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Reformando nossas cidades

“Nossa vida sagrada”

Luiz Adriano Borges|

02/01/2024

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Luiz Adriano Borges

Professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência.

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Como citar

Borges, Luiz Adriano. Reformando nossas cidades: Norman Wirzba e “Nossa vida sagrada”. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

A vida no contexto do Antropoceno é caracterizada por cidades seculares, dessacralizadas e com condições inumanas. A cosmovisão subjacente a esse estilo de vida é marcada pelo transumanismo que busca, com o auxílio da ciência e da tecnologia, resolver os problemas da natureza humana. Então, constroem-se cidades inteligentes, pretensamente aperfeiçoadas. Mas o fato é que mais tecnologia não tem resolvido. Todas as cidades no globo, das mais ricas às mais pobres, ainda lutam com poluição, lixo, falta de saneamento, feiura, individualização egoísta e ausência de qualquer noção de bem comum. As cidades são hostis ao florescimento de uma boa vida, pois são construídas para seres autômatos-robóticos-desencarnados, e não para seres humanos. Se quisermos reverter a crise ambiental de nossa época precisamos mudar de mentalidade. É nesse sentido que o livro de Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, serve de guia intelectual, teológico e prático.

Essa obra é o ponto culminante de todo o pensamento de Wirzba, que vem desde o início dos anos 1990 refletindo acerca de questões éticas sobre meio ambiente e temas agrários, sempre de uma perspectiva teológica e filosófica. No presente estudo, partiremos das percepções do autor, focando especificamente na questão das cidades: nosso objetivo é pensar na aplicabilidade prática das críticas dele para a urbanidade.

Vivemos no “Antropoceno”, como bem define Wirzba no capítulo 1. Esse conceito faz referência a um período na história em que os sinais de alteração da Terra e destruição da vida por parte dos seres humanos são amplamente manifestos.¹ Geralmente a data de início de tal era é assinalada em 1784, com a invenção da máquina a vapor por James Watt, que liberou uma gigantesca oferta de energia, transformando a natureza cada vez mais em “um estoque de objetos a serem explorados, mapeados, extraídos e apropriados”.² Como resultado quase imediato dessa invenção, a cidade industrial inglesa cresceu como uma abominável imundície: poluição, fedor, sujeira, pobreza e doenças pululavam. 

Se essa forma de agir para com a natureza não foi uma novidade neste ponto da história da humanidade, ao menos foi o potencializador de um novo ímpeto que busca controle e libertação das imperfeições e dos limites humanos. Esse ímpeto é o que caracteriza o movimento transumanista, que se desenvolve no século 20 e é examinado no capítulo 2 do livro.³

Os defensores do transumanismo tratam o corpo humano com desdém, uma vez que ele é falível, imperfeito e corruptível. O objetivo do movimento é escapar dessa condição física por meio de melhoramentos até se obter a imortalidade. Essa forma de pensar está subjacente aos principais desenvolvimentos tecnológicos atuais, desde grandes corporações de tecnologia até a constituição de cidades. Em sua concepção mecanicista e reducionista da natureza humana, tudo é compreendido como passível de controle tecnicista: a solução para todos os problemas sempre seria tecnológica. Essa fuga tecnicista fica bem evidenciada na dualidade dos projetos transumanistas de “escapar da Terra e se desvencilhar do corpo”.⁴ Quem personaliza essas ideias hoje é Elon Musk, mas muitos já haviam percebido décadas atrás: se não nos importamos com o corpo e achamos que podemos fugir para outro planeta, porque nos preocuparíamos em bem administrar a Terra?

Em sua concepção mecanicista e reducionista da natureza humana, tudo é compreendido como passível de controle tecnicista: a solução para todos os problemas sempre seria tecnológica.

Como Wirzba nota, na constituição intelectual da Internet e das redes sociais atuais está uma concepção dataísta, transumanista, de busca de controle da natureza humana por algoritmos. Em tal espaço, a nossa atenção e a nossa humanidade são “apagadas pela religião dos dados”.⁵ Isso fica evidente na estruturação de cidades inteligentes. Ela é compreendida como a implementação de tecnologias de informação objetivando maior eficiência em setores como transporte, coleta de lixo, distribuição energética etc., para gerar sustentabilidade e melhor qualidade de vida.⁶ O problema é que o foco tem sido por demais orientado para a tecnologia, deixando de lado capital social e relações humanas.

Como Wirzba nota, na constituição intelectual da Internet e das redes sociais atuais está uma concepção dataísta, transumanista, de busca de controle da natureza humana por algoritmos.

