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ARTIGO

Racionalidade não é tudo

O lugar da razão na apologética pressuposicionalista

Lucas Rathlef Lisboa|

19/07/2024

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Lucas Rathlef Lisboa

Pastor na Igreja Batista Fonte em Campinas (SP). É licenciado em teologia pelo Seminário Bíblico Palavra da Vida (Atibaia- SP) e bacharel pela Unicesumar (Maringá - PR). Possui mestrado (MDiv) em estudos histórico-teológicos pelo Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper (São Paulo - SP).

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Como citar

Lisboa, Lucas. Racionalidade não é tudo: o lugar da razão na apologética pressuposicionalista. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 4, jul-dez, 2024.

Quando Jesus Cristo diz aos discípulos para fazerem discípulos de todas as nações (Mt 28.19-20) e Pedro escreve sobre a prontidão que deve haver nos cristãos para apresentarem a razão de sua fé (1Pe 3.14-17), percebe-se a urgência e a importância da missão em que os cristãos, invariavelmente, estão envolvidos. É necessário, portanto, que o esforço em buscar os perdidos seja uma das maiores prioridades da Igreja. Isso também suscita a seriedade com que essa atividade deve ser enfrentada, cientes de que o Senhor a considera de grande importância.

No entanto, ao longo dos anos, diversas abordagens apologéticas têm surgido.¹ Um dos fatores fundamentais para a diversidade de propostas é quanto ao lugar em que a razão humana possui no processo de argumentação, convencimento e defesa da fé. 

Cornelius Van Til foi, sem dúvidas, alguém que transformou o cenário apologético ao desenvolver a chamada apologética pressuposicionalista. A escola pressuposicionalista tende a mostrar o papel que os compromissos do coração e as pressuposições individuais possuem no processo de conhecimento.² Por esse motivo, a revelação de Deus é priorizada e a razão (que também possui seus compromissos) deve estar submissa à Palavra de Deus. O pressuposicionalismo começa e termina com a autoridade – não uma autoridade cega, mas uma autoridade enraizada na revelação de Deus.³

Apesar de seu nobre e genuíno interesse, sua proposta metodológica não deixou de ser ferozmente criticada. Há, inclusive, quem prefira chamá-la de apologética pactual em vez de pressuposicionalista, pois esse termo implicaria raciocínio circular, fideísmo e salto de fé.⁴ O que se segue é um esboço sobre o lugar que a racionalidade humana ocupa dentro dessa escola apologética.

O incrédulo não é capaz de interpretar corretamente as evidências

Para Van Til, há uma diferença na epistemologia entre um cristão e um incrédulo, e, por esse motivo, o apelo aos critérios racionais, bem como aos fatos brutos e às evidências, não podem ser entendidos como o ponto de contato para a abordagem apologética. Ele diz:

A Escritura em nenhum lugar apela à razão não regenerada como um juiz qualificado. Pelo contrário, a Escritura afirma repetidamente que a razão não regenerada é totalmente desqualificada para julgar. Embora a Escritura não recorra ao homem natural como um juiz competente e, apesar disso, o considere cego para as coisas espirituais, a Escritura continua a responsabilizá-lo por sua cegueira.⁵

Na abordagem pressuposicional, a incapacidade da crença por parte do incrédulo é culposa. Quanto a isso, ele diz: “A sua inabilidade para ver é a sua indisposição para ver”.⁶ Os não cristãos estão em oposição ao seu Criador, e nunca em um território neutro e imparcial, logo, haverá implicações para a maneira como interpretarão as evidências. Davi Charles Gomes diz: “Os cristãos deveriam estar conscientes de que, sob os temas da interpretação de fatos e evidências racionais, jazem assuntos éticos sobre os quais cristãos e anticristãos não podem concordar”.⁷

Por esse motivo, não se pode esperar que eles sejam honestos para avaliar imparcialmente as evidências ou argumentos que são apresentados.⁸ Novamente, a questão não é a evidência ou o argumento em si, mas o pressuposto de rejeição e fuga de Deus que o incrédulo, necessariamente, possui.

