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À beira de um admirável mundo novo*

O mito de Sísifo em face do transumanismo

Djesniel Stheieny Krause|

23/02/2024

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Djesniel Stheieny Krause

Bacharel em Administração e em Teologia; possui MBA em Gestão de Pessoas, e especializações em Teologia, Bíblia e Missão e em Cristianismo e Política. Também possui um canal no Youtube chamado Teofilia, onde compartilha resenhas de livros teológicos, apologéticos e políticos.

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Como citar

Krause, Djesniel Stheieny. À beira de um admirável mundo novo: o mito de Sísifo em face do transumanismo. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

O mito de sísifo revisitado

Desde tempos imemoriais, o ser humano encara a morte como uma inimiga a ser vencida. Isso pode ser verificado num dos textos mais antigos do mundo, a Epopeia de Gilgamesh: conta-se que o rei de Uruk, por ocasião da morte de seu colega, sai em busca da imortalidade. Nessa narrativa, encontra-se a seguinte lamentação:

Como posso descansar, como posso ficar em paz? O desespero se instalou em meu coração. Isso que meu irmão o é agora, o mesmo serei eu quando morrer. Por medo da morte farei o possível para encontrar Utnapishtim, a quem chamam o Longínquo, pois ele se juntou à assembleia dos deuses.¹

Assim, afirma o físico Michio Kaku, “a procura pela vida eterna é um dos mais antigos temas da literatura humana. […]. A humanidade é obcecada com a imortalidade há tempos”.² Diz o teólogo brasileiro Euler Westphal: “apesar dessa proximidade da morte, ela não se nos torna familiar. Ela é aquilo que de mais próprio temos e, ao mesmo tempo, é o que de mais estranho experimentamos”.³

Outro exemplo de inconformidade frente à morte é a figura mitológica de Sísifo, fundador e primeiro rei de Corinto, descrito por Homero como “[…] o mais ardiloso dos homens”.⁴ Conta a tradição que Sísifo presenciou o rapto de Egina, filha do deus-rio Asopo, cometido por Zeus, mas se negou a revelar o paradeiro da moça até que Asopo lhe concedesse uma nascente de água, enfurecendo Zeus pela delação.

Trechos do mito de Sísifo são contados por diferentes autores antigos, entre eles Pausânias, onde encontra-se a informação de que

Subindo-se a Acrocorinto, há um templo de Afrodite [...]. Atrás do templo fica uma fonte, oferta de Asopo a Sísifo, ao que se conta. Este, embora sabendo que tinha sido Zeus o raptor de Egina, filha de Asopo, não lho quis revelar, enquanto a procurava, até ele produzir água em Acrocorinto. Quando Asopo lhe satisfez a exigência, ele fez-lhe a revelação; e por isso – se é de crer em tal história – recebeu um castigo no Hades.⁵

Zeus condenou Sísifo à morte, mas este, por sua astúcia, foi capaz de aprisionar Tânatos, o deus da morte, impedindo que não apenas ele não fosse levado ao mundo inferior, mas também que, durante o período que durou o cativeiro, nenhum mortal experimentasse a morte.

Albert Camus, recontando o mito, afirma que “Plutão não pôde suportar o espetáculo de seu império deserto e silencioso. Enviou o deus da guerra, que libertou a Morte das mãos de seu vencedor”.⁶ Sísifo acompanhou Ares ao mundo dos mortos, mas antes, fez um pedido à Mérope, sua esposa: que deixasse seu corpo insepulto e sem as devidas honras fúnebres. Nas palavras de Camus:

Sísifo, já perto de morrer, quis imprudentemente pôr à prova o amor de sua esposa. Ordenou que ela jogasse seu corpo insepulto no meio da praça pública. Sísifo foi para os infernos. E ali, irritado por uma obediência tão contrária ao amor humano, obteve de Plutão a permissão de voltar à Terra para castigar a mulher.⁷

Embora Camus mencione a permissão como sendo concedida por Plutão, na obra Teognideia é afirmado que tal benefício foi dado por Perséfone, sua esposa. Segundo o texto, “[…] Sísifo, filho de Éolo, que por sua própria sagacidade voltou até mesmo do Hades, depois de, com palavras sábias, persuadir Perséfone”.⁸

