QUEM SOMOS

SIMPÓSIO

Criação: um lugar de encontro entre fé e ciência?

Paulo Won|

01/09/2023

2222

Paulo Won

Mestre (M.Th.) em Estudos Bíblicos, Universidade de Edimburgo, 2016; Mestre em Divindade (M. Div.), Seminário Teológico Servo de Cristo, 2013; Bacharel em Relações Internacionais, PUC-SP, 2005; Atuou no mercado financeiro por 10 anos. Foi Evangelista do Departamento Educacional da Igreja Sinam. É pastor auxiliar na Igreja Presbiteriana de Cuiabá. Serve também como diretor da Escola Didaskalia de Bíblia e Teologia.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Won, Paulo. Criação: um lugar de encontro entre fé e ciência? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Todos já leram com uma dose elevada de curiosidade o relato das origens nos primeiros dois capítulos de Gênesis. Esse é o tipo de texto que cai como luva na discussão entre fé e ciência. Mas já frustrando a expectativa de muitos leitores ávidos por respostas empiricamente verificáveis, o texto de Gênesis, e qualquer outro na Bíblia, não foi escrito com a finalidade de afirmar verdades científicas, ainda que a ciência moderna possa provar que os acontecimentos na Bíblia possam ser “verificáveis”. Isso, no entanto, não dilui o interesse sempre presente de sabermos mais sobre temas sensíveis como as questões relacionadas à definição do “dia” em Gênesis 1 — se são períodos de 24 horas, era ou intervalos temporais longos —, se Adão e Eva foram pessoas reais, ou até se o criacionismo evolutivo pode, ou não, ser encaixável no relato das origens. Talvez estejamos fazendo perguntas ao texto bíblico que ele não queira responder, ou queremos ver ciência em um texto antigo e, por isso, pré-científico.

Ao tentarmos interpretar as origens, invariavelmente podemos partir de um texto muitíssimo mais recente, onde um autor anônimo disse com toda a sabedoria e revelação divina: “Pela fé, entendemos que o universo foi formado pela palavra de Deus, de maneira que o visível veio a existir das coisas que não são visíveis” (Hb 11:3). Se o mundo foi ou não criado por Deus, no frigir dos ovos, é questão de fé, algo que a ciência nunca poderá provar com absoluta certeza. Todavia, onde a ciência não pode adentrar, a fé nos conduz até o fim, nos oferecendo não necessariamente as respostas para os nossos questionamentos, mas uma mudança da nossa maneira de pensar, de forma que, depois de adentrarmos nas portas da fé, nossos próprios questionamentos sejam adequados à realidade de um Deus Trino que se relaciona com o seu povo.

o texto de Gênesis, e qualquer outro na Bíblia, não foi escrito com a finalidade de afirmar verdades científicas, ainda que a ciência moderna possa provar que os acontecimentos na Bíblia possam ser “verificáveis”.

Não sou cientista de formação. Sou biblista. E, como tal, meu interesse é mergulhar na riqueza do texto, que, se for verdadeiro, e assim cremos que seja, não necessariamente será algo que contradiga um trabalho científico ou conclusões empíricas feitas de forma adequada e honesta. João Calvino, já no século 16, chegou a deixar registrado que o estudo da astronomia era importante porque tal arte descortinava a admirável sabedoria de Deus.¹ Não podemos ser ingênuos, por um lado, e dizer que apenas nas Escrituras encontramos a verdade sem nos darmos conta de que estamos rodeados da revelação geral. Por outro lado, devemos evitar adequar o texto bíblico a conclusões tiradas fora dele para legitimar a sua “veracidade”. Devemos escolher o caminho do meio, entendendo o valor das discussões do campo teológico e científico, e buscar formas de relacionarmos uma coisa à outra.

As autoras que têm seus trabalhos publicados neste simpósio basearam-se no livro do renomado erudito Mark Harris, Discutindo a criação: um encontro entre a bíblia e a ciência, para a elaboração de seus trabalhos críticos. O Dr. Harris, físico e biblista, é o novo Andreas Idreos Professor of Science and Religion da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Antes dessa posição, atuou como professor da área de Ciência e Religião da Universidade de Edimburgo. Assim, podemos esperar que a obra traga um equilíbrio entre a erudição bíblica e científica. Essa é uma obra que reforça pontos fundamentais da fé cristã e, ao mesmo tempo, apresenta perspectivas que vão além do escopo da dogmática, oferecendo possibilidades de interpretação dos textos que versam não apenas sobre a criação, mas também sobre a nova criação e nosso papel nesse ínterim histórico. Porém, ela o faz de uma maneira com a qual talvez o leitor brasileiro não esteja habituado. Em minha visão, isso só torna a obra ainda mais interessante.

O presente simpósio nos oferece, por meio dos trabalhos produzidos, um convite a lermos as Escrituras não com a preocupação de obter dela dados cientificamente verificáveis, ainda que isso possa acontecer. Aliás, a grande contribuição das autoras selecionadas está no fato de que a Bíblia, e particularmente o relato das origens, não ser sobre ciência ou sobre a busca de textos-provas para questões hodiernas a respeito de cosmogonia. É ponto pacífico a conclusão de que as Escrituras são a respeito de Deus e devem ser lidas à luz de seus propósitos criacional, redentivo e missional, por meio de um trabalho exegético-hermenêutico responsável.