Van Til adverte acerca dos perigos presentes na igreja quando julgam que o pecador precisa apenas de informações verdadeiras, ao passo que negligenciam que estes também precisam de uma interpretação verdadeira, que seria possível apenas ao serem feitas novas criaturas.⁹ Greg Bahnsen diz:  “A oposição do não cristão à verdade sobre Deus ou ao evangelho não surge de problemas intelectuais legítimos com a fé, mas sim de um coração rebelde que busca justificativas racionais”.¹⁰

Van Til adverte acerca dos perigos presentes na igreja quando julgam que o pecador precisa apenas de informações verdadeiras, ao passo que negligenciam que estes também precisam de uma interpretação verdadeira, que seria possível apenas ao serem feitas novas criaturas.

Vale ainda ressaltar, conforme William Edgar, que o pressuposicionalismo “não minimiza a lógica, tampouco as evidências, mas as incorpora em uma estrutura na qual elas podem fazer sentido”.¹¹ A estrutura é o Deus absoluto, de quem, por meio de quem e para quem são todas as coisas (Rm 11.36).

O funcionamento apropriado da razão se dá dentro do teísmo cristão

Para Van Til, o cristianismo é extremamente racional e o único sistema de pensamento racional.¹² Somente dentro do teísmo-cristão a racionalidade humana encontra a sua plena expressão, e somente dentro desse contexto a razão pode ser bem-sucedida e encontrar um método de operação verdadeiro.¹³ Uma interpretação racional da vida é impossível de ser encontrada fora do teísmo-cristão e, por esse motivo, os cristãos não devem se desculpar ou estar receosos ao apresentar suas considerações sobre a esperança que possuem, ainda que o incrédulo não consiga compreender plenamente cada detalhe que está envolvido na fé cristã.¹⁴

Assim, vale ressaltar que isso não significa que incrédulos não sejam capazes de pensar logicamente, tampouco que estes não sejam dotados de grandes habilidades intelectuais, mas que eles utilizam isso para reprimir a Verdade. Van Til não tem problema em admitir que não cristãos podem, e com frequência o fazem, superar os cristãos em inteligência. Desse modo, percebe-se que a antítese é ética, e não metafísica.¹⁵ Não se pode negar que o conhecimento é possível, ainda que os incrédulos estejam com uma “disposição mental reprovável”.¹⁶

Van Til não tem problema em admitir que não cristãos podem, e com frequência o fazem, superar os cristãos em inteligência. Desse modo, percebe-se que a antítese é ética, e não metafísica.

O uso da razão não é o mesmo entre o cristão e não cristão

Para Van Til, um dos erros da apologética clássica é o apelo à razão do homem natural, na expectativa de que, por meio de argumentos dedutivos, eles cheguem a considerar o teísmo e, então, o cristianismo.

O incrédulo, mediante o uso de sua racionalidade, será apenas capaz de concluir sobre a loucura da mensagem da cruz (1Co 1.18-25). Comunicar essa mensagem, pressupondo que a razão é um território comum entre ambos, é um erro, pois a um foi dado a conhecer os mistérios de Deus, enquanto o outro empregará seus maiores esforços para suprimir e fugir do Deus que já conhecem.

Alguns sugerem que a postura vantiliana levaria a uma indiferença com a racionalidade e a missão da Igreja. Entretanto, essa abordagem enfatiza que cabe ao cristão a comunicação da fé cristã de maneira racional. A razão, entretanto, jamais é tida como autônoma, mas dependente e subordinada a Deus.

Implicações para a abordagem apologética

Por uma pregação à integralidade do homem

Quando a racionalidade humana assume um status de primazia dentro do “ecossistema cristão”, alguns desdobramentos podem ser claramente observados. John Frame aponta que aspectos significativos da vida cristã, como santificação, adoração, discipulado, entre outros, acabam sendo influenciados por uma aproximação meramente acadêmica,¹⁷ o que seria o exercício de uma filosofia racionalista, não do cristianismo. Sobre esse assunto, ele se manifesta da seguinte maneira:

A Bíblia é um livro muito emocional, além de ser um livro com um conteúdo intelectual profundo. Ela não revela as verdades de Deus meramente como proposições acadêmicas. Ela conta histórias, emite comandos, repete-se, canta canções, oferece orações, nos dá auxílios visuais (símbolos, especialmente os sacramentos) e nos chama a saudar uns aos outros com um beijo santo. Paulo interrompe seus argumentos lógicos em Romanos para exclamar louvores. Eu acredito que as pessoas reformadas precisam recuperar sua perspectiva nessas áreas.¹⁸

Certamente, excessos foram e estão sendo cometidos mediante um apelo meramente sentimental. Ainda assim, o apologeta cristão pode e deve defender a fé e proclamar o Evangelho ciente de que está fazendo isso diante do homem em sua integralidade, e não somente para um aspecto dele, por mais glorioso que seja (a racionalidade, por exemplo).

