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ENSAIO

Inteligência artificial, criação e imago Dei*

A imagem divina espelhada nos algoritmos

Samuel Souza Alcântara Queiroz|

08/03/2024

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Samuel Souza Alcântara Queiroz

Pesquisador e doutorando em Ciência da Computação pela Technische Hochschule Ingolstadt (THI), Alemanha. Mestre em Engenharia Eletrônica e Computação pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). Graduado em Engenharia de Computação pela Universidade Paulista (UNIP).

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Como citar

Queiroz, Samuel Souza Alcântara. Inteligência artificial, criação e imago Dei: a imagem divina espelhada nos algoritmos. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Introdução

Não é de hoje que a cultura pop explora a Inteligência Artificial (IA) em suas produções literárias e cinematográficas. Embora o tema esteja em alta agora por conta das IAs generativas, o assunto sempre fez parte do imaginário popular. Desde a literatura, com Isaac Asimov em obras como O Homem Bicentenário, onde tinha-se um robô que aos poucos foi se tornando um ser humano genuíno, até Star Wars, de George Lucas, onde os robôs tinham plena consciência de sua própria existência, eram emotivos e desenvolviam laços emocionais com os protagonistas do filme, a IA vem despertando curiosidade nas pessoas na forma de admiração e medo. Apesar das especulações, fantasias e até mesmo inspirações para tecnologias que vieram a ser uma realidade, tais obras acabam misturando realidade e fantasia de tal forma que muitas vezes a população não consegue separar o que é real e o que é meramente ficção. Nessas obras, muito se especula se um dia algum algoritmo ou um robô poderá ser autoconsciente e finalmente dizer penso, logo existo.

Separando realidade de ficção

Embora as indagações presentes nas obras de ficção sejam sinceras e necessárias, é importante que seja feita uma separação. No estado-da-arte da Inteligência Artificial, não há qualquer evidência de que os algoritmos estejam se “tornando humanos”, apresentando emoções ou criando algum tipo de autoconsciência. Também não há qualquer indício de que essa tecnologia um dia será capaz de chegar a esse nível. Há uma impossibilidade técnica para que isso aconteça: em suma, a IA é uma união da Matemática, Ciência da Computação e Estatística – e, assim, não há nenhum elemento orgânico ou biológico. Mas isso não quer dizer que os avanços da IA não sejam impressionantes. De fato, essa tecnologia tem alcançado níveis que antes eram apenas especulações na ficção. Então, o que a IA já é capaz de fazer atualmente? Segue uma lista do estado-da-arte da Inteligência Artificial:

  1. Veículos autônomos: alguns veículos já podem “se dirigir” até um certo ponto sem a intervenção humana.
  2. Detecção de doenças: algumas IAs já conseguem fazer um diagnóstico altamente preciso para diversas doenças, inclusive doenças como câncer.
  3. Criação de “arte” artificial: Poesia, música, imagens etc.
  4. Tradução de idiomas.
  5. Geração de textos, chatbots: um exemplo atualmente, o ChatGPT.
  6. Movimentos anatômicos em robôs: muitos robôs já conseguem replicar movimentos como andar, correr e pular de uma maneira muito precisa.
  7. Sistemas que geram a si mesmos: alguns modelos de IA já são capazes de, em algum nível, codificar a si mesmos.

 

Esses são apenas alguns dos exemplos do que a IA pode fazer atualmente (outros poderiam ser elencados), mas já resumem muito bem o poder dessa tecnologia.

No estado-da-arte da Inteligência Artificial, não há qualquer evidência de que os algoritmos estejam se “tornando humanos”, apresentando emoções ou criando algum tipo de autoconsciência.

No que se inspira a inteligência artificial?

Uma das práticas bem presentes dentro de diversas áreas da engenharia é se inspirar na natureza para desenvolver algo prático para o ser humano, e a Ciência da Computação também segue a mesma lógica. As chamadas Redes Neurais Artificiais (RNA), tecnologia existente na maioria das aplicações de IA hoje em dia, são inspiradas no funcionamento dos neurônios humanos. Os primeiros a criar um modelo matemático simplificado do neurônio humano foram Warren McCulloch e Walter Pitts em 1943 (figura 1), modelo este que serviu de base para as RNAs modernas. Outros estudos têm sido feitos para modelar matematicamente neurônios de uma maneira que as RNAs consigam se adaptar melhor a situações imprevistas.¹

Fig. 1. Modelo matemático dos neurônios humanos proposto por McCulloch e Pitts.²

As RNAs são utilizadas em detecção de padrões e objetos em imagens (muito utilizado em carros autônomos, detecção de doenças por exames de imagens, por exemplo), geração de imagens (ex: Midjourney, DALL-E), sintetização de áudio/música, tradução/geração de textos, modelos de linguagem (ex: ChatGPT, chatbots em geral), reconhecimento facial, entre outros.