Por tudo isso, é preciso reimaginar e remodelar a concepção atual de mundo e de vida, voltando aos fundamentos cristãos, em uma compreensão corporificada e simbiótica da vida para que haja um verdadeiro florescimento. Wirzba aprofunda essas noções no capítulo 3, “Uma vida enraizada”. Pensar que a vida é corporificada é perceber a condição humana enquanto um ser que possui um corpo e que se relaciona com o mundo a partir dele. Quando os seres humanos abandonam essa verdade, acaba ocorrendo uma desconexão da realidade, porque “a vida é sempre vida em conjunto com outras criaturas”⁷ e, portanto, devemos viver consciente desse emaranhado que nos influencia e que influenciamos de volta. Jesus, de maneira sábia, nos convida a “olhar os lírios do campo” (Mateus 6.28-31) para perceber essa realidade e nos avisar que temos perdido de vista esses elementos básicos.⁸ E não é preciso muito esforço para notar como as nossas cidades nos afastam dessa percepção: não valorizamos água potável, ar respirável, comida saudável, tomando essas dádivas como acontecimentos banais. Mas se queremos prosperar em nossas cidades, precisamos cultivar a harmonia em “um mundo entrelaçado” (título do capítulo 4), levando em consideração nossa relação com outros seres. Por tudo isso, Wirzba se concentra no fenômeno das cidades no capítulo 4, propondo ações e formas de pensar para conceber cidades mais harmônicas.⁹

Mas se queremos prosperar em nossas cidades, precisamos cultivar a harmonia em “um mundo entrelaçado”.

Toda tecnologia comunica uma visão do mundo, como ele deve ser organizado e ordenado. Nossas tecnologias e cidades atuais apresentam um mundo desconectado da realidade e desenraizado de outros seres. Máquinas, telas e construções “tornam as pessoas cegas e ignorantes quanto às bases orgânicas e sazonais da vida”.¹⁰ Para mudarmos, precisamos reconsiderar essas bases, pois os ambientes construídos, nos diz Wirzba, ajudam as pessoas a interpretar a realidade e indicam como viver.

As cidades e as tecnologias modernas são projetadas tendo “estruturas mecânicas de pensamento”,¹¹ com a acepção de que o “corpo humano é uma máquina”.¹² E dentro dessa visão de mundo não se aceita mais que exista um criador e que a vida é algo criado, mas sim que pode ser manipulada por mãos humanas e por elas “melhorada”. Com isso, o outro é negado e, por consequência, degradado em um relacionamento utilitarista. A “ausência de humanidade” é refletida na história das cidades, em que sempre existem aqueles que são relegados a locais insalubres.¹³

Nessa direção, Wirzba também nos convida a pensar “Por que algo tem que ser sagrado?”, no capítulo 5, uma vez que passamos por uma generalizada dessacralização do outro e da natureza. Sem o aspecto transcendental, temos dificuldade em definir o que é dignidade humana¹⁴ e de empregar ferramentas éticas para evitar a catástrofe ambiental.¹⁵ A paisagem das cidades no Antropoceno é povoada por sujeira e degradação porque os poderes que definem nosso tempo rejeitaram por completo o sagrado.¹⁶

Resgatar a santidade da vida começa pela reorientação dos ritmos da vida. Wirzba aponta que a noção de sabbath muda nosso relacionamento com a realidade. Dar atenção ao descanso é uma mudança de paradigma necessária para uma sociedade que é definida pelo cansaço e por uma grande aceleração.¹⁷ Nesse sentido, construir cidades de forma que incentivem o descanso e o lazer é um grande e valioso desafio.

E para que uma cidade seja harmônica e permita o florescimento de todas as criaturas, é também necessário comunhão. A noção de comunidade é basilar nesta obra de Wirzba. Para ele, toda a ordem criada é profundamente relacional, sendo a própria “lógica da criação” (título do capítulo 6). Disso resulta nossa profunda necessidade de relacionamentos, o que é dificultado em nossas cidades. A urbanização dos grandes centros afastam as pessoas umas das outras. Há exceções, como Barcelona e seu “urbanismo humanista”, que se reflete, por exemplo, nas quadras que possuem quinas chanfradas, com o objetivo de tornar agradável a circulação e o convívio. De fato, ela é um exemplo de cidade inteligente, sem desumanização.