Sísifo, agora novamente trazido à vida, quebrou sua promessa de retornar ao mundo dos mortos; fugiu e escondeu-se, enganando, pela segunda vez, a morte. Camus escreve:

Mas quando tornou a ver a face deste mundo, a desfrutar da água e do sol, das pedras tépidas e do mar, não quis voltar para as sombras infernais. [...]. Durante muitos anos ele continuou morando em frente à curva do golfo, com o mar resplandecente e os sorrisos da Terra. Foi preciso uma intervenção dos deuses. Mercúrio segurou o audaz pelo pescoço e, tirando-o de suas alegrias, trouxe-o à força de volta para o inferno, onde sua rocha estava já preparada.⁹

De avançada idade, Sísifo finalmente foi levado à força para o Hades e lá recebeu o castigo por sua petulância. Sua condenação foi a de, eternamente, rolar uma enorme pedra por um aclive apenas para, na quase conclusão de seu objetivo, a pedra novamente rolar desfiladeiro abaixo, fazendo-o recomeçar o trabalho. Homero, ao narrar a visão de Odisseu no Hades, descreve a punição de Sísifo:

Pude ver Sísifo e seu trabalho extenuante, sustentar com os braços pedra assombrosa. Firmava-se com pés e mãos para revolvê-la perambeira acima até atingir o topo, mas quando quase alcançava o cume, vencido pelo peso, o penedo insolente rolava até o sopé. O trabalho titânico recomeçava.¹⁰

O mito de Sísifo apresenta o ser humano julgando-se mais poderoso que a morte, acreditando-se capaz de enganá-la e vencê-la por sua sagacidade. Não apenas os antigos, mas também no século 21, pensadores acreditam poder vencer a morte através da inteligência e, dado os avanços científicos recentes, sua mais desenvolvida tecnologia. É para este tópico que o presente trabalho volta-se: os meios tecnológicos pelos quais o ser humano, como Sísifo, busca vencer a morte.

O mito de Sísifo apresenta o ser humano julgando-se mais poderoso que a morte, acreditando-se capaz de enganá-la e vencê-la por sua sagacidade.

O último inimigo: o transumanismo como tentativa de conquistar a morte por meios tecnológicos

Ao longo da história, embora muitos a tenham buscado, a morte sempre foi encarada como um inimigo a ser temido, respeitado ou vencido. Camus, filósofo existencialista, escreve que “[…] a morte nos repugna e nos cansa. Também ela deve ser conquistada”,¹¹ e então apresenta Sísifo como uma prefiguração do homem revoltado. Em suas palavras, “seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo o ser se empenha em não terminar coisa alguma”¹² e conclui, sobre a tragédia de Sísifo, que “esse mito só é trágico porque seu herói é consciente. O que seria a sua pena se a esperança de triunfar o sustentasse a cada passo?”.¹³

Tal esperança de triunfo tem-se feito presente cada vez mais em escritos acadêmicos e mesmo populares. Os avanços tecnológicos têm tornado possível uma melhora significativa da qualidade de vida, como escreve Egbert Schuurman, “por meio das possibilidades trazidas pela eletrônica e pelos microcomputadores, pode-se auxiliar enormemente os deficientes: os surdos podem ‘ouvir’ novamente, os cegos ‘veem’, e os coxos ‘andam’”.¹⁴ Mesmo diante de tais avanços, poderia chegar a tecnologia humana tão longe a ponto de vencer a própria morte? Alguns pensadores acreditam que sim.

Yuval Noah Harari trata a morte como “somente problemas técnicos”¹⁵ e acrescenta logo em seguida que “[…] todo problema técnico tem uma solução técnica. Não é preciso esperar pela volta de Cristo à Terra para superar a morte. Alguns nerds num laboratório podem fazer isso”.¹⁶ De acordo com esse pensamento, seria apenas questão de tempo para o ser humano, por meio do avanço tecnológico, ser capaz de, como Sísifo, acorrentar a morte. Tal esforço é por vezes chamado de transumanismo.

