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Bíblia e Ciência

Um encontro que deve acontecer com mais frequência*

Milene de Oliveira Goulart|

01/09/2023

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Milene de Oliveira Goulart

Psicóloga formada pela Universidade São Judas Tadeu. Colaboradora do IWE - Instituto Wesleyano de Educação Polo 3ª Região. Líder de jovens da Igreja Metodista Wesleyana em Artur Alvim, São Paulo.

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Como citar

Goulart, Milene O. Bíblia e Ciência – um encontro que deve acontecer com mais frequência. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Ao iniciarmos a leitura de Discutindo a criação, o autor Mark Harris nos esclarece que procura analisar e discutir os textos bíblicos sobre a criação “em um nível mais profundo do que apenas o tanto que eles concordam com a ciência moderna”.¹ Se essa concordância — que talvez a palavra “encontro” do subtítulo possa dar a entender — tiver sido a intenção do leitor ao se interessar pela obra, haverá certa decepção. Contudo, para aqueles que gostam de um bom diálogo, com direito a réplicas e uma oportuna troca de ideias, a experiência será bem diferente. A “discussão” a que Mark se refere não é um debate político de alta tensão do tipo que vemos na televisão, e o “encontro” está mais para aquele jantar que se estende por horas, pois a conversa é dinâmica, o assunto não se esgota e não há a pretensão ou pressão de que os convidados cheguem a uma conclusão antes de ir para casa, ou, nesse caso, antes de fechar o livro. Embora o autor não esconda sua opinião pessoal sobre determinados assuntos e comunique seus argumentos com autoridade, não o faz de forma impositiva, como é comum em obras do gênero.

Como em todo agradável jantar, os tópicos de conversação variam e avançam de forma fluida. Quanto à linguagem do texto, apesar de não ser coloquial, nem informal, o livro faz um ótimo trabalho em apresentar e contextualizar os conceitos para aqueles cujo interesse no tema em questão é novo e não possuem tanta bagagem acadêmica, seja em teologia ou em ciência natural, tornando o grande panorama da discussão mais claro à medida que os capítulos avançam. 

Começando pelo objeto de estudo da ciência, somos apresentados às definições de espaço e tempo. Para quem não se lembra das leis de Newton ou não entendeu a questão da teoria da  relatividade — apesar dos esforços dos filmes de ficção científica em expô-la em seus roteiros —, ou para quem ainda não sabe explicar a verdadeira mecânica quântica além das histórias de super-heróis, saiba que está tudo bem, pois o ponto do autor não é aprofundar nas teorias em si, mas sim compreender as repercussões que causaram nas visões de mundo. 

A compreensão newtoniana, por exemplo, de um padrão físico estável e constante foi entendida como o reflexo de um Deus confiável. Ou pelo menos era o que parecia até outro famoso cientista, Einstein, apresentar uma perspectiva diferente, que relativiza o absoluto. A ruptura só não foi maior que a da descoberta de entidades quânticas, como os elétrons, que desafiaram todo o entendimento adquirido pela física clássica. Nesse cenário, há espaço para Deus? O reino dEle está longe do quântico, e se algumas especulações estiverem corretas, existem, na verdade, muitos reinos em muitos mundos por aí, multiverso afora. Embora essa descoberta esteja bem longe de ser atingida por qualquer trabalho experimental, outras são palpáveis. A astronomia observacional reconheceu que o universo parece estar se expandindo. É a partir desse entendimento que surge o inovador modelo do Big Bang, refletindo sobre o ponto de singularidade inicial dessa expansão e sua decorrente evolução física. Ainda mais revolucionário é o modelo de evolução biológica de Darwin (1809-1882), cuja força motriz é a seleção natural. A ciência não para de avançar, e mais uma vez surge a pergunta sobre o espaço de Deus nesse cenário. Embora as duas teorias tenham a evolução em comum, são usadas em direções teológicas opostas, sendo a primeira comparada com a narrativa bíblica para afirmá-la e o segundo para desacreditá-la. 

Diferentemente do que se poderia imaginar, Harris não defende um lado ou outro, mas afirma que nenhum ponto de vista é cristão ou anticristão em si, pois pode ser interpretado a partir de diferentes visões do relacionamento de Deus com o mundo. Neste ponto reside a verdadeira questão: o relacionamento entre Criador e criação.