Como protestantes, cremos que a Palavra de Deus é a Verdade, e isso implica dizer que, sempre que tivermos condições, devemos interpretar o conteúdo das Sagradas Escrituras de forma literal. Todavia, quando digo literal, não estou me referindo a um literalismo limitado, mas sim à literalidade que fazia sentido primeiramente na mente dos autores, e dos leitores ou ouvintes primários. Nesse sentido, já podemos deixar claro que Gênesis não é um livro que nos conta fábulas, histórias ou mitos com significados místicos ou irreais. Gênesis nos fala da origem de todas as coisas como um fato, cujo sujeito está muito bem identificado e cujo objeto somos todos nós. É a história real contada em uma forma narrativa. Aliás, é uma narrativa teológica com um objetivo claro: anunciar que o Deus que se revelou por meio da aliança com Israel é o Criador de todas as coisas e que se mantém soberano acima de tudo, em todas as circunstâncias. Nas próprias palavras de Harris, “não importa o que possamos dizer sobre Gênesis 1, sempre concluiremos que se trata de uma história sobre Deus em meio ao ato de criar, supervisionar e realizar.”²  

Outra coisa a ser acrescentada quando falamos de literalidade do texto é que essa literalidade deve estar necessariamente relacionada não apenas ao texto na sua forma final, mas a todas as variáveis que fizeram parte do processo de redação, ou seja, o contexto histórico, social, político e religioso. Em outras palavras, para entendermos Gênesis precisamos fazer uma viagem no tempo e chegar ao período e ao lugar em que esse documento antigo foi divinamente inspirado, escrito e, posteriormente, transmitido.

para entendermos Gênesis precisamos fazer uma viagem no tempo e chegar ao período e ao lugar em que esse documento antigo foi divinamente inspirado, escrito e, posteriormente, transmitido.

Uma importante discussão presente na obra é a importância da doutrina trinitária para a correta compreensão da criação como um todo. Geralmente, dentro das discussões criacionistas, esse aspecto relacionado à ontologia divina é diluído com discussões sobre o modus creationis — ou seja, o passo a passo analítico e cronológico da criação de todas as coisas — do cosmo. Como salienta uma de nossas autoras, “Se no princípio de tudo temos um Deus que — transcendendo sua divindade, perfeição e completude — ordena e cria um mundo a partir do nada, trazendo vida à terra, pelo poder de sua palavra, com o propósito de compartilhar seu amor com sua criação, podemos então identificar a seguinte organização da trindade na criação ex nihilo”.³

Chama a atenção também a interligação da creatio ex nihilo, da creatio ex continua e da creatio ex vetere. “Na creatio ex nihilo, temos a ideia de que Deus fez o mundo literalmente a partir do nada e continua a sustentá-lo, no sentido mais amplo possível. Mais do que uma explicação sobre o princípio, é uma afirmação sobre a relação contínua entre criação e Criador (ex continua).”⁴ E com a consumação de todas as coisas, teremos a creatio ex vetere, ou seja, “’criação a partir do antigo’ onde a velha criação não será rejeitada, mas se tornará matéria prima do que está por vir. E em seu cerne deve estar Jesus, que teve sua ressurreição como precursora dela”.⁵ Essa conexão desses três eixos complementares é importante para que o estudo da cosmogonia bíblia e suas eventuais interfaces com a ciência estejam teologicamente apoiados em um curso maior da história, a saber, da metanarrativa da redenção cujo início é a criação de todas as coisas e o fim é a recriação do cosmo perfeito.

A compreensão de toda a extensão do processo criativo e de toda a história redentiva tendo Cristo como seu centro dá lugar, por fim, à discussão de uma escatologia robusta. “Se a finalidade da criação culmina no seu fim e na sua redenção, discutir a escatologia é um caminho natural. Todos os cenários científicos sobre o fim dos tempos são pessimistas quanto ao destino da humanidade e do universo. Já as interpretações escatológicas dos textos bíblicos costumam variar entre uma leitura literal e poética, as quais simplificam demasiadamente os relatos. Todavia, a Palavra de Deus é clara ao afirmar que a nova criação será algo totalmente novo.”

A conclusão geral das autoras é que a presente obra e a discussão que ela levanta é relevante dentro do nosso âmbito teológico brasileiro. Textos complexos, como o relato das origens, devem despertar por parte de todos que a leem um senso de humildade e humilhação. Humildade por nos depararmos com a majestade de um Deus-Criador que a tudo fez de forma “assombrosamente maravilhosa” (Sl 139:14), e humilhação por termos de conviver com um texto que por um lado nos revela uma verdade incontestável do Deus que criou todas as coisas para o louvor de sua glória, mas que deixou na limitação das palavras do autor de Gênesis, mistérios de compreensão e níveis de incerteza quanto ao modus creationis de tudo. Como encerra uma das autoras, “sabemos que temos certezas limitadas sobre como o mundo foi criado […] mas temos a plena consciência de que o trino Deus é Criador de todas as coisas, de que Ele se importa e se envolve com Sua criação, e que desde o princípio a criação caminhava para a direção da redenção, consumada em Jesus Cristo. E permitir incertezas que não comprometem, de modo pessoal, a redenção, traz paz àqueles que, como eu, não sabem negar a ciência com a qual convivem todos os dias.”

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. John Calvin, Commentaries on the First Book of Moses Called Genesis, 2009, p. 86.

2. Mark Harris, Discutindo a criação: um encontro entre a bíblia e a ciência, 2023, p. 60.

3. Thaís Barbosa Gonçalves, “Criação sob três aspectos, e sempre adequada ao seu fim”, Unus Mundus, n. 2, 2023. Clique aqui para acessar.

4. Milene de Oliveira Goulart, “Bíblia e Ciência – um encontro que deve acontecer com mais frequência”, Unus Mundus, n. 2, 2023. Clique aqui para acessar.

5. Ibidem.

6. Taís Madeira Ott, “Vamos discutir a criação?”, Unus Mundus, n. 2, 2023. Clique aqui para acessar.

7. Ibidem.

Outros textos do simpósio

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!