Para Nick Bostrom, o transumanismo é um:

[...] movimento intelectual e cultural que afirma a possibilidade e o desejo de melhorar fundamentalmente a condição humana por meio da razão aplicada, especialmente desenvolvendo e tornando amplamente disponíveis tecnologias para eliminar o envelhecimento e melhorar enormemente o desenvolvimento intelectual, físico e capacidades psicológicas.¹⁷

David Livingstone vai mais longe e afirma que “Transumanismo é a busca por usar todos os avanços da ciência moderna para aumentar o potencial humano e, finalmente, conquistar a imortalidade”;¹⁸ Harari acrescenta aos anseios do ser humano: “no século XXI, o terceiro grande projeto da humanidade será adquirir poderes divinos de criação e destruição e elevar o Homo Sapiens à condição de Homo deus”.¹⁹

Sobre a origem do termo, John Lennox afirma que “muitas pessoas acreditam que a palavra transumanismo originou-se com o ateísta Julian Huxley (1887-1975)”.²⁰ Um exemplo pode ser verificado em Kaku, que afirma que “[…] foi Julian Huxley em 1957 que estabeleceu de forma bem clara os princípios básicos do transumanismo”²¹; a origem do termo, entretanto, é anterior à Huxley, remetendo a Dante Alighieri e sua Divina Comédia, onde, no livro Paraíso, encontram-se as seguintes palavras: “Transumanar não pode-se entender por palavras, portanto o exemplo baste pra quem experiência a Graça conceder”.²² Assim, como destaca Lennox, “a origem da palavra transumanismo não é secular. Historicamente, ela foi primeiramente usada, não por um cientista em relação à ciência, mas relacionava-se à ressurreição do corpo”.²³

“a origem da palavra transumanismo não é secular. Historicamente, ela foi primeiramente usada, não por um cientista em relação à ciência, mas relacionava-se à ressurreição do corpo".

Uma das realidades hoje tornadas possíveis graças à biotecnologia é o aprimoramento da espécie humana através da engenharia genética, onde certas características que afetam a qualidade de vida das pessoas podem ser evitadas, oferecendo cura para diversas doenças genéticas. Como afirma Kaku,

em vez de aperfeiçoar certas características genéticas ao longo de décadas por meio de reprodução seletiva, como ocorreu com cachorros e cavalos, poderíamos realizar o que quiséssemos em uma geração através da engenharia genética.²⁴

Entretanto, como pontua Harari, “não existe uma linha que separa claramente a cura do aprimoramento”²⁵; sendo assim, uma tecnologia que hoje é usada para devolver a audição ao surdo logo poderá ser usada para aprimorar a audição dos já saudáveis; o mesmo pode-se aplicar à inteligência, força física etc. Pode-se falar no risco da criação de uma super-raça, ou, para usar termos nietzschianos, o Übermensch.

Kaku menciona a distopia de Aldous Huxley, Admirável Mundo Novo, onde:

[...] usa-se a biotecnologia para gerar uma raça de seres superiores, chamada Alfas, destinados a liderar a sociedade. Outros embriões são privados de oxigênio de forma a tornarem-se deficientes mentais, criados para servir aos Alfas. O extrato mais baixo da sociedade é o dos Ípsilons, criados para realizar trabalhos manuais degradantes. Trata-se de uma utopia planejada em que a tecnologia é usada para satisfazer todas as nossas necessidades e tudo parece em ordem e em paz. Só que toda a sociedade se escora na opressão e na miséria daqueles criados para formar a classe baixa.²⁶

O admirável mundo novo é um modelo de mundo tecnicista, onde as pessoas são desenvolvidas geneticamente em laboratórios e a sociedade é dividida em castas pré-determinadas antes do nascimento. Também abandonou-se a crença em Deus e no sobrenatural. Huxley explica, nas palavras de Mustafá Mond, “Deus não é compatível com as máquinas, a medicina científica e a felicidade universal. É preciso escolher. Nossa civilização escolheu as máquinas, a medicina e a felicidade”.²⁷