Outra técnica de IA muito utilizada é conhecida como Algoritmo Genético (AG).³ Essa técnica se baseia, de uma maneira simplificada, na Teoria da Evolução das Espécies, utilizando conceitos como mutação, crossover e seleção natural. O funcionamento dos AGs está exemplificado na imagem a seguir:

Fig. 2. Fluxograma do Algoritmo Genético.⁴

Os algoritmos genéticos foram desenvolvidos para achar uma solução otimizada para um dado problema, e essa solução é encontrada utilizando conceitos presentes na biologia evolutiva. Olhando para a figura 2, pode-se observar o seguinte: inicialmente, tem-se uma população de possíveis soluções para o problema, e essas soluções sofrem adaptações, ou são excluídas, para atingir um determinado critério; caso os critérios não sejam atingidos, o processo é repetido até que exista alguma solução com os critérios estabelecidos.⁵ Essa solução seria a “sobrevivente”. Essa técnica de IA pode ser utilizada em GPS para procurar qual seria a melhor rota para chegar ao seu destino. Sendo assim, a rota que leva menos tempo para me conduzir ao destino seria a solução final do problema.

Outra abordagem de IA muito utilizada atualmente é o chamado aprendizado por reforço. Nessa abordagem, tem-se um agente (por exemplo, um robô) inserido em um certo ambiente. Inicialmente, esse agente não é adaptado para aquele ambiente; então, ele executa ações no ambiente, e, em resposta, o ambiente dá um feedback para ele.⁶ O agente então se modifica a partir dessa resposta: ele recebe uma recompensa, e seu estado (localização no ambiente) atual é modificado, conforme exemplificado na figura 3. A ação pode ser, por exemplo, pular uma barreira. Se o robô obtiver sucesso, a localização dele será em frente à barreira. Caso ele erre, ele recebe uma punição, e a estrutura dele é alterada até que ele consiga pular aquela barreira. Essa abordagem tem diversas aplicações, entre elas robótica, jogos digitais e direção autônoma. Geralmente, esses agentes são treinados em um ambiente simulado, e depois as características desenvolvidas são utilizadas em um agente real.

Fig. 3. Funcionamento do aprendizado por reforço.⁷

Um grande exemplo do aprendizado por reforço é a chamada Evolution Gym, uma plataforma virtual desenvolvida por pesquisadores do MIT na qual qualquer pesquisador ou engenheiro pode colocar modelos de seus robôs juntamente com as funções desejadas de execução, e então o robô evolui com o passar das tentativas (Figura 4).

Fig. 4. Plataforma Evolution Gym.⁸

Com todas essas técnicas expostas, é perceptível que a IA se inspira muito no cérebro humano e nos processos complexos que envolvem natureza e evolução das espécies. É exatamente por isso que essa tecnologia tem alcançado resultados impressionantes: a inspiração na natureza.

A criação e a IA: sistemas que se autorregulam

Dentro do campo da Teologia existe uma abordagem que busca desenvolver uma Teologia da Criação a partir de uma natureza que se “autocria” ou se “autorregula”. O nome dado a essa abordagem é Autopoiese da Criação. Antes de chegar nesse conceito, é necessário explorar o que significa autopoiese.

