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ENSAIO

Ler bem é uma arte (parte 1)

Os bens epistêmicos que adquirimos com a leitura

Marcelo Cabral|

09/02/2024

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Marcelo Cabral

Doutorando em filosofia pela Universidade Livre de Amsterdam e pela UNICAMP, estuda comunidades epistêmicas e sua relação com virtudes e vícios intelectuais. Possui mestrado em estudos teológicos pelo Calvin Theological Seminary. Possui graduação em filosofia e economia pela UNICAMP.

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Como citar

Cabral, Marcelo. Ler bem é uma arte (parte 1): os bens epistêmicos que adquirimos com a leitura. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Introdução

Abro uma página aleatória do livro Se um viajante em uma noite de inverno, do grande escritor italiano Ítalo Calvino, e leio: “É neste aspecto que o abraço e a leitura mais se assemelham: o fato de que abrem em seu interior tempos e espaços diferentes do tempo e do espaço mensuráveis”.¹

Ao ler esse texto, podemos rapidamente adquirir vários itens de conhecimento:

– de que a primeira palavra dessa frase é “É”;

– de que essa frase contém exatamente 30 palavras;

– de que a palavra “tempo” é utilizada;

– de que os termos “abraço” e “leitura” são comparados.

Essa lista poderia continuar indefinidamente. Duas conclusões se apresentam: primeiro, de que podemos adquirir conhecimento através da leitura; e, em segundo lugar, de que os itens de conhecimento listados – talvez com a exclusão do último – são todos triviais, não interessantes (para não dizer, na maioria dos casos, completamente inúteis).

Mas existem muitas coisas que podemos aprender por meio da leitura que não são nada óbvias. Mais pujantemente, argumentarei neste artigo que existem muitas coisas importantes que só podemos conhecer através da leitura de textos: ler é uma fonte sui generis de conhecimento (voltaremos a isso adiante). E isso é noticiado pela impressão um tanto ordinária que muitos têm ao ler textos, dos mais variados tipos, exatamente pela razão de extrair deles entendimentos importantes, complexos e valiosos que só podem ser adquiridos pela leitura.

Depois de ter escrito uma coluna sobre os motivos para ler grandes livros, começo aqui uma série de dois artigos. Este, sobre os benefícios epistêmicos da leitura e, no seguinte, sobre o que significa ser um leitor virtuoso, no qual apresentarei uma caracterização da virtude intelectual de ler de modo excelente.

Antes, contudo, um proviso é necessário. Embora algumas das coisas que direi sobre a epistemologia da leitura valha para qualquer tipo de texto – manuais de instrução, boletins, artigos de blog, posts em redes sociais, até artigos científicos, etc. –, concentrarei minha atenção em dois tipos de texto: obras de literatura (incluindo romances e poemas) e textos que são objeto de investigação das disciplinas de humanidades, amplamente concebidas. Esses textos, provavelmente mais do que a maioria de escritos de outros gêneros literários e de outros campos do saber, são carregados de vários níveis de significado, e, exatamente por isso, são os que apresentam mais dificuldades para o leitor – mas também as maiores recompensas.

Alguém poderia se incomodar com o porquê de eu não incluir no meu foco textos das ciências naturais, como artigos científicos, que são, muitas vezes, dificílimos de serem lidos. Eis o motivo: a dificuldade na leitura desse tipo de texto não é algo intrínseco ao texto, de múltiplas camadas de significado ou da complexa relação entre leitura e interpretação. Na grande maioria das vezes, textos científicos são muito simples em sua estrutura, possuem uma linguagem direta e sem floreios, evitam figuras de linguagem e almejam clareza e concisão. A sua dificuldade deriva do fato de que eles requerem um alto nível prévio de conhecimento de fundo das disciplinas das quais tratam. Um artigo acadêmico sobre, digamos, alguma questão envolvendo achados do telescópio James Webb e sua relação com o Modelo Cosmológico Padrão requer, para ser lido e entendido, vários conhecimentos prévios de física teórica, do funcionamento de telescópios modernos e das bases evidenciais de teorias sobre origem cósmica. Alguém que possua tais conhecimentos não precisará se envolver em uma atividade interpretativa muito complexa; bastará seguir o argumento, a apresentação dos dados e conclusões. (Reconheço que textos científicos possuem questões próprias de interpretação, mas deixarei esse tópico para um outro momento).

