhe são próprias, que ele participa do poder divino que ama, aprecia, preserva, e faz florescer a ambos.

No entanto, algumas críticas ainda podem ser feitas, todas elas em alguma medida relacionadas com a ontologia relacional proposta pelo autor. A primeira delas diz respeito à noção de que o florescimento dos seres vivos é indissociável da realidade comunitária entre eles. Wirzba parece falhar em perceber o enorme potencial que uma ontologia trinitária possui para enriquecer essa noção, ainda mais dado o extenso diálogo que essa ontologia possui com o debate filosófico sobre a relacionalidade ontológica (a obra de John Milbank e de outros autores da chamada Ortodoxia radical atestam fortemente esse fato).⁷ É surpreendente, dado o caráter explicitamente cristão da proposta do livro, que todas as referências a essa doutrina tão especificamente cristã estejam restritas a meras notas de rodapé!

Um segundo problema diz respeito ao fato de que Wirzba parece oscilar conceitualmente entre a noção de que a sacralidade da criação é secundária, apropriadamente atribuível somente ao Deus que a criou, e a noção de que essa sacralidade é uma propriedade intrínseca da realidade criada enquanto tal. A primeira alternativa me parece bastante coerente com a ontologia relacional, na qual a participação da criação na dinâmica criativa e amorosa do poder de Deus é o fundamento último de sua sacralidade; concebida fora dessa dinâmica, essa sacralidade é, na melhor das hipóteses, uma ficção com boas motivações. Porém, a segunda opção aparece em inúmeras seções do livro e pode gerar alguma confusão mesmo em seu contexto particular, especialmente quando a noção da transcendência de Deus entra em jogo. Os apontamentos de Wirzba sobre a relação entre transcendência e imanência no contexto da sacralidade são muito interessantes,⁸ mas mereciam uma elaboração conceitual um tanto mais robusta para dispersar essa possível confusão.

Essa segunda crítica se relaciona também com uma terceira, que diz respeito às consequências escatológicas dessa ontologia relacional. Por exemplo, é claríssima a motivação de Wirzba ao lançar mão de metáforas como a da “simbiose” e da “malha” para conceber a relação entre ser humano e mundo. Mas, se a interação do ser humano com a Terra é tão simbiótica assim, o que isso pode significar em termos de redenção? Todo o gênero humano partilhará da obra redentora de Cristo em toda a criação? Se esse não é o caso, em que medida o destino escatológico de cada indivíduo humano e o destino da Terra na qual esse indivíduo habita podem ser distintos um do outro? É interessante o quanto Wirzba apela ao precedente do pensamento niceno e sua concepção filosófica de uma união sem mistura e uma distinção sem separação. Mas algumas das afirmações do livro parecem valorizar a mistura em detrimento da distinção, e isso aparentemente se aplica não apenas à interação entre ser humano e mundo, mas à própria relação entre Deus e mundo.

Feitas as críticas, é inegável que Nossa vida sagrada é um sopro de ar fresco, especialmente pelo fato de a voz de Wirzba ser profundamente informada pela erudição da tradição cristã da qual faz parte. É comum que, especialmente em algumas variações ocidentais dessa tradição, a ênfase excessiva numa escatologia catastrófica e individualista, fascinada pela noção de uma fuga a um outro mundo, seja usada como pretexto teológico para uma negligência da Igreja em relação à criação. Nossa vida sagrada, em contraste, segue a lógica de Romanos 8: a de uma indissociabilidade entre o destino escatológico do ser humano e o propósito redentivo de Deus na criação com um todo. A mensagem de Wirzba, da sacralidade como o fundamento de uma nova ética cristã para o Antropoceno, apesar de suas limitações, tem uma urgência e uma convicção preciosas como formas de pensar a missão da Igreja hoje em suas relações com a ciência, com outras religiões e com o planeta Terra.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023, p. 27.