Portanto, a cidade em harmonia precisa dessa “ressonância empática” que fomenta o convívio harmonioso com as pessoas.¹⁸ É interessante notar que essas noções de Wirzba, fundamentadas na Bíblia, encontram reverberação na obra do grande urbanista Jonathan Rose, que também aborda a centralidade da noção de comunidade para se ter uma cidade em harmonia.¹⁹

Na constituição de cidades e na lida com a natureza, precisamos pensar para além de caracteres de domínio e mais para uma ética do contentamento, ensinamento básico do cristianismo. Isso significa encarar “a humanidade como criatura” (título do capítulo 7). O autor se exprime belamente: “ao sentir a generosidade de Deus e a graça deste mundo, surge a possibilidade de que as pessoas sejam inspiradas a construir centros e jardins urbanos” e outras estruturas que “testemunham os caminhos receptivos de Deus para com as criaturas”.²⁰

Também a cidade moderna, humanamente inteligente, não pode dispensar algo fundamental para o ser humano, que é o trabalho, se quiser ver o florescimento das criaturas. Somos “chamados à criatividade”, (título do capítulo 8), e é por meio do trabalho que nos relacionamos com a realidade e compreendemos plenamente a existência, com seus momentos de nascimento, de dores e de florescimento. Quando encaramos a realidade como um dádiva, e não como um recurso disponível, ressignificamos o trabalho, dando-lhe uma noção de cultivo, com seus próprios ritmos naturais, e não de acordo com o tempo acelerado e artificial em que vivemos.²¹

O trabalho tem sido deturpado e produzido fardos insustentáveis. A sociedade moderna está doente, com fadiga física e mental, porque dá mais ênfase ao ritmo das máquinas do que ao ritmo natural. A visão do artesão talvez seja uma compreensão admirável do trabalho: não é alguém que produz em ritmo acelerado, em condições péssimas e faz objetos que logo se tornam obsoletos; o artesão produz uma obra duradoura e bela. A arte tem o poder de comunicar verdades absolutas e também de trazer embelezamento ao mundo.²² Isso não quer dizer que se deva despojar de inovações tecnológicas, mas sim buscar o equilíbrio.

Algumas cidades têm buscado essa forma ao pensar em utilizar tecnologia sem deixar de lado o belo, provendo noção de comunidade e favorecendo o florescimento de toda a criação. Barcelona, que já citamos, é uma cidade que junta tecnologia com os ideais do movimento de art nouveau, que procurava encher de beleza objetos considerados puramente utilitários, como prédios e utensílios, bem de acordo com os conceitos do crítico de arte Ruskin, bastante citado no final do livro. 

Algumas cidades têm buscado essa forma ao pensar em utilizar tecnologia sem deixar de lado o belo, provendo noção de comunidade e favorecendo o florescimento de toda a criação.

Por fim, Wirzba propõe princípios filosóficos e teológicos para orientar os “esforços no cultivo de uma vida humana criativa”.²³ Destacamos o ponto de construir uma infraestrutura de apoio à vida, repensando os ambientes que construímos e seus profundos significados teológicos, refletindo na “possibilidade de construir uma vida humana bela, que testemunha e participa da alegria divina e se deleita com o florescimento das criaturas”.²⁴

O foco do livro Nossa vida sagrada não é exclusivamente as cidades, mas sim pensar em todos os problemas ambientais de maneira global. Ainda assim, as inúmeras percepções teológicas e filosóficas de Wirzba o fizeram pensar nas questões práticas das cidades e conduzem o leitor a refletir em melhores formas de agir no nível local, na própria concepção tecnológica e urbana. Assim, a obra se erige como um tour de force sobre a crise ambiental, com profundos diagnósticos e excelentes proposições à partir do cristianismo. Um livro extremamente bem pesquisado e com uma argumentação primorosa. Necessário de ser lido, debatido e aplicado.

 

 

Agradecimentos

Agradeço à minha esposa Mabel, pelos comentários e conversas em torno desse texto. E pela companhia constante nas aventuras pelas cidades.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Norman Wirzba, Nossa vida sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, 2023, p. 48.

2. Ibidem, p. 42.

3. Ibidem, p. 71.   

4. Ibidem, p. 73.

5. Ibidem, p. 91.  

6. Vito Albino, Umberto Berardi e Rosa Maria Dangelico, “Smart Cities: Definitions, Dimensions, Performance, and Initiatives”, Journal of Urban Technology, v. 22, n. 1, 2015, p. 4.

7. Wirzba, 2023, p. 111.

8. Ibidem, p. 114.

9. Ibidem, p. 131

10. Ibidem, p. 138.

11. Ibidem, p. 159.

12. Ibidem, p. 165.

13. Ibidem, p. 177ss. 

14. Ibidem, p. 180.

15. Ibidem, p. 181.

16. Ibidem.        

17. Ibidem, p. 182 a 189.      

18. Ibidem, p. 226 e 280.   

19. Jonathan Frederick Phinneas Rose, A cidade em harmonia: o que a Ciência Moderna, Civilizações Antigas e a Natureza nos Ensinam Sobre o Futuro da Vida Urbana, 2019.

20. Wirzba, 2023, p. 236.

21. Ibidem, p. 260.

22. Ibidem, p. 269.

23. Ibidem, p. 295.

24. Ibidem.       

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