QUEM SOMOS

SIMPÓSIO

Quem tem medo da evolução?

Matheus da Nobrega|

19/07/2024

Screenshot 2024-07-19 at 14.08.24

Matheus da Nobrega

Formado em Teologia pelo Seminário Evangélico Avivamento Bíblico e Engenharia Elétrica pelo Instituto Federal de São Paulo. Tem interesse em história da igreja e na relação entre fé, ciência e cultura.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Nobrega, Matheus. Quem tem medo da evolução? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Ao folhearmos o livro Criação ou evolução – precisamos escolher?, vamos nos deparar com um belíssimo convite para, assim como diz o salmista, proclamar com todo louvor que os céus declaram a glória de Deus (Sl 19:1). O propósito dessa obra é que “o ‘Livro da Palavra de Deus’ e o ‘Livro das Obras de Deus’ possam ser mantidos fielmente juntos, em completa harmonia”,¹ visto que não há contradição nas obras de suas mãos. Através das verdades contidas na natureza, as quais podem ser descobertas por meio da ciência, somos chamados a proclamar que toda a criação declara a glória de Deus. É esse convite que o autor nos faz.

Nesse livro, o teólogo e neurocientista Denis Alexander divide o debate em quatro partes. Na primeira, introduz os tópicos teológicos basilares, explicando a doutrina bíblica da criação e o que se entende do processo criativo divino. O intuito dessa parte é oferecer os princípios hermenêuticos essenciais e uma teologia bíblica saudável para leitura do livro de Gênesis, valorizando seu conteúdo, seu contexto e suas conexões com outras passagens em livros poéticos, proféticos e epistolares. Para o autor, compreender Gênesis é fundamental para todo o restante das Escrituras, pois não se pode deleitar no restante da narrativa bíblica a não ser que se entenda quem está sendo revelado nesses versos. Na segunda parte, são apresentados os principais conceitos da teoria da evolução à luz da ciência moderna, buscando “resumir para o público não especializado o entendimento científico atual sobre evolução”.² Essa parte pode ser ilustrada como um movimento em três estágios. O primeiro caracteriza-se pela definição de componentes-chaves básicos para a teoria da evolução: datação e genética. Como a evolução biológica é um processo lento, ocorrendo ao longo de bilhões de anos, os métodos de datação são fundamentais para definir essas idades. O segundo movimento demonstra que a evolução é um processo que ocorre em duas etapas: um mecanismo gerador de diversidade, como mutação, reprodução sexual e fluxo genético,³ seguido por um método para testar essa diversidade por meio da seleção natural: o processo no qual “os genomas que produzem organismos com taxas maiores de sobrevivência e reprodução tendem a ser transmitidos para as gerações seguintes”.⁴ Por último, vai apresentar os conceitos de “microevolução” e “macroevolução”, onde afirma três consensos científicos: a especiação ocorre; em alguns casos, pode ser observada ocorrendo durante o período de vida de um único observador; e que existe uma variedade de mecanismos alopátricos e simpátricos responsáveis pela especiação. O autor segue com uma série de exemplos de plantas, flores, peixes, insetos e aves, em suas novas espécies descobertas e contempladas.⁵ A evolução está presente no cotidiano de uma forma mais comum do que se pode imaginar, mas parece que a imagem fica assustadora, o céu muda de cor e o brilho nos olhos desaparece quando se diz que a especiação é resultado da evolução. Alexander busca mudar essa perspectiva.

A partir da terceira parte, são apresentados os argumentos científicos e teológicos, abordando os principais pontos de contato da teoria evolutiva com o texto bíblico e apontando a visão do criacionismo evolutivo como uma resposta científica, coerente e bíblica. Por fim, a conclusão traz um pedido de esperança: que o diálogo entre ciência e religião seja a forma adotada para a construção de uma relação saudável. Afinal, ao longo dos séculos, ambas adquiriram um enredo extraordinariamente diversificado, com mais episódios de diálogo do que de conflito,⁶ por isso o autor se propõe a abordar a relação entre ciência e religião de uma forma honesta.