2. O termo Antropoceno foi popularizado em 2000 pelo químico Paul J. Crutzen e diz respeito ao período a partir do século 18 no qual a atividade humana tornou-se o principal fator a determinar e modificar o funcionamento dos diferentes ecossistemas do planeta Terra.

3. Natasha Vita-More e Max More são um casal de autores e pesquisadores transhumanistas comprometidos com a noção de que a morte não é natural. Para eles, cabe aos seres humanos buscarem maneiras não apenas de superarem a própria mortalidade prolongando suas expectativas de vida, mas também de expandirem suas funções neurofisiológicas por meio da tecnologia. A Alcor Life Extension Foundation [Fundação Alcor para a Extensão da Vida], encabeçada por Max More, desenvolve tecnologias de criopreservação, isto é, a preservação de cadáveres humanos recém-falecidos em temperaturas baixíssimas com o objetivo de ressuscitá-los futuramente. A comunidade científica vê com alto grau de ceticismo atividades como as da Alcor, e o casal More é frequentemente acusado de promover a pseudociência e o charlatanismo.

4. Em seu diálogo com Fédon, o filósofo grego Platão descreve a morte de seu mestre Sócrates, condenado pelos governantes de Atenas a beber veneno pelo crime de corromper a juventude local. Sócrates aceita a morte com resignação e serenidade, consolando-se com a noção de que, por meio da morte, será enfim liberto de seu corpo, que o limita e o obriga a atender a necessidades inferiores. Um sentimento semelhante é o do filósofo neoplatônico Plotino, descrito por seu discípulo Porfírio como tendo vergonha de seu próprio corpo.

5. Wirzba, 2023, p. 319.

6. Ibidem, p. 390.

7. A Ortodoxia Radical é um movimento teológico anglo-católico fundado pelo teólogo John Milbank por volta dos anos 2000, e que inclui nomes como Catherine Pickstock, Graham Ward e Conor Cunningham. O movimento busca resgatar uma visão cristã ecumênica a partir de uma crítica da modernidade fundada na noção de “participação ontológica”. Essa participação, o fato de que todas as coisas partilham do Ser, tem como um de seus paradigmas a doutrina da Trindade, na qual, segundo o parâmetro do cristianismo niceno, identidade e diferença coexistem sem repulsão ou separação. Segundo a Ortodoxia Radical, essa concepção de uma coexistência harmoniosa entre o mesmo e o outro, entre o idêntico e o diferente, perde-se com o forte individualismo da modernidade e da pós-modernidade, para as quais esses pólos estão sempre em oposição ou contradição (pensemos, por exemplo, na expressão do filósofo francês Jean-Paul Sartre: “o inferno são os outros”). Essa concepção também torna muito difícil pensar nas relações entre os entes como relações de doação e dádiva, nas quais impera a reciprocidade da troca de dons, sejam eles sociais, políticos, econômicos, morais ou existenciais. Em vez disso, a relação primordial entre eles passa a ser a luta e a competição, um jogo de soma zero no qual pode existir apenas a acumulação dos dons, a disputa por eles, e a criação de dívidas e disparidades entre os que acumularam mais e os que acumularam menos; sair do jogo exigiria a auto aniquilação. Pensadores tão díspares como Thomas Hobbes, Nicolau Maquiavel, Augusto Comte, Sigmund Freud e Jacques Derrida, refletem, cada um a seu modo extremamente próprio, traços e desdobramentos desse paradigma. Ver: John Milbank, Radical Orthodoxy: A New Theology, 1998; e John Milbank (ed.), The Radical Orthodoxy Reader, 2009. Wirzba se utiliza bastante de uma crítica semelhante à cultura moderna e pós-moderna da acumulação e da disputa, o que torna ainda mais frustrante a ausência de um diálogo em Nossa Vida Sagrada com contribuições recentes que a dogmática trinitária cristã deu a essa crítica.

8. As páginas 260 e 305 trazem alguns exemplos.

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