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Vamos discutir a Criação?*

Taís Madeira-Ott|

01/09/2023

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Taís Madeira-Ott

Licenciada em Ciências Biológicas e Mestre em Parasitologia pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Doutora em Biologia Animal pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

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Como citar

Madeira-Ott, Taís. Vamos discutir a Criação? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

O surgimento da vida e de toda a matéria existente é uma questão antiga, com um caráter muito mais filosófico do que científico. Até onde a história nos permite conhecer, diferentes povos em diferentes tempos buscaram responder a essa questão, muitas vezes amparados por argumentos teológicos. O cristianismo atribui esse padrão ao que chamamos de “revelação geral”, na qual Deus se revela à humanidade por meio da natureza e da moral intrínseca de cada indivíduo.¹ A ciência assumiu o papel de tomar a frente nas discussões sobre a gênese do mundo apenas em tempos recentes. A partir da ascensão do Iluminismo no século 17, até mesmo perguntas existenciais deveriam passar pelo método científico como justificativa para se chegar à verdade. Consequentemente, verdades cristãs muito bem estabelecidas foram ameaçadas, colocando a Igreja e muitos dos seus teólogos em modo de defesa. Ciência e fé passam a seguir caminhos opostos, polarizando os debates sobre esse tema.

No entanto, a perspectiva dualista sobre a criação, onde o preto e o branco são as únicas cores das discussões, tem sido colorida por diversos autores que trazem aos debates os complexos tons de cinza da relação fé e ciência. Esse é o contexto em que a obra Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e a ciência, de Mark Harris, se insere. Neste livro, Harris se propõe a discutir a criação sem cair no fundamentalismo religioso e sem abandonar a fidelidade às Escrituras. Nas palavras do próprio autor, o objetivo do livro é: “[…] envolver-se com o aparente conflito entre a ciência e a religião, abandonando a negligência bastante real da Bíblia pelo campo de estudos ciência e religião”.² 

Esse estudo tem como objetivo analisar a obra de Mark Harris, avaliando e discutindo as principais propostas apresentadas no livro. A síntese da obra será apresentada a seguir, descrevendo brevemente os assuntos de cada capítulo. Em seguida, apresentarei a crítica da obra, expondo algumas discussões que acredito merecerem maior atenção.

A obra

Mark Harris inicia sua discussão apresentando os principais participantes do grande debate sobre a criação: ciência moderna e religião (que não necessariamente representa o posicionamento bíblico). As principais teorias que fundamentam a atual versão da ciência sobre esse tema são o Big Bang, no âmbito da física, e a evolução das espécies, na biologia. Embora façam parte da mesma história, essas duas teorias têm lidado com consequências filosóficas distintas com relação à contingência. Enquanto a física demonstra a estabilidade e imutabilidade das leis que regem o universo, fortalecendo o princípio antrópico, a biologia é instável, sujeita às constantes mudanças guiadas pelo acaso. Mas, diante das novas descobertas da física quântica, da grande dificuldade em conceituarmos “acaso” e do reconhecimento do papel da necessidade na evolução dos seres vivos, Harris acaba por concluir que as ciências apontam para a contingência do mundo, embora leis estáveis sejam observadas. A teologia também considera o mundo contingente, compreendendo-o como totalmente dependente de Deus para sua existência, e responde às descobertas científicas apreciando muito mais os padrões estáveis das leis físicas do que a imprevisibilidade da evolução biológica. A emergência (a conexão de várias áreas para buscar a compreensão de um tema complexo) surge como uma necessidade ao se discutir a criação, e ideias filosóficas nesse contexto são inevitáveis.

O relato bíblico de Gênesis sobre o surgimento do universo e da vida revela-se complexo em virtude da impossibilidade de classificá-lo em apenas um estilo literário, o que dificulta a sua interpretação. Para além de Gênesis, a Bíblia possui inúmeras referências sobre a criação, como aquelas descritas nos livros de Jó e Salmos. Todos esses textos, em conjunto, apontam para a ideia de que o tema “criação” está centrado na natureza de Deus. Essa ideia se intensifica quando analisamos o Novo Testamento, onde as Escrituras colocam Cristo e as demais pessoas da Trindade no centro das discussões. A partir da leitura de Keith Ward,³ Harris afirma:

É em Jesus de Nazaré que o propósito criativo de Deus e sua vontade, que são o mesmo propósito e a mesma vontade expressos pela lei e pelos profetas – juntamente com o par “graça e verdade” (João 1:14, 16) – são incorporados na forma de um ser humano.⁴

O relato bíblico de Gênesis sobre o surgimento do universo e da vida revela-se complexo em virtude da impossibilidade de classificá-lo em apenas um estilo literário, o que dificulta a sua interpretação.