Com esse proviso posto, procederei do seguinte modo. Começarei explicando alguns conceitos básicos que são importantes para o tópico, especialmente a diferença entre conhecimento e entendimento, e a relação da interpretação de textos com a busca da verdade. Depois apresentarei, de modo confessadamente esquemático, a relação entre conhecimento e leitura. Em seguida, focarei o resto do artigo no tema central: a relação entre entendimento e leitura, e, mais especificamente, na tese de que o grande objetivo epistêmico da prática de ler é entender o texto e seus vários significados.

Aplainando o terreno

Leituras epistêmicas versus leituras não-epistêmicas

Existem leituras de muitos tipos, assim como existem diversos motivos para ler. Pessoas leem para se divertir, para distração, para apreciação estética e talvez para atingir muitos outros propósitos – e, algumas pessoas, talvez, leiam sem razão nenhuma. Mas creio ser inquestionável que muitas vezes lemos para nos informar, para aprender, para adquirir conhecimento – lemos com objetivos epistêmicos.

Quando lemos uma bula de remédio, queremos nos informar sobre o remédio: seus possíveis efeitos colaterais, suas contraindicações etc. Quando lemos Da doutrina cristã, de Agostinho de Hipona, queremos aprender o que Agostinho pensava sobre interpretação de textos, sobre o papel do amor no conhecimento e dos critérios prioritários para boa interpretação das Escrituras. Quando alguém lê a Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant, tal pessoa intenciona conhecer, por exemplo, a sua dedução transcendental ou o que ele quer dizer com “conceitos sintéticos a priori”. Em outras palavras, muitas vezes lemos para adquirir ou conquistar bens epistêmicos, coisas como o conhecimento e o entendimento. Isso pressupõe que textos são, muitas vezes, portadores de méritos epistêmicos. Serão esses o meu foco.

Benefícios epistêmicos e a verdade

Como veremos na próxima seção, conhecimento é um atributo factivo, isto é, ele implica em verdade. Portanto, se dizemos que lemos para adquirir conhecimento, nos comprometemos com a conclusão de que lemos para aprender certas verdades.² Isso pressupõe, é claro, que textos sejam portadores de verdades. Mas aí enfrentamos problemas, pois parece que é frequentemente – e especialmente no tipo de texto que estou particularmente interessado – contencioso defender qual é a verdade de um determinado texto. Ademais, muitos textos permitem, ou até evocam, múltiplas interpretações, algumas complementares, outras incomensuráveis, e ainda outras contraditórias entre si. Assim, muitos concluem que textos não possuem verdades, que não existem interpretações melhores e interpretações piores, e que nenhum entendimento de um texto é superior a outro. Nietzsche, por exemplo, é frequentemente referenciado como defensor dessa posição, argumentando que, quando emergem conflitos de interpretação, não existe nenhum meio epistemicamente robusto de adjudicar qual a melhor entre eles.

Muita tinta já foi gasta sobre esse assunto, e não é meu papel aqui me alongar muito sobre isso. Mas duas coisas precisam ser colocadas. Em primeiro lugar, é bastante evidente que textos, sendo entidades complexas, permitem diversas interpretações e que, muitas vezes, não é simples julgar as melhores das piores; aliado a isso, é possível que novas interpretações surjam, contendo novas propostas dos significados de um texto e, assim, não temos por que supor que alguma interpretação vigente seja a “verdade final sobre o texto”. Em segundo lugar, é também bastante razoável supor que a verdade – e, portanto, critérios epistemológicos – seja um horizonte natural para todo leitor. Retomando os exemplos utilizados na seção anterior, quando alguém lê uma bula de remédio, busca-se a verdade sobre os efeitos colaterais ou as contraindicações, e não meras opiniões ou algo como interpretações concorrentes. Embora textos clássicos, como os de Agostinho, possuam várias interpretações, algumas dessas são consideradas melhores do que outras. Considere o seguinte exemplo, oferecido por René van Woudenberg:

