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SIMPÓSIO

A sacralidade da vida e a dádiva da criação

Tiago Pereira|

02/01/2024

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Tiago Pereira

Biólogo, mestre e doutor em Botânica pela Universidade Federal de Viçosa. Atua como coordenador dos Grupos de Estudo da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). É casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.

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Como citar

Pereira, Tiago. A sacralidade da vida e a dádiva da criação. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Dizer que o mundo está em crise não é novidade. Há milênios a humanidade se estabeleceu como a espécie dominante no planeta, expandindo-se para todos os continentes e alterando as paisagens aonde quer que chegasse. Em um processo longo, gradual e contínuo, essa expansão resultou ao mesmo tempo em desenvolvimento e devastação, como se fossem duas faces da mesma moeda na grande jornada da humanidade.

A crise climática que enfrentamos é um exemplo emblemático desse fenômeno. Nos últimos séculos, o desenvolvimento industrial, associado ao uso indiscriminado de combustíveis de origem fóssil e ao extenso desmatamento, foram responsáveis por alterar profundamente os sistemas terrestres. Ironicamente, o progresso nos colocou diante de uma crise ambiental que em poucas décadas poderá levar ao colapso dos sistemas dos quais dependemos e onde construímos nossas vidas.

Se por um lado nos beneficiamos de nossa capacidade criativa no desenvolvimento da ciência e da tecnologia, e alcançamos progressos incontáveis, por outro lado esse mesmo progresso tem nos trazido desafios e crises incalculáveis. O desequilíbrio do clima não é o único fenômeno associado ao impacto humano na Terra. A crise ecológica se estende a muitas outras instâncias, envolvendo o declínio da biodiversidade e a extinção de espécies, a poluição e a produção de lixo, a degradação dos solos e o colapso na produção de alimentos, além de inúmeras questões humanitárias e de saúde global.

A Bíblia é muito clara em nos explicar por que é assim. A partir do relato da Queda descrito em Gênesis 3, entendemos que toda a criação foi contaminada e amaldiçoada pelo pecado humano e “geme até agora, como em dores de parto” (Romanos 8:22, NVI), “aguardando com grande expectativa que os filhos de Deus sejam revelados” (Romanos 8:19). Ainda nas palavras do apóstolo Paulo, “a natureza criada […] foi submetida à futilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou” (Romanos 8:19,20).

Ao entrar no mundo, o pecado afetou a vida humana e, por consequência, todos os sistemas dos quais dependemos para viver e dos quais deveríamos cuidar. Nossa visão se tornou distorcida e, na busca por autonomia, perdemos a conexão com a terra e com o sagrado. A crise que surge a partir da Queda, portanto, é uma crise cósmica, que abrange as dimensões ecológicas, econômicas, sociais e políticas. No entanto, como podemos perceber, há um importante elemento espiritual que não pode ser ignorado em nenhuma análise da situação em que nos encontramos. Esse aspecto é fundamental, pois envolve um profundo abismo relacional entre o homem e a natureza, entre o homem e seu próximo e entre o homem e Deus. Dessa forma, o ser humano perde suas raízes com a comunidade da criação, rejeita os limites de sua criaturidade e despreza a sacralidade das coisas criadas.

Dessa forma, o ser humano perde suas raízes com a comunidade da criação, rejeita os limites de sua criaturidade e despreza a sacralidade das coisas criadas.

Diante de uma situação tão caótica, muitas perguntas surgem e muitas respostas podem ser dadas. Mas as análises sobre a crise ambiental não podem ser ingênuas e as respostas não podem ser simplistas. Diversas abordagens sobre esse tema falham ao propor sugestões pragmáticas focadas apenas no fazer e na conduta, mas pouco preocupadas com as questões de caráter e sobre quem devemos ser no mundo. Uma análise mais cuidadosa dos problemas existentes em nosso planeta exigirá uma compreensão muito mais profunda das causas envolvidas e da natureza da realidade que nos cerca. Para isso, é necessária uma dedicação especial a entender não apenas as questões científicas envolvidas, mas também os aspectos históricos, filosóficos, antropológicos e teológicos, buscando respostas que vão além dos lugares comuns.

O teólogo e filósofo Norman Wirzba entendeu isso muito bem, e seu livro Nossa Vida Sagrada: como o cristianismo pode nos salvar da crise ambiental, apresentado neste simpósio, traz uma contribuição inestimável na busca por respostas e soluções para as crises contemporâneas. Para isso, o autor tenta responder primeiramente a algumas questões fundamentais: quem somos, que mundo é este em que vivemos e como devemos viver neste mundo? Os estudos deste livro que estão aqui apresentados trazem interessantes perspectivas sobre a visão do autor e, de forma criativa, exploram importantes ideias e propostas trazidas por Wirzba sobre como devemos responder a essas perguntas.

Um bom diagnóstico é fundamental na busca por soluções reais, e Wirzba, em sua obra, nos mostra que uma análise intelectualmente honesta da nossa situação não pode se abster de falar sobre o Antropoceno e o Transumanismo. Esses dois fenômenos representam, respectivamente, o ápice do domínio humano sobre a Terra e sobre o corpo, num paradoxo que envolve grandes conquistas científicas e tecnológicas, mas também o colapso da própria estrutura que permite o florescimento da vida como a conhecemos.