Após conhecer o que teologia e ciência têm a dizer sobre a criação, o texto avança em discussões mais profundas, buscando entender de que maneira a Bíblia pode ser integrada ao debate. A narrativa bíblica mostra que os relatos sobre a criação estão muito mais relacionados à cosmovisão da época do que a uma suposta primitividade nos conhecimentos científicos. Ao considerarmos um quadro geral do mundo, conceitos físicos como tempo e espaço eram descritos de forma simbólica ou metafórica, a fim de apresentar a natureza de Deus e seu relacionamento com o mundo. Isso porque, na visão antiga, era impossível desvincular a atividade de Deus da realidade do mundo, como passamos a fazer a partir da cosmovisão moderna, altamente influenciada por uma visão deísta, em que Deus cria o mundo, mas não desenvolve nenhum papel nele. O posicionamento deísta, no entanto, tem perdido força, já que não traz contribuições de um ponto de vista científico, e seus argumentos são estranhos ao mundo bíblico. Por esse motivo, o teísmo parece corresponder melhor à cosmovisão bíblica.

Assumindo o teísmo como ponto de vista, a obra criativa de Deus tem sido classificada a partir de dois conceitos: creatio ex nihilo e creatio continua. O primeiro afirma que Deus criou o mundo a partir do nada, e desde então sustenta e conserva a criação, sendo muitas vezes relacionado com a teoria do Big Bang. Já a creatio continua expressa a ideia de que o mundo está em um contínuo vir a ser, uma vez que a atividade criativa de Deus não se restringe aos primórdios do mundo, sendo relacionado com a teoria da evolução biológica. Harris é cauteloso quanto a analogias em relação às teorias científicas, encolhendo buscar o posicionamento bíblico. Embora os conceitos tenham sido criados séculos depois da escrita dos textos bíblicos e suas definições não estejam explícitas nesses textos, as características de transcendência (Deus é diferente da criação e não dependente dela) e imanência (Deus age e se relaciona de forma íntima com a criação, que é dependente Dele) se destacam e podem ser relacionadas, respectivamente, com a creatio ex nihilo e a creatio continua. A aparente contradição dessas duas características acaba por ser traduzida na visão bíblica fundamental sobre a imagem de Deus, e esse relacionamento criativo culmina na espera pela nova criação, onde o Deus transcendente faz novas todas as coisas (Apocalipse 21:5), antecipando o que está por vir através do envio do Espírito Santo, pelo qual o Deus imanente se relaciona direta e intimamente com a criação.

Embora os conceitos tenham sido criados séculos depois da escrita dos textos bíblicos e suas definições não estejam explícitas nesses textos, as características de transcendência (Deus é diferente da criação e não dependente dela) e imanência (Deus age e se relaciona de forma íntima com a criação, que é dependente Dele) se destacam e podem ser relacionadas, respectivamente, com a creatio ex nihilo e a creatio continua.

No entanto, as diferentes tentativas de encontrar o sentido e propósito dos relatos bíblicos da criação, buscando reconciliação com as descobertas da ciência moderna, esbarram em um grande obstáculo: a queda histórica, proposta inicialmente por Agostinho e consolidada na doutrina cristã ocidental. Logo, fica claro que o argumento da queda como um evento histórico é incompatível com a teoria biológica evolutiva, pois, para a primeira, morte e sofrimento são frutos de um pecado original, ao passo que, para a segunda, são partes essenciais do surgimento de novidades evolutivas. Consequentemente, a cruz de Cristo assume distintos papéis em cada um dos argumentos, invadindo um campo que parece ameaçar a doutrina cristã. Diante disso, muitos cristãos optam por sustentar a literalidade bíblica, negando as evidências da evolução; enquanto outros buscam alternativas ao modelo da queda, muitas vezes caindo em interpretações inadequadas do relato bíblico.

Assim sendo, será que é possível encontrar alguma solução para esse conflito? Harris é sincero em dizer que não há uma resposta perfeita para tal questão, já que nenhuma teologia, evolutiva ou não, está isenta de equívocos de interpretação bíblica, incluindo o modelo da queda histórica. Buscando a melhor teologia evolutiva disponível, o autor apresenta a perspectiva escatológica, baseada na interpretação de Irineu, o qual afirma que a humanidade foi criada “boa”, mas não perfeita, e no mundo criado ela deveria amadurecer rumo à perfeição na nova criação. O sofrimento e a morte decorrentes da evolução seriam uma condição natural das criaturas de Deus, mas a percepção humana sobre essa condição teria se originado a partir da entrada do pecado, embora não seja possível datar ou explicar esse evento. Conforme proposto por Southgate, o papel da cruz, defendido pela teologia cristã, permanece intacto, mas ganha um significado ecológico: “Por intermédio de Cristo, Deus ‘assume a responsabilidade’ por todo pecado humano e por todo sofrimento não humano do mundo”.