A exemplo desse mundo distópico, hoje tornou-se possível que a reprodução humana se dê por meios tecnológicos laboratoriais, a chamada fertilização in vitro (FIV), que pode ser usada por casais que têm dificuldades para engravidar, ou mesmo por preocupações quanto aos problemas genéticos que podem ser herdados pela prole. Como pontua Schuurman, a FIV:

[...] abriria caminho para um controle total do processo de reprodução humana. Este processo se inicia com a eliminação de embriões inadequados. Embriões que resultariam em crianças deficientes devem ser destruídos em um estágio inicial. Como resultado do abrangente mapeamento do genoma humano, logo será possível saber rapidamente, com o auxílio da tecnologia da informação, se os embriões atendem aos requisitos necessários.²⁸

O processo de eliminação de embriões inadequados pode levar à discussão sobre o início da vida humana. Durante a gestação, não há um ponto intermediário não arbitrário onde se pode diferenciar um feto ou embrião entre humano e não humano, e, portanto, tal descarte pode ter sérias implicações éticas. Ainda de acordo com Schuurman:

[...] não estaremos mais lidando com a manipulação genética, mas com a purificação dos genes, isto é, com uma seleção em detrimento de uma correção. Eventualmente, a introdução de um diagnóstico pré-implantação (um termo que mascara o que ocorre de fato) abrirá as portas para a eugenia sem limites. A tecnologia, a purificação étnica e o aprimoramento racial caminham lado a lado.²⁹

O descarte da vida indesejada ou inadequada leva ao debate sobre eugenia, e esta, por sua vez, aos exemplos da história. Lennox relembra o caso da Alemanha nazista:

[...] na Alemanha, onde os nazistas imaginaram que poderiam criar um sobre-humano ariano pelo que chamavam de "criação científica", um eufemismo cínico que envolvia a morte de pessoas consideradas descartáveis porque eram consideradas mental ou fisicamente abaixo do padrão ou "inadequadas" ou "racialmente impuro". Hitler essencialmente assumiu a ideia de "sobrevivência do mais apto" e aplicou-a aos seres humanos em sua busca pelo Übermensch. Isso levou ao extermínio de milhões de judeus, poloneses e outros "indesejáveis" na violência mais depravada que o mundo já viu.³⁰

Richard Weikart, em seu estudo “De Darwin a Hitler“, onde expõe as bases filosóficas eugenistas de Hitler, menciona “[…] o apelo utópico do nazismo, que se destinava a criar uma pessoa superior e melhor”,³¹ e explica:

A moralidade de Hitler não se baseava na ética judaico-cristã tradicional nem no imperativo categórico de Kant; na verdade, os repudiava. Ele adotou uma ética evolucionária que tornava a aptidão e a saúde darwinianas os únicos critérios para padrões morais. A luta darwiniana pela existência, especialmente a luta entre raças diferentes, tornou-se o único árbitro da moralidade”.³²

Assim, embora tais fatos não precisem necessariamente ser usados como apologética criacionista, eles devem alertar sobre potenciais perigos das ideias de aprimoramento genético humano e descarte dos inaptos. Kaku alega que “defensores do transumanismo admitem que é preciso levar a sério todas essas hipóteses, mas alegam que, neste momento, tais inquietações são puramente acadêmicas”,³³ porém, como lembra John Gresham Machen,

o que é hoje assunto de especulação acadêmica, amanhã moverá exércitos e arrasará impérios. Nesse segundo estágio, estará difundida demais para ser combatida; o momento de pará-la era quando ainda estava sendo debatida de forma calorosa.³⁴

Não apenas o aprimoramento genético tornou-se possível com o desenvolvimento tecnológico, mas também o incremento da vida biológica com o eletrônico. Tal entrelaçamento pode se dar principalmente para fins médicos, como implantes de pontes de safena, aparelhos auditivos e exoesqueletos.