Cabe ao apologeta cristão afirmar que a totalidade da vida do incrédulo é “teo-referente”,¹⁹ e, desse modo, ajudá-lo a perceber que somente em uma relação de amor e intimidade para com Deus trará coerência e bem-aventurança para sua vida. Além do mais, a obra de Cristo Jesus viabiliza que pessoas alheias à vida de Deus e que estejam em uma situação de fuga de seu Criador assumam uma condição positiva para com Ele.

O principal problema do incrédulo não é o intelectual

Uma das grandes contribuições da apologética pressuposicionalista foi demonstrar que o principal problema que o incrédulo possui não é o intelectual, mas o ético. Sendo assim, direcionar toda a comunicação com o não cristão para questões intelectuais é menosprezar outros aspectos também importantes de sua vida. Frame diz que “seus problemas intelectuais derivam de sua falta de disposição ética para reconhecer a evidência”.²⁰ Bahsen assevera:

É por isso que os insights de Van Til têm um efeito tão revolucionário na maioria das pessoas. Ele insiste (assim como a Escritura) que a forma como usamos nossas mentes ー a maneira como raciocinamos, como avaliamos reivindicações da verdade, os padrões que adotamos para o conhecimento etc. ー é em si uma questão ética. Essa parte do comportamento humano chamada "raciocínio" está sujeita a obrigações e avaliações morais tanto quanto qualquer outra coisa que fazemos no mundo. [...] O crente e o incrédulo reconhecem dois padrões finais diferentes para viver, incluindo aquele aspecto da vida conhecido como pensar, raciocinar e argumentar. Eles são divididos por seus compromissos finais, seja com Cristo ou com alguma outra autoridade (geralmente eles mesmos).²¹

Sendo assim, direcionar toda a comunicação com o não cristão para questões intelectuais é menosprezar outros aspectos também importantes de sua vida.

Van Til demonstrou que há outras coisas mais importantes do que o apelo a argumentos, fatos e evidências, e que viabilizam um ponto de contato com o incrédulo.²² Essa escola apologética entende que Deus se revelou na subjetividade de todo ser humano, mas esse conhecimento é suprimido (Rm 1.18-25). E nisso percebe-se que o problema do incrédulo não foi falta de informação, uma vez que “os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina têm sido vistos claramente” (Rm 1.20b NVI  – grifos meus). Por esse motivo, os incrédulos são indesculpáveis.

Van Til, ao apontar para a limitação da racionalidade humana (pelo fato de ser uma criatura e pela perversão causada pelo pecado), demonstra que o apelo ao intelecto humano não é suficiente. Isso é humilhante para o homem, e é bom que seja assim. O professor de Westminster, com seu método pressuposicionalista, demonstra que a razão, em seu devido lugar, submissa a Deus e a sua revelação, encontra a manifestação maior de sua dádiva concedida ao homem.

O professor de Westminster, com seu método pressuposicionalista, demonstra que a razão, em seu devido lugar, submissa a Deus e a sua revelação, encontra a manifestação maior de sua dádiva concedida ao homem.

Submissão às Escrituras

A apologética pressuposicionalista, conforme foi demonstrado no decorrer do artigo, tem um forte apego às Escrituras, o que demonstra uma postura de plena confiança na revelação verbal de Deus, e não nas próprias capacidades intelectuais do anunciador do evangelho e do seu ouvinte. Os autores dessa escola encontram nas Escrituras um porto seguro e jamais se envergonham dela. Sendo assim, o apologeta deve assumir um compromisso com a Palavra de Deus e ter nela o fundamento para todas as suas predicações, pois fazer isso é reconhecer que a sabedoria de Deus é mais sábia que a dos homens.

O ser humano, desde sua queda no Jardim, cai na ilusão de poder ser o intérprete de toda a realidade. Van Til, abordando sobre a queda no Jardim do Éden, aponta que o convite de Satanás a Eva foi a de se tornar uma racionalista. Foi proposto que Eva não precisaria de nada além de sua mente para obter informações sobre a realidade à sua volta.²³ Sendo assim, aquele que se submete à Palavra de Deus e não deposita a segurança em si mesmo expressa a humildade que tanto agrada ao Senhor. 