Se a finalidade da criação culmina no seu fim e na sua redenção, discutir a escatologia é um caminho natural, uma vez que todos os cenários científicos sobre o fim dos tempos são pessimistas quanto ao destino da humanidade e do universo. Já as interpretações escatológicas dos textos bíblicos costumam variar entre uma leitura literal e poética, as quais simplificam demasiadamente os relatos. Todavia, a Palavra de Deus é clara ao afirmar que a nova criação será algo totalmente novo. Sendo assim, compreender que a realidade do porvir está além da nossa compreensão e que toda a profecia está descrita por meio de metáforas, a partir do que por nós já é conhecido, permite que tenhamos um entendimento mais profundo sobre o tema. Surge então, nesse contexto, uma nova categoria de criação: creatio ex vetere – “criação a partir do antigo”. Esta terá como matéria-prima a criação presente, e Jesus foi o primeiro a experimentá-la a partir da ressurreição. O fato é que o fim dos tempos é um mistério para teólogos e cientistas, mas, de acordo com o relato bíblico, a perspectiva de sua existência apresenta relevância e consequências no tempo presente. A esperança e a fé fundamentam a escatologia bíblica, onde a relação Criador-criatura se sobrepõe às discussões sobre “quando” e “como” tudo ocorrerá.

Crítica da obra

Transitar entre a perspectiva científica e teológica sobre a criação não é uma tarefa fácil, pois as divergências entre os distintos argumentos e as incoerências nas inúmeras tentativas de associá-los não favorecem nem o diálogo nem o consenso. Nesse contexto, a obra de Mark Harris cumpre o que promete: o tema criação é exaustivamente discutido, e um encontro é promovido entre ciência, teologia e Bíblia. E aqui enfatizo a importante contribuição do autor na busca por compreender a clássica questão: “o que os autores bíblicos queriam dizer” com os relatos da criação? Rapidamente vemos que os autores e leitores antigos dos textos sobre a criação não pareciam estar preocupados com questões que a modernidade nos impôs.

A complexidade do tema, na minha opinião, vai além das dificuldades de interpretação bíblica. A contradição de teologias consolidadas, como a queda histórica, nos leva a questionamentos muito mais profundos sobre as verdades cristãs. E então o medo da heresia torna os relatos bíblicos literais, e o descrédito na Bíblia como Palavra de Deus torna o texto relativo. Acredito que um ponto-chave resgatado por Harris é a verdade óbvia e tão esquecida nos debates religião-ciência: a Bíblia é sobre Deus. Essa certeza permite que os relatos científicos e bíblicos não sejam excludentes, mas complementares, já que contam partes diferentes da mesma história. Consequentemente, sabemos que temos certezas limitadas sobre como o mundo foi criado e como o pecado se tornou uma realidade, mas temos a plena consciência de que o trino Deus é Criador de todas as coisas, de que Ele se importa e se envolve com Sua criação, e que desde o princípio a criação caminhava para a direção da redenção, consumada em Jesus Cristo. E permitir incertezas que não comprometem, de modo pessoal, a redenção, traz paz àqueles que, como eu, não sabem negar a ciência com a qual convivem todos os dias. De fato, seria uma lástima que um fato científico pudesse colocar minha fé em perigo ou que minha fé fosse sustentada por provas científicas. Acredito que discussões como essa enriquecem o debate entre fé e ciência neste mundo polarizado, avançando em questões mais profundas. 

sabemos que temos certezas limitadas sobre como o mundo foi criado e como o pecado se tornou uma realidade, mas temos a plena consciência de que o trino Deus é Criador de todas as coisas, de que Ele se importa e se envolve com Sua criação, e que desde o princípio a criação caminhava para a direção da redenção, consumada em Jesus Cristo.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Estudo selecionado na 2ª Chamada de Estudos de Livros do Radar ABC².

1. Robert Charles Sproul, Verdades essenciais da fé cristã: Doutrinas básicas em linguagem simples e prática, 2019.

2. Mark Harris, Discutindo a criação: um encontro entre a Bíblia e criação,, 2023, p. 16.

3. Keith Ward, The word of God? The Bible after modern scholarship, 2010.

4. Harris, 2023, p. 101.

5. Christopher Southgate, The groaning of Creation: God, Evolution and the problem of evil, 2008, p. 76.

6. Harris, 2023, p. 204.

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