O termo autopoiese, ou autopoeisis, foi cunhado pela primeira vez pelos cientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela no livro Autopoiesis and Cognition: The Realization of Living, de 1980. A palavra poiesis pode significar criação ou produção, então, autopoiese seria uma autocriação ou autoprodução.⁹ A ideia então seria pensar em sistemas que possuem autonomia: eles se criam, se mantêm e se organizam. Esses sistemas possuem diversos elementos internos, e cada elemento coopera com outro a fim de manter e regular o sistema como um todo. Um conjunto de elementos pode também formar outro elemento. As transformações sofridas pelos elementos dentro do sistema afetam não somente o sistema em si, mas cada elemento que compõe o sistema. Dentro do sistema, novos elementos podem ser produzidos ou criados, e cada elemento criado pelo sistema só pode ter sido criado dentro de uma superestrutura organizada. Para melhor ilustração, pode-se pensar na célula animal como um sistema autopoiético. A célula é composta por elementos extremamente diversificados, os quais ao mesmo tempo  possuem interações complexas entre si que criam e produzem outros elementos. É importante esclarecer que um sistema autopoiético não é um sistema que “se cria a partir do nada”, e sim um sistema estabelecido que é autossuficiente: ele se mantém, altera a si mesmo e produz elementos dentro de si. A Teoria Autopoiética é aplicada em diversas áreas que variam desde imunologia, psicologia, computação e até sociologia. Nas próprias palavras dos criadores da teoria:

Em nossa experiência comum, encontramos sistemas vivos como unidades que nos parecem entidades autônomas de diversidade desconcertante, dotadas da capacidade de se reproduzir. Nesses encontros, a autonomia aparece tão obviamente como uma característica essencial dos sistemas vivos que, sempre que se observa algo que parece tê-la, a abordagem ingênua é considerá-la viva.¹⁰

A Autopoiese da Criação é uma teoria no campo da Teologia da Criação desenvolvida por Niels Henrik Gregersen em 1998 no artigo The Idea of Creation and The Theory of Autopoietic Processes”.¹¹ A tese gira em torno da ideia de que Deus teria criado uma natureza que possui autonomia em seus processos: ela se autodesenvolve com estímulo e suporte divinos em seus processos de evolução cósmica e biológica. Esse processo não se dá como a ideia de Deus do deísmo, na qual Deus teria criado tudo que existe e simplesmente deixou a natureza seguir seu curso, mas sim que Deus continua como ativo Criador em todos os processos presentes. Em suas palavras:

Se Deus é Criador de tudo o que existe, e os processos autopoiéticos acontecem no domínio da natureza, então faz sentido dizer que Deus é o Criador ativo dentro desses processos autopoiéticos através do suporte de suas dinâmicas internas e possivelmente através do estímulo de suas dinâmicas em determinadas direções.¹²

Em resumo, pode-se dizer que Deus estimula os processos da criação, regula e dá suporte e sustentação para as dinâmicas existentes. Por exemplo, em um processo de formação de uma galáxia, Deus está presente como criador dela, estimulando os processos de formação galáctica e dando suporte às estruturas internas dela: gravidade, buraco negro supermassivo no centro, formação de sistemas solares etc. Da mesma maneira, pode-se dizer que Deus criou o ser humano estimulando os processos evolutivos para que chegássemos geneticamente no resultado desejado por Ele, e Ele o fez dando suporte às dinâmicas da evolução e direcionando-a nas direções que Ele desejava.

Observando o rumo que a Inteligência Artificial tem tomado, percebe-se que sistemas que se autocriam não são incomuns dentro do campo. À semelhança da Criação, a IA tem apresentado características similares à natureza em sua composição: sistemas que se autodesenvolvem, robôs que “evoluem” e soluções baseadas em seleção natural. A partir daqui, pode-se dizer que as capacidades criativas de Deus têm sido refletidas no ser humano à medida que este também cria sistemas que se autorregulam.

À semelhança da Criação, a IA tem apresentado características similares à natureza em sua composição: sistemas que se autodesenvolvem, robôs que “evoluem” e soluções baseadas em seleção natural.

Imago Dei: Deus e o homem

A Bíblia descreve a criação do ser humano como sendo feito à imagem e semelhança de Deus. A interpretação do que isso significa difere bastante entre os eruditos bíblicos. Voltando um pouco na história, para Agostinho,¹³ a imagem e semelhança tem a ver com domínio do homem sobre a Criação, mas esse domínio é realizado a partir da racionalidade humana; o atributo que revela a superioridade dos seres humanos em relação aos demais animais. Agora no presente, John Walton segue uma linha interpretativa de Gênesis 1 à luz do contexto do Antigo Oriente Próximo, onde, segundo ele, o ser humano ser portador da imagem divina tem a ver com a função de governar segmentos do Cosmos como um representante de Deus.¹⁴ Essa visão está mais relacionada com função do que substância. Isso se assemelha a outras culturas da época, onde o rei era um representante divino e governava com a chancela de sua(s) divindade(s). Wayne Grudem segue, em parte, uma linha similar quando diz que somos representantes de Deus, mas ele vai mais além em sua interpretação e reforça que o ser humano é igual a Deus no sentido de que os humanos possuem diversos aspectos nos quais são iguais a Deus (não necessariamente igual a Deus em substância), como em criatividade, santidade, intelecto, domínio, ética e imortalidade.¹⁵ Outros autores poderiam ser citados aqui, mas o que há de comum entre eles é justamente a questão do domínio. De maneira análoga a Deus, o ser humano possui domínio sobre as coisas criadas. Mas o que faz alguém ter a capacidade de dominar sobre algo? Como esse domínio é exercido?