Um bom exemplo da utilização de exoesqueleto deu-se em 2014, na abertura da Copa do Mundo, no Brasil. A equipe liderada pelo neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis realizou uma demonstração pública de um paraplégico, Juliano Pinto, na época com 29 anos, utilizando um exoesqueleto controlado pelo cérebro, que o possibilitou caminhar e chutar a bola. Kaku relata o acontecimento:

O professor Miguel Nicolelis, da Universidade Duke, havia inserido um chip no cérebro do homem e o conectado a um computador portátil que controlava seu exoesqueleto. Por meio pura e simplesmente da força do pensamento, um indivíduo paralisado conseguiu caminhar e chutar a bola.³⁵

Por mais nobres e válidas que sejam tais iniciativas para melhorar a qualidade de vida de pessoas que possuem algum tipo de deficiência e veem na tecnologia uma possibilidade de minimizar seus sofrimentos, também elas podem despertar o desejo de extrapolar sua atual utilização e transformar o ser humano a ponto de fazê-lo vencer a morte. Mark O’Connell escreve sobre os transumanistas:

Eles acreditam que podemos e devemos erradicar o envelhecimento como causa de morte; que podemos e devemos usar a tecnologia para aumentar nossos corpos e nossas mentes; que podemos e devemos nos fundir com as máquinas, refazendo-nos, enfim, à imagem de nossos próprios ideais superiores.³⁶

O mencionado desejo de erradicar o envelhecimento como causa de morte remete ao Dr. Frankenstein, personagem de Mary Shelley. Num de seus diálogos, ele diz que “a riqueza era objetivo menor; mas quanta glória eu não teria por aquela descoberta, se fosse capaz de banir a doença do organismo humano e tornar o homem invulnerável a tudo que não fosse a morte violenta!”.³⁷

Harari tem seu palpite sobre o futuro das interações tecno-biológicas:

O Homo sapiens não vai ser exterminado por um levante de robôs. É mais provável que sua atualização ocorra passo a passo, fundindo-se no processo com robôs e computadores [...]. Isso não vai acontecer em um dia nem em um ano. Na verdade, já está acontecendo neste momento como resultado de inúmeras ações cotidianas. Todo dia milhões de pessoas decidem dar a seu smartphone um pouco mais de controle sobre suas vidas, ou experimentam uma droga antidepressiva nova e mais eficaz. Na busca de saúde, felicidade e poder, os humanos modificarão primeiro uma de suas características, depois outra, e outra, até não serem mais humanos.³⁸

Tal entrelaçamento da vida biológica com o eletrônico pode suscitar esperanças de alcançar um nível do próprio abandono da vida biológica em prol de uma vida puramente mecânica ou virtual.

Tal entrelaçamento da vida biológica com o eletrônico pode suscitar esperanças de alcançar um nível do próprio abandono da vida biológica em prol de uma vida puramente mecânica ou virtual.

Ray Kurzweil define este ponto da história futura como “Singularidade”. Para ele “a Singularidade irá representar o ponto culminante da fusão entre nosso pensamento e nossa existência com nossa tecnologia, tendo como resultado um mundo que ainda é humano mas que transcende nossas raízes biológicas”.³⁹ A partir daí, não haverá diferenças “[…] entre homem e máquina ou entre a realidade física e a virtual”.⁴⁰ Jacob Shatzer escreve: “[…] o upload da mente diz respeito ao processo de se começar pela mente humana e de se terminar com a mente digitalizada”.⁴¹ Assim, o ser humano teria vencido a morte ao transferir  sua consciência para um computador ou robô, e até retransferi-la para máquinas ainda mais aprimoradas.

Kaku questiona-se acerca da identidade de tal robô: aquilo seria de fato a pessoa? Segundo ele,

[...] se um robô pode duplicar todo o comportamento do indivíduo ao nível de gestos minuciosos, com todas as memórias e hábitos intactos, e é indistinguível da pessoa original em cada detalhe, então, sim, para todos os propósitos, ele "é" a pessoa.⁴²

Também Shatzer afirma que os transumanistas “[…] reduzem a mente humana ao que pode ser mensurado e compreendido no plano material. Mudar o material (o substrato, conforme a terminologia usada) não será grande coisa se os resultados forem os mesmos”.⁴³

Na mesma esteira de pensamento está a ideia da interconectividade de todas as mentes. O “[…] desenvolvimento do que alguns pesquisadores chamam de cérebro global emergente […]. Essa ideia decorre da observação de que várias mentes humanas em nosso mundo estão se tornando gradualmente mais conectadas a uma mente maior”.⁴⁴ Livingstone afirma que “a criação de uma consciência coletiva, e a fusão da mente humana com a Internet, é a base da aspiração dos transumanistas […]. O seu sonho de criar um ‘cérebro global’ aproximou-se quando Tim Berners-Lee […] inventou a World Wide Web”.⁴⁵ De tal modo, a morte seria vencida pela criação de uma superinteligência coletiva.