Mergulhando na imensa argumentação apresentada no livro, a linha dourada que transpassa e une todas as partes da obra de Alexander é o questionamento da ideia de que cristãos supostamente precisam escolher entre criação ou evolução, como se fossem mutuamente excludentes. Nas palavras do autor, é “comum que para algumas pessoas a palavra ‘evolução’ soe como um tipo de filosofia sem Deus”,⁷ quase que um ateísmo, criando uma profunda aversão ao termo. Em outras palavras, é como se a evolução fosse um atentado à fé cristã e suas implicações trouxessem sérios riscos ao texto sagrado e, por isso, ela devesse ser totalmente rejeitada. Contudo, as coisas não são bem assim. De fato, a evolução é real e a Bíblia é verdadeira,⁸ contudo, aceitar que a teoria da evolução é a melhor forma de explicar a diversidade das espécies não implica um atentado à fé cristã.⁹ O texto bíblico tem um propósito bastante claro: narrar a história da salvação da humanidade por meio da morte e ressurreição de Jesus. A teoria da evolução também tem um propósito claro: explicar a origem da diversidade biológica no planeta Terra. Como se pode ver, os propósitos não são os mesmos, e a teoria da evolução não é um plano maligno para tomar o lugar de Deus como criador e sustentador de toda a realidade criada. Charles Darwin, ao contrário de causar propositalmente uma ruptura com a teologia natural de sua época,¹⁰ via a seleção natural como uma possível lei divina, sem nenhuma intenção de invalidar argumentos teológicos.¹¹ Toda crença de que há algo “intrinsecamente materialista, antirreligioso ou religioso na evolução”,¹² foi imputada posterior e exteriormente a ela. O próprio Darwin a apresentou como uma “teoria estritamente biológica”,¹³ esquivando-se em sua argumentação para afastar quaisquer implicações teológicas.

O texto bíblico tem um propósito bastante claro: narrar a história da salvação da humanidade por meio da morte e ressurreição de Jesus. A teoria da evolução também tem um propósito claro: explicar a origem da diversidade biológica no planeta Terra.

A teoria da evolução não é um atentado à fé cristã, mas a melhor maneira de explicar a diversidade biológica. Em razão disso, as objeções à evolução, as quais o autor dedica um honesto capítulo,¹⁴ partem de uma compreensão equivocada tanto da ciência e da evolução, como da teologia e da criação, ou seja, partem de problemas ficcionais. Sendo assim, adotar uma relação dialogal pode não apenas eliminar interpretações distorcidas, mas também trazer respostas satisfatórias às perguntas que essa teoria pode causar, gerando significado e sentido.

Toda a argumentação apresentada parte de uma visão integral da criação, onde não há separação com a totalidade da realidade criada por Deus e a compreensão de particularidades dela por meio da ciência. Aqui não há dualismo, dividindo a realidade em algo perfeito contra algo imperfeito – onde, é claro, a ciência ocuparia o lugar da imperfeição –, mas uma abordagem que parte de pressupostos verdadeiros sobre os dois livros de Deus. Enfim, a obra divina é infalível, mas a nossa interpretação pessoal dela não.

A comunicação de uma teologia saudável é um refrigério tanto para os que tinham receio da evolução como para os que buscavam dialogar com os dois livros de Deus. A originalidade da obra não está apenas no campo do significado, explicando questões complexas de forma clara e didática com profundo embasamento científico e teológico, mas também no campo do sentido, oferecendo respostas precisas para perguntas que nem todos os envolvidos no assunto querem responder. Afinal, precisamos escolher?

A comunicação de uma teologia saudável é um refrigério tanto para os que tinham receio da evolução como para os que buscavam dialogar com os dois livros de Deus.

A visão do criacionismo evolutivo apontada pelo autor parte do princípio de que todos os seus adeptos são, por definição, criacionistas,¹⁵ possuindo o privilégio de “desfrutar de todos os aspectos da criação divina, incluindo o entendimento tanto da paciência como do poder de Deus ao trazer à existência a presente ordem criada por meio do processo evolutivo”.¹⁶ O mesmo Deus que cria, continua criando.¹⁷ Vivemos em um mundo criado, moldado e sustentado por Deus,¹⁸ no entanto, interpretar um texto antigo é uma tarefa complexa, ainda mais quando se trata de uma língua como o hebraico antigo. Ao longo do tempo, muito se perdeu do sentido original de várias passagens e do significado primário de muitas palavras e expressões. Sem dúvidas, o livro de Gênesis possui diversas ressonâncias poéticas, expressões idiomáticas que na cultura hebraica eram facilmente compreendidas. Para nós, partir de um entendimento do contexto no qual o livro está inserido é o melhor caminho para compreender o que o autor bíblico quis dizer quando utilizou tal palavra ou expressão. Sendo assim, ao peregrinar pelo sentido, e não apenas pelo significado literal, Alexander lança luz àquilo que o público original provavelmente entendeu. Além disso, conhecer o contexto acrescenta nuances que permitem uma interpretação mais coerente do texto bíblico. Assim, para responder às questões teológicas da teoria da evolução para a leitura bíblica, o autor oferece uma profunda análise exegética do texto de Gênesis, valorizando o seu contexto e seu formato literário. Claramente, afirma o autor, “Gênesis não representa uma literatura científica tal como se conhece hoje”.¹⁹ Da mesma forma, não é poesia hebraica, apesar de apresentar ressonâncias poéticas, assim como não pode ser considerado história em nenhum sentido convencional do termo, visto que “descreve eventos criativos ocorridos antes de haver alguém para descrevê-los”.²⁰ Por isso, existem muitas considerações que indicam que a linguagem deve ser tratada de forma figurada. Para evitar resistência a essas considerações, afirmando ser uma interpretação influenciada pela evolução, o autor resgata pensadores anteriores que defendiam uma interpretação não literal de Gênesis, como Filo, Orígenes e Agostinho. Deborah Haarsma também oferece teólogos “pré-evolução”, como Tomás de Aquino e John Wesley, “pós-evolução”, como C.S. Lewis, B.B. Warfield e Billy Graham, e teólogos contemporâneos, como Tim Keller, John Walton e Alister McGrath; todos defendendo uma interpretação bíblica sem um conflito com a evolução, o qual “desaparece sob uma reflexão mais sustentada”.²¹