Harris não defende um lado ou outro, mas afirma que nenhum ponto de vista é cristão ou anticristão em si, pois pode ser interpretado a partir de diferentes visões do relacionamento de Deus com o mundo.

O início da conversa estabeleceu os princípios mais importantes para o restante do assunto. Partimos, então, para a descrição bíblica da criação em Gênesis e o primeiro passo promovido pelo autor é reconhecer a existência de dois relatos diferentes: o relato sacerdotal (Gênesis 1:1 – 2:4a) e o relato javista (Gênesis 2:4b – 3:24). A nomenclatura pode estranhar à primeira vista, mas sua explicação faz sentido.

No primeiro relato, o foco está em Deus como agente ativo, construindo e organizando Sua obra, sem se preocupar em descrever o “como”. Já no segundo relato, o enfoque está no homem, na sua relação com as outras criaturas, com o pecado e a preocupação de Deus para com ele. Apesar da diferença, os dois demonstram complementaridade teológica, pois estabelecem o papel de Deus e do homem. Com relação à Ciência, busca-se formas engenhosas de ligar os modelos científicos com os textos de Gênesis, como reclamar a relatividade do tempo para explicar os seis dias da criação. Por isso é importante identificar qual o relato mais adequado para cada tentativa de interpretação e por quê. Porém, mais importante que essas definições, é identificar qual a intenção do texto bíblico. Não podemos tirar o foco do lugar certo, que é a apresentação de Deus como criador acima do que qualquer outra coisa, por isso o autor nos alerta sobre a armadilha de tentar uma interpretação puramente científica da Bíblia. 

É este, então, o próximo tópico de conversação. O que a Bíblia nos revela, afinal, sobre a criação além da descrição narrativa? Esse é um ponto interessante e rico em reflexão, também o mais propenso a instigar contemplação.

Somos apresentados às perspectivas de creatio ex nihilo e creatio continua. Pelo conceito de creatio ex nihilo, temos a ideia de que Deus fez o mundo literalmente a partir do nada e continua a sustentá-lo, no sentido mais amplo possível. Mais do que uma explicação sobre o princípio, é uma afirmação sobre a relação contínua entre criação e Criador. Complementar a ela, temos a ideia de creatio continua, utilizada para expressar o parecer de que a atividade criativa de Deus não se restringe simplesmente ao início do mundo nem à sua sustentação, mas é, como o nome diz, contínua. Muito do que é discutido no livro, embora significativo, não será capaz de gerar tanta admiração pela natureza quanto essas duas declarações.

Além disso, essas duas perspectivas se chocam diretamente com a alternativa de pensamento deísta, que avançou na ciência e, apesar de até afirmar o papel criativo de Deus, não acredita que Ele desempenhe qualquer papel no mundo depois da criação, pensamento este que, ao contrário dos anteriores, empobrece a fé. 

Continuando, o livro nos apresenta as tentativas de identificar certos modelos científicos com as categorias ex nihilo e continua, especialmente em vincular o modelo do Big Bang à primeira e os modelos de evolução biológica à segunda, mas, como Mark Harris bem coloca, “essas categorias são fundamentalmente teológicas e não podem ser facilmente reduzidas a explicações científicas, embora possam ser análogas e paralelas entre si”.²

Finalmente, ao avançar para o fim do livro, o autor nos apresenta suas considerações mais complexas: aquelas a respeito da queda, do sofrimento e do mal. Não é novidade que a biologia evolutiva moderna não vê credibilidade no relato histórico de Adão e Eva, mas qual o problema disso para os cristãos? Em primeiro lugar, está a questão do pecado, pois a seleção natural implica que competição e luta sempre foram parte do mundo. Como consequência, põe-se em xeque a necessidade do sacrifício e ressurreição de Cristo. Por conta disso, para muitos, o darwinismo é incompatível o cristianismo, a não ser, é claro, que se deixe de entender Adão e Eva da maneira histórica tradicional. 

a seleção natural implica que competição e luta sempre foram parte do mundo. Como consequência, põe-se em xeque a necessidade do sacrifício e ressurreição de Cristo. Por conta disso, para muitos, o darwinismo é incompatível o cristianismo, a não ser, é claro, que se deixe de entender Adão e Eva da maneira histórica tradicional.