João dá uma palestra em uma conferência na qual ele diz: “tenho lido Santo Agostinho recentemente e li sua defesa do compatibilismo. É de alto nível!” Eleonore, uma acadêmica formidável em Agostinho, se levanta e questiona: “você poderia me dizer onde, nas obras de Agostinho, você leu isso?” João começa respondendo: “Pois bem, é claro que Agostinho não usa a palavra compatibilismo, mas o que atuais defensores dessa posição nomeiam como tal é a posição de Agostinho”. Eleonore repete: “Mas onde... você lê tal defesa do compatibilismo?” João responde que ele está fazendo referência a uma passagem em De libero arbitrio. Eleonore replica dizendo que essa passagem não é, de modo algum, uma defesa do compatibilismo, e que João entendeu errado Santo Agostinho, que ele não leu apropriadamente. Suponha que eles recorram juntos ao texto, lendo-o cuidadosamente, e Eleonore convença João de seu erro em atribuir o compatibilismo a Agostinho (ele é, na realidade, um libertário).³

O caso é o mesmo com Kant, com outras obras de filosofia e com poemas e literatura. Embora haja múltiplas camadas e diversos significados possíveis, algumas interpretações são simplesmente melhores do que outras, e, como veremos, isso significa que elas possuem mais méritos epistêmicos.

Se alguém ler O encontro marcado, de Fernando Sabino, e disser que o livro é sobre “o porquê ninguém deve se casar”, é seguro dizer que essa é uma interpretação errada, ou muito ruim, do livro; assim como se alguém afirmar que o significado central de Anna Karienina, de Leon Tolstoi, é que nenhum tipo de amor vale a pena, seria também uma interpretação muito ruim da obra. Os critérios que definem boas interpretações são variantes, é claro, para cada gênero literário e para cada comunidade epistêmica. Mas isso não anula a existência de tais critérios.

Embora haja múltiplas camadas e diversos significados possíveis, algumas interpretações são simplesmente melhores do que outras, e, como veremos, isso significa que elas possuem mais méritos epistêmicos.

Conhecimento e entendimento

Meu objetivo neste artigo é articular uma visão robusta, defendendo a tese de que um dos objetivos centrais da leitura é epistêmico, isto é, adquirir conhecimento e entendimento. Mas o que é, afinal de contas, conhecimento, e o que é entendimento? Qual a relação entre ambos?

Essas são questões fundamentais da disciplina de epistemologia, e pretendo aqui esboçar apenas alguns contornos essenciais desses conceitos, que nos serão úteis para entender sua relação com a leitura.

Conhecimento é uma relação particular entre um sujeito (o conhecedor) e um objeto: é uma relação na qual o sujeito tem uma realização ou conquista cognitiva resultando em um estado mental que, verdadeiramente, retrata algum estado de coisas ou uma parcela da realidade. Na tradição da epistemologia analítica, é comum ouvirmos falar em “análise tradicional do conhecimento”, que define conhecimento como uma crença verdadeira justificada. Assim, sendo S um sujeito qualquer e p uma proposição qualquer:

S sabe que p se, e somente se:

            S crê que p

            p é verdadeiro

            S está justificado em crer que p.

Há um grande debate sobre os limites e problemas da definição tradicional de conhecimento. De qualquer modo, existe um amplo consenso de que ela é, ao menos, uma boa aproximação, ou um bom ponto de partida, para entendermos esse estado cognitivo tão valioso e tão almejado. Fica caracterizado, então, em primeiro lugar, que o conhecimento é a propriedade de um sujeito, ou seja, é fundado em uma crença de um sujeito em uma certa proposição. Assim, textos e livros não possuem, estritamente falando, conhecimento – são pessoas, ou agentes, que o podem possuir. Textos possuem proposições, ideias e informações sobre as quais leitores formam crenças e, quando bem-sucedidos, adquirem conhecimento.