Sobretudo, a submissão às Escrituras é um reconhecimento de nossa condição de criatura, ou seja, de nossa “criaturidade”. Fomos criados para pensar os pensamentos de Deus após Ele, e somente assim conhecer adequadamente a realidade ao nosso redor. O homem não precisa apenas da revelação divina por causa da sua queda em pecado, mas também pelo fato de ser uma criatura, tendo em vista que, mesmo no paraíso, Adão e Eva dependiam da comunicação especial de Deus. É justamente por esse motivo que a apologética pressuposicionalista entende que racionalidade não é tudo, ideia esta que é corroborada pela palavra quando esta nos orienta dizendo: “Confie no Senhor de todo o seu coração e não se apoie em seu próprio entendimento” (Pv 3.5, NVI).

Fomos criados para pensar os pensamentos de Deus após Ele, e somente assim conhecer adequadamente a realidade ao nosso redor.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Ainda que não seja tão simples defini-las, uma boa proposta é a de Steven B. Cowan, que identifica as seguintes escolas apologéticas: Clássica; Evidencialista; Caso Cumulativo; Pressuposicionalismo e Epistemologia Reformada. Ver: Steven B. Cowan (ed.), Five Views on Apologetics, 2000.

2. Para John Frame: “Nosso compromisso final desempenha um papel importante em nosso conhecimento. Ele determina nossos critérios finais de verdade e falsidade, certo e errado. Enquanto mantivermos consistentemente nosso compromisso final, não poderemos aceitar nada como verdadeiro ou correto que entre em conflito com esse compromisso”. John Frame, Cornelius Van Til: An Analysis of His Thought, 1995, p. 136. Minha tradução.

3. William Edgar, “Without Apology: Why I Am a Presuppositionalist”, Westminster Theological Journal, v. 58, 1996, p. 19.

4. William Edgar, “Fides Quaerens Intellectum: What is Presuppositionalism?”, Westminster Theological Seminary, 2018. Clique aqui para acessar.

5. Cornelius Van Til, The defense of the faith, 2008, p. 301. Minha tradução.

6. Cornelius Van Til, O pastor reformado e o pensamento moderno, 2019, p. 59.

7. Davi Charles Gomes, “Fides et Scientia: Indo Além da Discussão de ‘Fatos'”, Fides Reformata, v. 2, n. 2, 1997.

8. Kenneth D. Boa; Robert Bowman Jr., Manual de apologética: abordagens integrativas para a defesa da fé, 2023, p. 326.

9. Cornelius Van Til apud Greg Bahnsen, Van Til’s apologetics: reading and analysis, 1998, p. 91.

10. Ibidem.   

11. Edgar, 1996, p.18.

12. Boa; Bowman, 2023, p. 437.

13. Van Til, 2008, p. 125.

14. Cornelius Van Til, Introduction to Systematic Theology, 2007, p. 247.

15. Frame, 1995, p. 153-154. Veja mais sobre esse ponto adiante.

16. Davi Charles Gomes, “Como Sabemos? O Professor e as Teorias do Conhecimento”, Fides Reformata, São Paulo, v. 13, n. 2, 2008, p. 74.

17. Frame, 1995, p. 148.

18. Ibidem, p. 149. Minha tradução.

19. Termo cunhado por Davi Charles Gomes para afirmar a condição que o homem, regenerado ou não, se encontra em sua referência a Deus, que pode ser positiva ou negativa, em amor ou em rebelião, entretanto, nunca neutra ou indiferente.

20. John Frame apud Steven B. Cowan, 2000, p. 211. Minha tradução.

21. Bahnsen, 1998, p. 90. Minha tradução.

22. Filipe Fontes, ao abordar sobre o ponto de contato com o incrédulo, diz: “A apologética pressuposicional, por sua vez, nega que o ponto de contato esteja nas evidências ou na razão, e defende que ele somente pode ser encontrado na revelação de Deus, mais especificamente no testemunho que Deus dá de si mesmo na subjetividade de todo ser humano”. Filipe Fontes, “Para pregar apologeticamente: reflexões introdutórias sobre a relação entre pregação e apologética”, Fides Reformata, São Paulo, v. 24, n. 2, 2019, p. 12.

23. Van Til, 2019, p. 116.

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