Uma das várias alternativas para a questão sugere que o primeiro homem da Bíblia não seria o primeiro dos homo sapiens da terra, mas o primeiro homo divinus: um indivíduo diferente de seus contemporâneos no período neolítico por ter sido o primeiro a receber o Espírito de Deus, tornando-se a semelhança dEle. Essa teoria, adotada inclusive por importantes teólogos fora do campo da ciência, apresenta uma grande dificuldade: admitir essa premissa implica também em admitir que atos violentos e egoístas cometidos pelos vizinhos de Adão não seriam pecados; pelo contrário, seriam características comuns insuscetíveis de julgamento moral.

Ademais, é necessário considerar também o pecado original no Jardim e suas consequências para toda a humanidade. Para esse ponto, o autor traz uma crítica histórica sobre a influência de Agostinho e sua particular interpretação de que o tal pecado original infectou toda boa criação de Deus, interpretação esta que se tornou tradição. Mas é isso mesmo o que a Bíblia quis dizer? Sigamos então a lógica de Harris ao afirmar, a partir do texto de Romanos, que quando Paulo identifica Adão como autor do pecado e da morte, não deixa de perceber que cada nova geração compartilha do pecado mediante suas próprias ações. Para ele, o foco de Paulo está em fazer uma comparação do primeiro Adão com Jesus em um nível simbólico, e não histórico, até porque a narrativa do Jardim não é enfatizada ao longo do Antigo Testamento,  mas o é no Novo Testamento para ressaltar a obra de Cristo. A partir dessa ideia, não é necessário interpretar o texto bíblico da queda de maneira histórica, visto que a teologia não seria afetada por uma interpretação apenas simbólica desta.

O fim dessa conversa, pontuada por argumentos de diferentes perspectivas, passa a considerar, enfim, a possibilidade de uma teologia evolutiva. 

o foco de Paulo está em fazer uma comparação do primeiro Adão com Jesus em um nível simbólico, e não histórico, até porque a narrativa do Jardim não é enfatizada ao longo do Antigo Testamento, mas o é no Novo Testamento para ressaltar a obra de Cristo.

Com base na teologia cristã de Irineu (130 d.c), temos uma visão antiga, mas inovadora, sobre o tema, defendida pelo autor: “Deus, de início, criou os seres humanos deliberadamente sem perfeição, porque, em sua imaturidade, eles seriam incapazes de suportá-la”.³ Sendo assim, “O plano de Deus era que os seres humanos crescessem em maturidade e perfeição, do mesmo modo que as crianças crescem e se tornam adultos”.⁴ Com base nessa perspectiva, quando Deus diz que a criação é boa, fala no sentido de que ela é adequada ao seu propósito, e não no sentido de perfeição. O desvio em direção ao pecado, então, não é tanto uma queda, mas um “fracasso em ascender”. O símbolo do relato da queda permanece intacto, mesmo que não seja uma descrição de fatos. Somos apresentados ao que seria o lado sombrio da boa criação de Deus, o sofrimento evolutivo, e, por sua consequência, a morte, como características intrínsecas da criação. É só por intermédio de Cristo e do Espírito que os humanos podem ser restaurados, e a esperança de uma perfeição reside no futuro escatológico da nova criação, para o qual é cunhado o termo creatio ex vetere, ou seja, “criação a partir do antigo”, onde a velha criação não será rejeitada, mas se tornará a matéria-prima do que está por vir. E em seu cerne deve estar Jesus, que teve sua ressurreição como precursora dela. 

Mas essa transformação está além do alcance do que as ciências da natureza têm a dizer. Portanto, faz sentido que aqui seja onde o diálogo do livro se encerra. 

Em conclusão, a discussão que o livro se propõe a fazer é longa, e de maneira nenhuma foi esgotada. O diálogo entre ciência e Bíblia ainda tem longos encontros e jantares dos quais vai  participar e que verá florescer, e muito mais convidados a chamar. Nem todos irão concordar com tudo, é verdade, mas podemos argumentar que é isso que torna a conversa interessante. Acredito que apenas ao sermos transformados na nova criação prometida é que teremos plena compreensão da ciência e de como Deus a manejou e a inspirou. Até lá, nossa fé é edificada ao contemplar a grandiosidade do nosso Deus através de  suas lentes.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Estudo selecionado na 2ª Chamada de Estudos de Livros do Radar ABC².

1. Mark Harris, Discutindo a criação, 2023, p. 29.

2. Ibidem, p. 172.

3. Ibidem, p. 206.

4. Ibidem.            

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