As Escrituras expandem o conceito de imagem e semelhança ao longo de suas páginas para além de Gênesis 1. Pode-se notar que Deus dá ao ser humano diversas características distintivas:

  1. O ser humano na Escritura é o único que tem a capacidade linguística. Ele escreve, fala, discursa, conversa e desenvolve idiomas.
  2. Deus não se revela para qualquer outra criatura, apenas ao ser humano.
  3. Somente o ser humano tem o privilégio de receber os dons do Espírito Santo.
  4. Deus dotou o ser humano de capacidade criativa para artes, música, poesia, arquitetura e tudo o mais. Entre os exemplos, pode-se citar as ordens de Deus para a confecção dos objetos no tabernáculo, a construção do Templo de Salomão e as canções registradas nos Salmos.
  5. Deus deu ao ser humano inteligência em diversas áreas. Pode-se notar em Salomão inteligência para governar, para escrever e para estudar a natureza.
  6. O ser humano possui noções éticas e morais. É notável ao longo das Escrituras o forte senso de justiça dos profetas e a consciência do que é certo e errado.
 

Na Bíblia, nenhum desses itens apresentados anteriormente é outorgado para nenhum outro animal, somente para o homem. É precisamente por causa desses atributos que o ser humano é chamado para governar sobre as coisas criadas. Todos esses atributos também são encontrados em Deus, e Ele os utiliza para exercer sua soberania sobre todas as coisas. Sendo assim, conclui-se que aquele que tem a capacidade de governar é justamente o que possui todos esses atributos, e tanto Deus quanto os seres humanos utilizam esses atributos para exercer o seu domínio.

Refletindo a imagem de Deus nos algoritmos

Para longe das especulações da ficção científica, como pode-se pensar na imago Dei no contexto da Inteligência Artificial? A direção seguida neste ensaio não será especular se os robôs ou qualquer consciência digital serão portadores da imagem de Deus, e sim como o ser humano reflete a imago Dei ao desenvolver uma Inteligência Artificial. A imagem divina pode ser refletida no ser humano à medida que este cria sistemas que possuam características análogas àquelas que Deus colocou na criação e na humanidade. A partir dessa linha de raciocínio, pode-se dividir as maneiras como o homem reflete a imago Dei na IA nas seguintes frentes: Autopoiese da Criação, Inspiração Natural, Arte e Linguagem.

A imagem divina pode ser refletida no ser humano à medida que este cria sistemas que possuam características análogas àquelas que Deus colocou na criação e na humanidade.

Autopoiese da Criação: assim como Deus criou uma natureza que se autocria e autorregula, o ser humano também criou sistemas com os mesmos princípios. Sendo assim, o ser humano reflete a inteligência do Criador ao criar modelos de IA que também podem se autocriar, se reproduzir e se desenvolver. Na Teologia da Autopoiese da Criação, a natureza não está isenta do seu Criador, mas Deus participa ativamente de todos os processos, estimulando alguns deles, dando suporte às suas dinâmicas e direcionando certos eventos para atingir resultados desejados. Da mesma maneira, nenhuma IA evolutiva possui total autonomia em si, o que significa que o desenvolvedor precisa estar lá guiando, ajustando os parâmetros e regulando o seu funcionamento para atingir o resultado desejado. Implementando a Autopoiese da Criação em suas invenções, o ser humano glorifica a Deus ao usar o dom da inteligência para refletir as mesmas metodologias que Deus utilizou para organizar a sua criação.