Em segundo lugar, como já havia destacado, conhecimento é factivo, isto é, implica verdade. Isso significa que não podemos saber mentiras nem falsidades; podemos, é claro, crer em tais coisas, e crer até com muita confiança. Mas não saber. Por fim, o conhecimento é diferente de uma mera crença verdadeira porque ele tem algo que o fundamenta, que lhe fornece estabilidade e uma credencial robusta: é uma crença justificada. Há um amplo debate sobre o que esse termo significa, mas, para nossos propósitos, podemos pensar que conhecimentos que adquirimos lendo textos são baseados em boas razões e, muitas vezes, em evidências (voltaremos a esse tópico na próxima seção).

O entendimento, por sua vez, é geralmente referido como uma realização intelectual ainda mais valiosa do que o conhecimento – ele normalmente incorpora e conecta vários itens de conhecimento, formando uma espécie de modelo, ou imagem, de uma parcela da realidade. Enquanto o conhecimento é focado em proposições, o entendimento tem como alvo um amplo espectro de objetos: eventos, fenômenos, tópicos, teorias, ações, pessoas e textos. Ademais, o entendimento requer um tipo de insight em como várias proposições se relacionam – o entendimento envolve capturar como as coisas se conectam. Como diz Wayne Riggs, “entender algumas coisas requer uma profunda apreciação, ou compreensão, ou consciência de como suas partes interagem e se conectam, qual papel uma parte desempenha na outra ou no contexto da outra, e o papel que ela desempenha no amplo esquema das coisas”.⁴

Quando tratamos de ler e interpretar textos, o bem epistêmico que mais buscamos é o entendimento. Afinal de contas, não queremos apenas conhecimentos isolados de proposições ou informações, mas queremos entender profundamente o texto, as intenções do autor, suas conexões, como uma parte ou trecho se conecta com as demais, e qual é o sentido fundamental que o texto transmite ou pode comunicar. Antes de investigarmos isso mais detalhadamente, nos voltemos para alguns comentários sobre o conhecimento que podemos adquirir por meio da leitura.

Quando tratamos de ler e interpretar textos, o bem epistêmico que mais buscamos é o entendimento. Afinal de contas, não queremos apenas conhecimentos isolados de proposições ou informações, mas queremos entender profundamente o texto, as intenções do autor, suas conexões, como uma parte ou trecho se conecta com as demais, e qual é o sentido fundamental que o texto transmite ou pode comunicar.

Conhecimento por meio da leitura

Quando lemos um texto, formamos, quase automaticamente, uma série de crenças, como de que tal sentença é uma declaração, de que outra é uma pergunta, de que a letra H está em uma palavra, que tal sentença significa tal e tal coisa, que o personagem principal, dado o fluxo narrativo, tem algum trauma ainda não explicado, que essa passagem aqui é muito bem escrita etc. Algumas dessas crenças são sobre fatos do próprio texto (de suas palavras, composição, etc.); algumas são crenças sobre o mundo, real ou fictício, retratado no texto; ainda, outras crenças são sobre as intenções, pressuposições e crenças do autor da obra.

De acordo com a definição de conhecimento oferecida na seção anterior, podemos estabelecer que S sabe que p por meio da leitura quando (i) S forma a crença que p como um resultado da leitura; (ii) p é verdade; (iii) a crença de S em p é justificada com base naquilo que S leu (mais algum conhecimento de fundo).

Outra questão importante aqui é se os conhecimentos que adquirimos através da leitura não podem ser obtidos por outros meios, como a percepção e o testemunho (quando alguém nos conta algo). É claro que muitas coisas podem ser obtidas por fontes diversas. Mas a leitura oferece um meio único (o texto) e, com ele, uma tipo de engajamento estendido e detalhado sobre as várias camadas de sentido, conexões, posições e teses do autor, se tais posições e teses são ou não bem substanciadas, e assim por diante. Ler é como se envolver em uma conversa, mas uma na qual podemos focar e desfocar, ir adiante e voltar, avaliar um trecho e ignorar outro, e apreciar os méritos epistêmicos de uma ampla teoria, perspectiva, proposta, narrativa ou imagem da realidade.