Onde está, ó morte, o teu aguilhão?

Todo debate acerca da vida, morte e imortalidade gira em torno da cosmovisão adotada por cada uma das partes. Questões como a existência ou não de Deus são centrais para a discussão em torno do que é a morte e qual a solução para ela. Como afirma Camus, “Se [Deus] não existe, tudo depende de nós. […], matar Deus é tornar-se deus – ou seja, realizar nesta Terra a vida eterna de que fala o Evangelho”.⁴⁶

O transumanista não considera a existência de Deus e nem o propósito pelo qual Ele cria o universo e o ser humano. Shatzer afirma que o transumanismo “[…] rejeita o sobrenatural (embora não faltem notas de transcendência o tempo todo), e, em seu lugar, enfatiza que descobrimos o sentido e a ética por meio da razão”;⁴⁷ e, de acordo com Kaku, os transumanistas “veem a raça humana como subproduto da evolução; nossos corpos, uma mera consequência de mutações a esmo, aleatórias”.⁴⁸

Existem, porém, boas razões pelas quais torna-se evidente que o universo é produto intencional de um criador atemporal, imaterial, onipotente, pessoal e de extrema inteligência. Os fortes indícios da existência de Deus vão desde a singularidade cósmica, o ajuste fino do universo, a existência de valores morais, até a encarnação, morte e ressurreição de Jesus. Como escreve Lennox, “há uma ironia aqui em que aqueles que estão procurando criar uma super inteligência não percebem que há boas evidências de que uma super inteligência, a super inteligência, já existe: Deus, o criador e sustentador dos céus e da Terra”.⁴⁹

A despeito do entendimento de Harari de que a morte não passa de um problema técnico, ela é mais do que isso: é fruto do pecado, como consta em 1Coríntios 15:21. À parte o anacronismo, Sísifo, o primeiro rei de Corinto, deveria ter considerado com seriedade tais palavras.

Como bem atesta Lennox, “[…] a mensagem cristã é que a morte física já foi vencida, no sentido de que Jesus ressuscitou dos mortos. Sua ressurreição não foi resultado de tecnologia médica avançada ou engenharia biológica, mas da ação direta do poder divino de Deus.”⁵⁰ Há motivos históricos para acreditar na veracidade da ressurreição corporal de Jesus. Segue uma breve explanação do assunto.

“[...] a mensagem cristã é que a morte física já foi vencida, no sentido de que Jesus ressuscitou dos mortos. Sua ressurreição não foi resultado de tecnologia médica avançada ou engenharia biológica, mas da ação direta do poder divino de Deus.”

Segundo Gary Habermas, há ao menos dez fatos históricos que são amplamente aceitos pelos historiadores acerca da figura histórica de Jesus:

(1) Jesus realmente morreu na cruz e (2) foi enterrado em um túmulo. (3) Os discípulos ficaram extremamente desiludidos e desconcertados com a morte de Jesus, ficando desprovidos de toda a esperança. (4) O mesmo túmulo em que Jesus foi enterrado foi encontrado vazio apenas alguns dias depois, provavelmente com as roupas da sepultura ainda dentro. (5) Os discípulos tiveram várias experiências que acreditavam ser aparições de ressurreição de Jesus. (6) Depois, os discípulos experimentaram uma transformação completa, estando dispostos a morrer pela sua nova fé. (7) A pregação resultante muitas vezes teve lugar em Jerusalém, o lugar exato onde Jesus foi morto e enterrado. (8) Esta pregação levou ao nascimento da igreja, (9) apresentando o domingo como o dia mais importante do culto, em vez do sábado. (10) Mais tarde, Paulo converteu-se ao cristianismo por meio de uma experiência que ele também acreditava ser uma aparição de Jesus ressuscitado.⁵¹

Tais itens podem ser mais bem expostos e investigados individualmente, mas, por uma questão de espaço, serão tratados em conjunto. Cada um, bem como a própria ressurreição de Jesus, é atestado por múltiplas fontes independentes, escritas muito próximo, temporal e espacialmente, ao evento.