Inspiração Natural: como foi visto neste ensaio anteriormente, a razão pela qual a IA tem apresentado resultados impressionantes tem suas raízes na observação sobre como a natureza funciona. Observando a natureza, o ser humano então incorpora nos algoritmos a engenharia divina. O homem então “espelha” a imago Dei em seus algoritmos quando ele mapeia as dinâmicas de funcionamento da natureza e as incorpora numa espécie de arquitetura algorítmica. Aqui, o ser humano se coloca no lugar de “vice” criador (não exatamente tomando o lugar de Deus), expandindo o chamado à observação e ao estudo da natureza. O ser humano glorifica a Deus replicando os elementos da natureza em suas criações. Sendo assim, a imagem de Deus no homem fica evidente quando as obras divinas são replicadas nas obras humanas.

Arte: a capacidade humana de abstrair a natureza, suas emoções e memórias em forma de arte também refletem atributos do Criador. No texto de Gênesis 1, a Criação é descrita de maneira poética e artística, como se a natureza fosse uma grande obra de arte viva da parte de Deus. Em seu ato criativo, Deus cria o Cosmos como uma grande obra de arte que provém do seu amor e do seu deleite. Esse dom artístico de externar sentimentos em algo vivo é uma dádiva divina ao ser humano. Quando o homem cria algo que também é capaz de replicar elementos similares e, de uma certa maneira, criar uma arte (não no sentido estrito da palavra), ele também reflete a imago Dei em seus algoritmos. É uma expansão dos dons artísticos humanos. Isso também é exercer o papel como representantes divinos, uma vez que, assim como Deus dotou o homem com tais capacidades, este cria algo que também, ainda que remotamente, tenha tal capacidade. É como se a imagem de Deus não se limitasse apenas às características que são “senso comum”; Deus também compartilhou com o ser humano, ainda que remotamente, sua capacidade de criatio ex nihilo.

Linguagem: a linguagem certamente é uma das características mais marcantes que Deus colocou no ser humano. Com ela, o homem é capaz de estabelecer diálogos, criar relações, desenvolver ideias e elaborar raciocínios complexos. Tudo o que tem de mais complexo na humanidade vem exatamente da linguagem. Examinando um aspecto teológico, Deus se revela ao ser humano utilizando uma linguagem, estabelece uma relação com o homem por meio de uma linguagem, e este escreve o que foi divinamente revelado em forma de linguagem. Uma das proezas da IA são os chamados modelos de linguagem, onde eles mapeiam matematicamente uma ou várias línguas, ou até mesmo linguagens de programação, e esses modelos são hábeis o suficiente para desenvolver raciocínios com uma certa complexidade. Assim como Deus compartilhou um pouco de sua capacidade linguística com o ser humano, o homem também ensina as máquinas a terem um pouco de capacidade linguística. Fica evidente que Deus não somente deu ao homem capacidades linguísticas, mas também deu capacidade de criar coisas que tenham habilidades linguísticas. Isto é, Ele dá ao homem inteligência para desenvolver raciocínios complexos, mas também dá inteligência para que este desenvolva coisas que sejam capazes de desenvolver raciocínios complexos, semelhante ao que Ele faz.

A relação do homem com a IA: estabelecendo os limites

Relembrando um pouco da seção Imago Dei: Deus e o homem, vimos que, quando as Escrituras dizem que o ser humano foi feito à imagem de Deus, significa que o homem tem domínio sobre alguns segmentos do cosmos (ou da criação), e que esse domínio é exercido pelas diversas características que Deus deu a homem, características estas que são semelhantes às que Deus tem. É claro que isso não significa que o homem tem domínio completo sobre a criação, como se Deus ficasse de fora, mas sim que Deus deu ao homem a capacidade de gerenciar segmentos da criação. Sendo assim, como deve ser a relação do homem com a Inteligência Artificial? A relação aqui não tem a ver com um relacionamento pessoal, como se a IA tivesse tal capacidade, mas como o ser humano deve dominar sobre essa tecnologia. Fazendo aqui uma analogia da responsabilidade que Deus deu ao homem de gerenciar partes de sua criação, é possível pensar que a IA deve ser utilizada pelo ser humano da mesma maneira: ela deve ter certo nível de autonomia, mas jamais deve tomar o lugar do homem nessa relação. Em outras palavras, assim como Deus deu ao homem características autônomas e livres, mas continua sendo o Rei Soberano, o ser humano também deve seguir nessa mesma direção em relação à Inteligência Artificial. Essa tecnologia pode agir como serva do ser humano, da mesma maneira que os seres humanos são servos de Deus e não tem autonomia completa sobre todas as coisas. A IA pode ser colocada para ter um certo domínio sobre segmentos do dia a dia da humanidade, mas jamais deverá substituir o ser humano em todos os segmentos.