Por que é difícil entender (alguns) textos?

Como apontei, mais do que conhecer palavras, proposições e ideias, queremos entender o que lemos. O entendimento, diferentemente do conhecimento, vem em graus: podemos entender nada, pouco, razoavelmente, e um especialista em um texto ou em um autor pode chegar a um alto entendimento, pode ser um expert no tema ou assunto ou autor. Essa gradação explicita algo que todo leitor experimenta – dificuldades em ler, interpretar e entender. Textos variam imensamente em seu grau de dificuldade, e não só no grau, mas também nas raízes da dificuldade.

Uma primeira fonte de dificuldade advém do fato de que o leitor é, em algum nível, ignorante. Podemos não saber o significado de palavras ou de expressões; podemos ser ignorantes de certos padrões de escrita, de certas figuras de linguagem, de certos usos particulares da linguagem de um autor ou tradição intelectual; podemos ser ignorantes de certos conhecimentos de fundo necessários para entender determinados aspectos do texto; podemos ser ignorantes de lugares, ideias ou fatos aos quais o texto faz referência e assume que o leitor esteja familiarizado. Podemos ser ignorantes ainda em muitas outras coisas, e isso se torna um obstáculo natural para o entendimento. É preciso que o leitor, para entender, supere esses obstáculos e busque superar sua ignorância, seja consultando um dicionário, pesquisando um tema, seja lendo outras coisas que esclareçam e o ensinem o que lhe falta para entender.

Vale ainda apontar que a dificuldade da ignorância pode ter um sentido pejorativo e um sentido ordinário. O sentido pejorativo é que, às vezes, um leitor se depara com ignorâncias não justificadas, pois lhe falta algum conhecimento que ele deveria possuir. Mas, por outro lado, o fato é que todos nós somos ignorantes em uma série de coisas, e isso é meramente uma constatação da nossa limitação cognitiva e do número quase infinito de coisas que há para se apreender. Ler é, portanto, uma oportunidade para que nossa ignorância seja, em alguma medida, diminuída. Wilhelm Dilthey sinalizou algo semelhante quando disse que a interpretação é impossível quando o texto é completamente alheio ao leitor, que é supérflua quando não há nada estranho ou obscuro, e que a interpretação é requerida quando o texto se situa entre esses dois extremos.

A segunda raiz de dificuldade advém da opacidade do próprio texto, isto é, o fato de que muitos textos não são claros ou translúcidos o suficiente. As fontes da opacidade são também múltiplas: o escritor pode ser ruim, escolher palavras ou expressões inadequadas, ser exageradamente petulante, confuso, obscuro. Mas a opacidade pode ser fruto do próprio nível de complexidade do texto, do nível de elaboração requerido para dar conta do objeto da escrita ou pela quantidade de temas e informações cruzadas para que o autor realize o seu ato comunicativo.

Uma terceira fonte de dificuldades, parcialmente conectada com as duas primeiras, é aquilo que Paul Ricouer chama de distanciamento. Ao ler um texto, há uma distância inexorável entre o leitor (1) e o autor, (2) a situação do discurso e (3) a audiência original.⁵ Tais distanciamentos são mais salientes no caso de textos antigos, ou ao menos escritos em contextos sociais e culturais distantes do leitor. Ao ler textos desse caráter, tal distanciamento precisará ser estreitado para que o leitor possa chegar a algum nível de entendimento.

Por fim, textos (especialmente de literatura e daqueles dentro do guarda-chuva das humanidades) são portadores de múltiplos significados. Entender um texto é, fundamentalmente, interpretar e compreender os sentidos do texto. Woudenberg lista sete diferentes tipos de significado que os textos podem possuir: significado de sentença, significado de palavra, significado do autor, significado indicativo, significado de efeito, significado funcional e significado de valor.