Há milhares de manuscritos que atestam a confiabilidade da preservação do conteúdo registrado originalmente. De acordo com Josh McDowell,

hoje são conhecidos mais de 5.686 manuscritos gregos do Novo Testamento. Acrescentam-se a esse número mais de 10 mil manuscritos da Vulgata Latina e, pelo menos, 9.300 de outras versões antigas e teremos hoje mais de 25 mil cópias de porções do Novo Testamento.⁵²

Sobre a questão da crucificação de Jesus, o agnóstico Bart Ehrman afirma que “uma vez que seria impossível alguém inventar um messias crucificado, Jesus deve realmente ter existido, realmente ter levantado esperanças messiânicas e realmente ter sido crucificado. Nenhum judeu o teria inventado”.⁵³ Sobre seu sepultamento, um detalhe que deve ser mencionado é que o túmulo é de propriedade de José de Arimateia, um membro do sinédrio que, em sua ausência, condenou Jesus e o entregou ao poder romano. Dado o ressentimento dos primeiros cristãos para com o sinédrio, seria estranho os autores acrescentarem o nome dele se não fosse verdade. Também surpreende a falta de tradições alternativas que mencionem o que teria acontecido ao corpo de Jesus, nem mesmo nas controvérsias com os judeus. A mencionada polêmica com os judeus é evidência não apenas do sepultamento de Jesus, mas também do fato de o túmulo ter sido encontrado vazio, uma vez que nunca foi argumentado que o corpo ainda estivesse lá ou que nem ao menos existisse um túmulo, mas os discípulos foram acusados de roubar o corpo a fim de proclamarem sua ressurreição. John Polkinghorne comenta que “é sempre um ponto comum o fato de ter havido uma tumba e de que esta estava vazia. O que se discutia era a razão para o vazio: a ressurreição ou um ato de fraude deliberada por parte dos discípulos?”⁵⁴ William Lane Craig acrescenta que “assim, a própria polêmica judaica mostra que o túmulo estava vazio. Isso é evidência histórica da mais alta qualidade, pois não vem dos cristãos, mas dos próprios inimigos da fé cristã”.⁵⁵ Um fator adicional acerca da descoberta do túmulo vazio é que as primeiras testemunhas são mulheres, que, para a cultura judaica do século I, não tinham valor evidencial; conforme N.T. Wright, “mulheres simplesmente não eram aceitas como testemunhas legais”.⁵⁶

E James Porter Moreland conclui: “parece claro que os escritores do Novo Testamento eram capazes de dizer a verdade e estavam dispostos a fazê-lo. Eles tinham muito pouco a ganhar e muito a perder em razão de seus esforços”.⁵⁷

Dada a veracidade de cada item listado por Habermas, pode-se desenvolver hipóteses naturalistas, que não apelam para a ressurreição corporal de Jesus, como a teoria do desmaio, do túmulo errado e das alucinações. Entretanto, elas falham miseravelmente em algum ponto crucial e, por isso, são refutadas a cada nova tentativa de desacreditar a ressurreição de Jesus.

A partir de uma inferência à melhor explicação, pode-se concluir, com alto grau de confiança, que Jesus de fato ressuscitou dentre os mortos, provando, assim, ser quem afirmava ser: o Filho de Deus, que verdadeiramente venceu a morte.

Considerações finais

No presente trabalho, discutiu-se o Mito de Sísifo como um símbolo da tentativa humana de conquistar a morte por seus próprios esforços, o fracasso de tal empreitada e o castigo imposto por tal ato audacioso.