Em outras palavras, assim como Deus deu ao homem características autônomas e livres, mas continua sendo o Rei Soberano, o ser humano também deve seguir nessa mesma direção em relação à Inteligência Artificial.

A árvore do conhecimento do bem e do mal

Voltando ao Gênesis, desta vez no capítulo 3, vemos que uma das características que Deus deu à humanidade, o tal do livre arbítrio, é utilizado com falta de responsabilidade quando Eva aceita o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, oferecido pela Serpente. Aqui, descumpriu-se a ordem divina de dominar sobre as espécies quando Eva se deixa dominar pela Serpente, levando ao famoso episódio da Queda. Mas o que pode vir a ser o episódio da Queda no contexto da Inteligência Artificial? No texto da Queda, percebe-se que uma decisão foi tomada na direção contrária daquilo que Deus havia ordenado. Da mesma maneira, existem diversas possibilidades com a Inteligência Artificial, boas e más. Ela pode ser usada para diagnósticos médicos precisos, mas também pode ser usada para geração de fake news. Pode ser usada para ajudar os artistas a criarem elementos de suas artes, mas também pode ser utilizada, por exemplo, para geração de pornografia por deepfake. São possibilidades infinitas, muitas delas até assustadoras. Cabe agora ao ser humano aprender a lidar com tais possibilidades e regular a tecnologia para que os usos escusos dela sejam mínimos, e tal regulação deve vir para que a humanidade como um todo domine sobre a tecnologia, e não que seja dominada por ela. Quando o domínio é invertido, como vimos em Gênesis 3, os resultados são catastróficos. Se a ordem divina para dominar não for cumprida nesse caso, a humanidade descobrirá que está nua e indefesa.

 

Referências

Agostinho, S. Comentário ao Gênesis. [S.l.]: Paulus, v. 21, 2014.

Bhatia, J. S. et al. Evolution Gym: A Large-Scale Benchmark for Evolving Soft Robots. Conference on Neural Information Processing Systems. [S.l.]: [s.n.]. 2021.

Bhatt, S. Reinforcement Learning 101. Towards Data Science. 2018. Clique aqui para acessar. Acesso em: 12 nov. 2023.

Gregersen, N. H. The Idea of Creation and the Theory of Autopoietic Processes. Journal of Religion and Science, 1998. 333-367.

Grudem, W. Manual de Teologia Sistemática: Uma introdução aos princípios da fé cristã. 1. ed. [S.l.]: Vida, 2001.

Hasani, H. et al. Closed-form continuous-time neural networks. Nature Machine Intelligence, 2022. 992-1003.

Katoch, S.; Chauhan, S. S.; Kumar, V. A review on genetic algorithm: past, present, and future. Multimedia Tools and Applications, 2020. 8091-8126.

Maturana, H.; varela, F. Autopoiesis and Cognition: The Realization of Living. 2. ed. Londres: D. Reidel Publishing Company, v. 42, 1980.

Mcculloch, W.; Pitts, W. A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity. Bulletin of Mathematical Biophysics, 1943. 115-133.

Pacheco, A. O algoritmo genético – GA. Computação Inteligente. 2017. Clique aqui para acessar. Acesso em: 12 nov. 2023.

Walton, J. H. Genesis 1 as Ancient Cosmology. Winona Lake, Indiana: Pennsylvania State University Press, 2011.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

* Ensaio classificado em 3º lugar na 3ª chamada de Ensaios do Radar ABC².

1. Para os mais técnicos, checar: Hasani et al, 2022, p. 992-1003.

2. McCulloch e Pitts, 1943.

3. Katoch et al, 2020, p. 8091-8126.

4. Pacheco, 2017.

5. Katoch et al, 2020, p. 8091-8126.

6. Bhatt, 2018.

7. Ibidem.               

8. Bhatia et al, 2021.

9. Maturana e Varela, 1980, p. 17.

10. Ibidem, p. 73.

11. Gregersen, 1998, p. 333-367.

12. Ibidem.     

13. Agostinho, 2014, p. 48-49.

14. Walton, 2011, p. 176-178.

15. Grudem, 2001, p. 203-204.

Outros ENSAIOS [nº 3]

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