Assim, dependendo do grau de interpretação e do nível de entendimento buscado, o leitor deverá entender o significado de sentenças e palavras, as intenções do autor com o texto (ou com alguma de suas partes), o efeito que tal texto teve em certos contextos, a função do texto em uma certa era, círculo de leitores, ou até em toda uma cultura, entre outros significados.

Entendendo um texto

Nessa última seção, esboçarei os contornos do que significa entender um texto. Como descrevi na seção 2, entendimento se relaciona a entender as várias conexões que as partes possuem entre si, com o todo e com outros elementos relevantes. Para uma descrição um pouco mais precisa, apontarei nesta seção (1) o que buscamos entender ao ler um texto e as (2) três características da interpretação de um texto.

Bens epistêmicos da leitura: o que queremos entender?

Woudenberg defende que, ao lermos um texto, há três tipos de coisas que podemos buscar entender: o próprio texto – do que esse texto trata?; entender o autor – o que esse autor pensa ou intenciona?; ou entender algum assunto do qual o texto trata – sobre o que esse texto fala?

Entender o texto é entender seu significado (ou significados), e em breve elaborarei mais esse ponto. Mas também, ao ler um certo texto, podemos entender mais sobre o próprio autor, suas preferências, seu estilo, suas intenções, pressuposições e até mesmo algo de sua personalidade. Esse tipo de entendimento é provavelmente estendido quando lemos vários textos de um mesmo autor ou, idealmente, lemos toda a sua obra. Por fim, muitos textos relatam, descrevem e detalham os mais variados assuntos, e podemos, ao lê-los, entender tais assuntos. Isso é evidente em livros-texto de disciplinas básicas, mas não só; ao ler, por exemplo, o romance histórico-ficcional Coluna de fogo, de Ken Follet, eu aprendo uma série de coisas sobre a França e a Inglaterra do século 16, as tensões em torno da Reforma Protestante e as dinâmicas de poder que rondavam as preferências religiosas das elites.

Mas voltemos ao entendimento do texto em si. Como Woudenberg aponta, entender um texto é compreender (e, potencialmente, desenvolver) seus significados – e, como vimos, há vários tipos de significado possíveis que um texto pode possuir. Mas gostaria de apontar três tipos fundamentais de entendimento de texto que podemos adquirir.

O primeiro é entender o telos epistêmico do texto, que significa entender os objetivos do autor, suas intenções comunicativas e a possibilidade de compreender o ponto central que o texto pretende comunicar. Em obras literárias, isso significa conectar tal telos ou objetivo às perspectivas que o autor possui e a como o telos e as perspectivas se materializam em palavras, estruturas literárias, figuras de linguagem, escolhas narrativas, descrição de personagens, e assim por diante. Em seu nível mais avançado, ler bem um texto resulta em um profundo entendimento de como o emprego das palavras e o estilo particular do autor, seus padrões únicos de linguagem e suas distinções literárias criativamente levam ou resultam em certas visões, imagens do mundo, descrições de pessoas, emoções e relacionamentos, ideias ou conceitos teóricos.

Em obras filosóficas ou teológicas, isso significa entender a estrutura argumentativa, o sistema e os conceitos empregados, clarificando-os e distinguindo-os, e também compreender o peso que cada um deles tem na tese ou no sistema apresentado no texto.

O segundo é desvelar as camadas do texto, em duas variantes. Na primeira, é entender motivações ou objetivos que o autor emprega em sua obra, mas de que ele mesmo não está plenamente consciente; autores são pessoas, movidos por desejos e objetivos muitas vezes não transparentes para eles mesmos; sendo assim, um bom entendimento de um texto pode resultar em descortinar tais motivações ou intenções. 

Enquanto a primeira variante se relaciona mais com as dinâmicas internas da biografia do autor e sua psique, a segunda aponta para o nível cultural. Entender um texto, nesse sentido, é entender a cosmovisão, a tradição intelectual, o milieu cultural e religioso, os valores e as dinâmicas sociais, e também os jogos de linguagem do mundo no qual o autor é um habitante. Tais fatores culturais e sociais não são explicitamente almejados ou intencionados no texto, mas, invariavelmente, fazem parte dele e o contornam. Assim, ler bem um texto é não apenas entender as intenções do autor, mas entender as coisas que informam o seu modo de habitar o mundo e sua cultura particular.