Portanto, a abordagem mais indicada para a literatura de Gênesis é que se trata de um “tratado teológico”. O objetivo não é “tratar, primariamente, sobre como as coisas começaram, mas sim sobre o porquê de elas existirem”.²² A Bíblia não é um livro científico, mas um livro teológico, e suas verdades teológicas não precisam de validação científica. Isso não quer dizer que a ciência não tenha o seu valor 一 aliás, muito pelo contrário 一, mas que crenças teológicas requerem justificativas teológicas, assim como crenças científicas requerem justificativas científicas. É por isso que qualquer leitura do texto bíblico que tenta dizer que a ciência o prova, ou o contrário, é altamente equivocada. Em outras palavras, é importante resistir à tentação de distorcer o texto bíblico apenas para ganhar pontos científicos.

A Bíblia não é um livro científico, mas um livro teológico, e suas verdades teológicas não precisam de validação científica.

Pode-se concluir que, embora Alexander não adote a ideia tradicional de “acomodação”, onde os autores bíblicos “sabiam de tudo que havia para se saber do mundo natural, mas escolheram, sob orientação do Espírito Santo, ‘facilitar’ a mensagem para o leitor comum”,²³ o autor defende que a Bíblia foi escrita para “o entendimento da salvação de toda a humanidade em todas as épocas, compostas por narrativas atemporais que não estão presas ao último avanço científico”,²⁴ permanecendo fiel à inspiração e autoridade divinas que, guiando a intenção dos autores dentro de seu contexto e de sua época, revelaram o propósito divino para solucionar o problema do pecado que separou criatura do Criador (Jo 1:29-30) e trazer salvação a toda a humanidade por meio da morte e ressurreição de Jesus Cristo (Jo 3:16). Cristo, aquele a quem o apóstolo João afirmou que todas as coisas foram feitas por meio dele, e sem ele nada do que foi feito se fez (Jo 1:3), e aquele a quem o apóstolo afirmou ser supremo sobre toda a criação (Cl 1:15). Assim como toda a Palavra de Deus, o livro de Gênesis aponta para Cristo, o logos divino, o primeiro e o último, a arché e o télos de toda a criação.

Ao mesmo tempo, os criacionistas evolutivos podem prosperar na comunidade científica, “confiantes de que, independente do que a ciência descubra de novo, eles poderão receber com alegria e trazer ainda mais glória a Deus, o Criador de todas as coisas”.²⁵

Aqui, o convite está feito. Um convite para a alegria da descoberta ao mesmo tempo que se deleita na alegria da adoração. Um convite para declarar que tudo o que existe, existe para o adorar.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Denis R. Alexander, Criação ou evolução – precisamos escolher?, 2017, p. 15.

2. Ibidem, p. 54.

3. Ibidem, p. 83. 

4. Ibidem, p. 77.

5. Ibidem, p. 97-99.

6. Peter Harrison, “‘Ciência’ e ‘Religião’: Construindo os Limites”, Revista de Estudos da Religião, v. 7, n. 1, 2007. Clique aqui para acessar.

7. Alexander, 2017, p. 53.

8. Ken Ham et al., A Origem: quatro visões cristãs sobre Criação, Evolução e Design Inteligente, 2019, p. 159.

9. Charles Darwin, Origem das espécies, 2018.

10. Nelio Bizzo, “Darwin e o Rompimento com a Teologia Natural de Paley”, Brazilian Geographical Journal: Geosciences and Humanities Research Medium, v. 1, n. 1, 2010.

11. Jon H. Roberts, “Que Darwin destruiu a teologia natural”, in Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre Ciência e Religião, 2020, p. 217-228.

12. Alexander, 2017, p. 323.

13. Ibidem, p. 169.

14. Ibidem, p. 131-150.

15. Ibidem, p. 23.

16. Ibidem, p. 187.

17. Ibidem, p. 39.

18. Ibidem, p. 42

19. Ibidem, p. 153.

20. Ibidem, p. 154.

21. Ham, 2019, p. 161.

22. Alexander, 2017, p. 35.

23. Ibidem, p. 52.

24. Ibidem.        

25. Ibidem, p. 187.    

Outros textos do simpósio

bruno-litaldi--4Jc4IYkmXY-unsplash
Criacionismo Evolutivo
WhatsApp Image 2024-07-10 at 09.03

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!