Também contemplou-se as ideias transumanistas em suas tentativas contemporâneas de transcender a vida biológica e vencer a morte por meios tecnológicos.

Por fim, viu-se que o problema da morte não encontra solução por meios médicos ou tecnológicos, mas sim que a morte já foi vencida pela ação direta de Deus, ressuscitando Jesus dentre os mortos. Evidências desse acontecimento histórico também foram apresentadas.

Pode-se observar um símbolo visível na figura de duas pedras rolando. A primeira, uma pedra mítica, que rola ladeira abaixo apenas para ser novamente empurrada por Sísifo como um castigo dos deuses ao homem que tentou vencer a morte por seus próprios esforços. Em contrapartida, há outra pedra que rolou, esta sim, histórica, a pedra que fechava a sepultura de Jesus, que, ao ressuscitar, revela a verdadeira solução, dada por Deus, para o problema da morte.

 

Referências

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Camus, Albert. O mito de Sísifo. Tradução Ari Roitman; Paulina Watch. 26. ed. Rio de Janeiro: Record, 2023.

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Habermas, Gary. Risen indeed: a historical investigation into the resurrection of Jesus. Bellingham: Lexham Academic, 2021.

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Kaku, Michio. O futuro da humanidade: marte, viagens interestelares, imortalidade e o nosso destino para além da terra. Tradução Jaime Biaggio. São Paulo: Planeta, 2019.

Kurzweil, Ray. A singularidade está próxima: quando os humanos transcendem a biologia. Tradução Ana Goldberger. São Paulo: Itaú Cultural: Iluminuras, 2018. Livro Eletrônico.

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Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Ensaio classificado em 1º lugar na 3ª chamada de Ensaios do Radar ABC².

1. Anônimo, 2001, posição 91.

2. Kaku, 2019, p. 200.

3. Westphal, 2009, p. 91.

4. Homero, 2012, posição 190.

5. Pausânias, 2022, p. 75.

6. Camus, 2023, p. 137.  

7. Ibidem, p. 137-38.

8. Theognis, 1999, p. 277.

9. Camus, 2023, p. 138.

10. Homero, 2008, p. 211.

11. Camus, 2023, p. 106.

12. Ibidem, p. 138.

13. Ibidem, p. 139.

14. Schuurman, 2016, p. 76.

15. Harari, 2016, posição 332.

16. Ibidem, posição 332-36.

17. Bostrom, 2014, p. 1.

18. Livingstone, 2015, p. 5.

19. Harari, 2016, posição 729-33.

20. Lennox, 2020, p. 46.

21. Kaku, 2019, p. 228.

22. Alighieri, 2019, p. 15.

23. Lennox, 2020, p. 46-7.

24. Kaku, 2019, p. 228.

25. Harari, 2016, posição 881-15.

26. Kaku, 2019, p. 229.

27. Huxley, 2014, p. 280.

28. Schuurman, 2016, p. 131.

29. Ibidem, p. 131.

30. Lennox, 2020, p. 91.

31. Weikart, 2021, p. 306.

32. Ibidem, p. 306-07.

33. Kaku, 2019, p. 229.

34. Machen, 2023, posição 10.

35. Kaku, 2019, p. 216.

36. O’Connell, 2017, p. 2.

37. Shelley, 2015, p. 110.

38. Harari, 2016, posição 761-69.

39. Kurzweil, 2018, posição 33.

40. Ibidem, posição 33.

41. Shatzer, 2022, p. 137.

42. Kaku, 2019, p. 214.

43. Shatzer, 2022, p. 147.

44. Ibidem, p. 133.

45. Livingstone, 2015, p. 327.

46. Camus, 2023, p. 124.

47. Shatzer, 2022, p. 65.

48. Kaku, 2016, p. 226.

49. Lennox, 2020, p. 117.

50. Ibidem, p. 159.

51. Habermas, 2021, p. 256-57.

52. Mcdowell, 2013, p. 134. 

53. Ehrman, 2014, p. 163.

54. Polkinghorne, 2008, p. 87.

55. Craig, 2012, p. 354.

56. Wright, 2013, p. 835.

57. Moreland, 2013, p. 180.

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