Entender um texto, nesse sentido, é entender a cosmovisão, a tradição intelectual, o milieu cultural e religioso, os valores e as dinâmicas sociais, e também os jogos de linguagem do mundo no qual o autor é um habitante.

O terceiro é aquilo que Woudenberg chama de leitura externalista de um texto. Isso significa capturar ou desvelar (i) novos significados que o texto (ii) tem o potencial de gerar (iii) por meio de teorias, estruturas conceituais ou perspectivas que o próprio autor não empregou ao escrever o texto. Quando um acadêmico versado em alguma das perspectivas psicanalíticas a emprega para interpretar um texto, ou quando um expert utiliza categorias marxistas para interpretar um livro, ou quando um especialista em René Girard usa as noções de desejo mimético para entender certos personagens, eles podem chegar a certos significados (i) novos (correlações, construções teóricas etc.) utilizando (iii) teorias bem estabelecidas, que são informativas e epistemicamente valiosas. Entretanto, tais empregos teóricos podem – e muitas vezes fazem – um tipo de violência epistêmica no texto, pois, em vez de iluminarem aspectos do texto ou desvelarem sentidos (ii) que são de fato potenciais no texto, eles projetam suas próprias teorias favoritas e deixam de ler o texto em suas particularidades e em seus méritos.

Assim, nosso entendimento de um texto comporta diversos níveis e camadas. O exemplo seguinte de Roberts & Wood retrata isso muito bem:

Pode-se dizer de uma pessoa que ela entende bem a teologia de Kierkegaard. Talvez isso signifique que, se você der a ela um parágrafo de Kierkegaard, ou mesmo uma única frase, ele não apenas entende as palavras e como elas se juntam sintaticamente; além disso, ele é capaz de tecer relações dessa passagem com diversas outras coisas que o filósofo disse ou poderia dizer. Ele talvez possa responder, do modo de Kierkegaard, questões que o próprio Kierkegaard não respondeu, porque ele sabe como pensar do modo de Kierkegaard. Novamente, entendimento é uma habilidade de enxergar ou fazer conexões. E, novamente, admite níveis. Podemos imaginar uma pessoa que pode fazer só um pouco disso, outra um pouco mais, até alguém que entende o pensamento de Kierkegaard tão bem ou melhor do que o próprio Kierkegaard: pessoas que poderiam surpreender Kierkegaard ao estender seu pensamento de maneiras que são autenticamente kierkegaardianas, mas que nunca ocorreram ao próprio filósofo.⁶

Três características da interpretação que resultam em entendimento de um texto

Como caracterizei anteriormente, entender um texto envolve interpretar apropriadamente seus vários significados. A boa interpretação (i) demonstra em vários níveis características que vão além daquilo que é diretamente dado no texto, (ii) procura fazer sentido do texto como um todo e (iii) não existe um algoritmo que possa ser mecanicamente seguido para realizar a interpretação.

O ponto (i) já foi contemplado na seção anterior: entender um texto envolve interpretar seus significados, incluindo as intenções autorais, o contexto psicológico e cultural da produção do texto e outros significados possíveis advindos da aplicação de estruturas teóricas diversas.

Em segundo lugar, uma boa interpretação (ii) implica compreender trechos específicos em sua relação com o texto todo. Isso envolve, é claro, possuir uma compreensão do ponto central do texto, de seu sumo, mensagem nuclear ou marca mais distintiva. É por isso que, quando alguém entende bem um texto, é capaz de resumi-lo e sumarizá-lo de modo a deixar claro sua mensagem ou tese principal, bem como suas características mais salientes. Não é coincidência, portanto, que a habilidade de resumir e resenhar textos seja tão valiosa na formação acadêmica.