Norman Wirzba enfatiza e discorre sobre aspectos essenciais da realidade em que vivemos: a sacralidade da vida, a dádiva da criação e a interdependência das criaturas. Quando desprezamos e rejeitamos esses atributos, perdemos de vista a noção de transcendência e o propósito para o qual existimos. Como destacado em um dos estudos, “sem o aspecto transcendental, temos dificuldade em definir o que é dignidade humana e de empregar ferramentas éticas para evitar a catástrofe ambiental.”¹

A obra apresentada oferece fundamentos preciosos que podem ser direcionados a aplicações práticas em diversas áreas, como no caso do urbanismo e da vida nas cidades; tema abordado no excelente estudo de caso escrito por Luiz Adriano Borges.² Segundo o autor, “nossas tecnologias e cidades atuais apresentam um mundo desconectado da realidade e desenraizado de outros seres”, um mundo caracterizado pelo desprezo ao que nos faz humanos e pela rejeição à sacralidade da vida. A resposta a isso passa por uma reorientação total dos nossos ritmos de vida e do nosso relacionamento com o mundo que nos cerca.

Norman Wirzba nos mostra que na fé cristã encontramos grandes respostas para nos orientar nesse processo. Na busca por recuperar nosso propósito como criaturas pertencentes à comunidade da criação, o autor enfatiza o nosso chamado à criatividade. É interessante perceber que “há uma lógica de criação, criatura e criatividade; uma linha de pensamento que enfatiza a relação entre o Deus Criador e sua criatura, bem como seus atos criativos que permeiam a essência existencial”,³ como nos lembra a autora Rebeca Albuquerque.

Em seu estudo, a autora explora essa perspectiva a partir do conceito de “subcriação” desenvolvido pelo escritor J.R.R. Tolkien. Albuquerque relembra que, na obra de Tolkien, os elfos são apresentados como aqueles que “praticavam o que era bom” e “criaram coisas belas”, porque “a noção de quem os criou se aplicava ao que reproduziam diariamente”.⁴ A subcriação, entendida como uma resposta ao Criador, nos relembra da lógica da criação e do amor divino, ajudando-nos a ressignificar o que entendemos por trabalho como cultivo e como dádiva.

No relato da criação, aprendemos que somos criaturas feitas como imagens de Deus, e é nesse contexto que recebemos a ordem de dominar sobre a criação (Gênesis 1:26). O cumprimento dessa ordem, no entanto, é deturpado com a entrada do pecado no mundo, que distorce nossa compreensão a respeito de como esse domínio deve ser exercido. Ao contrário da exploração indiscriminada e de uma dominação opressiva, o reconhecimento do Criador como doador e da criação como dádiva deverá reorientar nosso trabalho. O uso da criatividade, então, será corretamente direcionado para o bem comum, para a boa vida e para o florescimento da terra. Como afirmado por Albuquerque, “aqueles que se reconhecem como criaturas agirão de acordo com essa identidade, honrando a saúde ecológica, protegendo as florestas e procurando meios para não agredir e esgotar os recursos”.⁵

Se queremos de alguma forma superar as crises que nos cercam, precisamos começar por reconhecer a vida como sagrada, uma dádiva oferecida como expressão física e palpável do amor divino.  Como destacado no estudo de Ed Ney Braga, “recuperar a sacralidade da criação é concebê-la como algo belo e bom […], cujo sentido é externamente atribuído por Deus numa expressão enérgica de seu amor, para o crescimento e florescimento mútuo de todas as suas partes”.⁶ Precisamos reconhecer, igualmente, que olhar para a realidade como uma criação e para nós mesmos como criaturas é a chave para aceitarmos nossos limites e, enfim, exercermos criativamente o nosso papel de cultivar o jardim em que Deus nos colocou.

Se queremos de alguma forma superar as crises que nos cercam, precisamos começar por reconhecer a vida como sagrada, uma dádiva oferecida como expressão física e palpável do amor divino.

Um dos pontos latentes na obra de Wirzba é a percepção de uma profunda interdependência em toda a criação. Essa concepção deveria nos ajudar a entender que nosso papel diante da natureza não é de uma mera administração de recursos, mas sim de um relacionamento de cooperação que resulta em florescimento e benefícios mútuos. Essa realidade marcadamente relacional é destacada no estudo de Braga, que traz importantes insights sobre a ontologia relacional e a teologia da participação.

Concluindo, entendemos que precisamos lidar com todas essas questões tendo em vista o horizonte escatológico da Nova Criação. Quando olhamos para a cruz, nos lembramos que Deus estava, em Cristo, reconciliando consigo todas as coisas (2 Coríntios 5:19; Colossenses 1:20). Cristo é o cumprimento do plano redentivo da Criação e “é apresentado como o paradigma ético de uma interação com a realidade criada e com a realidade do Criador que leve em conta a reciprocidade de dádiva e amor entre ambos”.⁷ Reconhecer nossa vida sagrada, portanto, é trabalhar criativamente entendendo nosso papel como embaixadores de Cristo no ministério da reconciliação, aproximando o reino de Deus e antecipando os sinais da renovação de todas as coisas já no tempo presente.

 

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Luiz Adriano Borges, “Reformando nossas cidades: ‘Nossa vida sagrada'”, Unus Mundus, n. 3, 2024. Clique aqui para acessar.

2. Ibidem.

3. Rebeca Emanuele Arruda de Sousa Albuquerque, “A subcriação como resposta ao Criador”, Unus Mundus, n. 3, 2024. Clique aqui para acessar.

4. Ibidem.              

5. Ibidem.              

6. Ed Ney Gonçalves Braga, O lugar da sacralidade em meio ao Antropoceno”, Unus Mundus, n. 3, 2024. Clique aqui para acessar.

7. Ibidem.

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