Aliado a isso, a boa interpretação de um trecho qualquer do texto significa compreender o papel desempenhado pelo trecho (seja uma sentença, um parágrafo, uma seção, uma passagem etc.) no plano mais geral da obra. Em um texto de filosofia ou teologia, isso envolve entender o papel de cada seção e passo argumentativo para a sustentação das teses defendidas, se são epistemicamente bem-sucedidas ou não, se as evidências textuais são robustas, se as partes possuem coerência entre si e com a temática mais ampla da qual o texto trata.

Em textos de literatura, envolve uma apreciação de como as partes se conectam e contribuem para a evolução narrativa, para a construção nas imagens pretendidas, do desenrolar dos personagens ou temas retratados.

Por fim, interpretar bem um texto e entendê-lo (iii) não é o tipo de coisa que pode ser realizado mecanicamente por um algoritmo, como se o entendimento pudesse resultar de alguma fórmula que opera inputs informacionais e gera, automaticamente, “o” entendimento do texto. Embora existam normas e regras que guiam toda prática de leitura, tais regras não são aplicadas como em uma receita de bolo; elas são apropriadas e empregadas criativamente, dependendo sempre do juízo do leitor, sua capacidade de ajustar tais normas e regras às vicissitudes e particularidades textuais, de calibrar sua atenção para os elementos salientes projetados pelo próprio texto e por medir, entre os vários atributos relevantes, quais e em que medida devem pesar mais.

É por isso que as disciplinas de humanidades são unicamente valiosas: elas têm a capacidade de gerar conhecimento e entendimento de significados – incluindo, especialmente, aqueles advindos da interpretação de textos. As ciências naturais não podem gerar conhecimento de significados. Nenhuma pesquisa em física, experimento químico, evidência biológica, medição de ondas cerebrais podem dizer coisas como:

– O que significou a carta que o pai de Getúlio Vargas escreveu para ele.

– Os efeitos do livro O nome da rosa na cultura francesa.

– O significado do poema “Mãos Dadas”, de Carlos Drummond de Andrade.

– A mensagem central do livro Depois da virtude”, de Alistair MacIntyre, e como esse livro impactou o entendimento da ética nos anos após sua publicação.

É por isso que as disciplinas de humanidades são unicamente valiosas: elas têm a capacidade de gerar conhecimento e entendimento de significados – incluindo, especialmente, aqueles advindos da interpretação de textos. As ciências naturais não podem gerar conhecimento de significados.

Ler não é somente uma atividade comum, mas é uma das práticas humanas que nos permite a conquista de bens epistêmicos únicos e extremamente valiosos. Ler bem é, mais do que uma ciência, uma arte. Em um próximo artigo, investigarei o que significa ser um leitor virtuoso.

 

Referências

Calvino, Í. Se um viajante em uma noite de inverno. 2a. ed. Companhia das Letras, 2023.

Ricoeur, P. The Hermeneutical Function of Distanciation. Philosophy Today, v. 17, n. 2, p. 129–141, 1 maio 1973.

Riggs, W. D. Understanding “Virtue” and the Virtue of Understanding. Em: Depaul, M.; Zagzebski, L. (Eds.). Intellectual Virtue: Perspectives From Ethics and Epistemology. [s.l.] Oxford: Oxford University Press, 2003. p. 203–226.

Roberts, R. C.; Wood, W. J. Intellectual Virtues: An Essay in Regulative Epistemology. Oxford: Oxford University Press, 2007.

Woudenberg, R. Van. The Epistemology of Reading and Interpretation. Cambridge: Cambridge University Press, 2021.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Calvino, 2023, p. 168

2. Isso não significa que, ao lermos, por exemplo, um texto de Nietzsche, tomaremos por verdade o que ele ele diz no texto; mas, no mínimo, queremos extrair algo como “Nietzsche pensa (ou defende, argumenta etc) a, b, c a respeito do tema T, e, ao concluir isso, esperamos que seja verdade que Nietzsche pensa a, b, c.

3. Woudenberg, 2021, p. 114.

4. Riggs, 2003, p. 205.

5. Ricoeur, 1973, p 173.

6. Roberts and Wood, 2007, p. 45–46.

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