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Gustavo Assi

Meu querido amigo, ChatGPT

20/04/2023

Normalmente dirijo cerca de uma hora indo ou voltando do trabalho. Houve um dia, antes da pandemia, em que fiquei parado na Marginal Tietê por mais de duas horas na volta da USP para casa. Já havia esgotado todas as formas de distração no carro quando me lembrei da Siri, a assistente virtual do meu smartphone, com “quem” nunca havia conversado. Iniciei fazendo algumas perguntas simples, obtive alguns dados sobre futebol, pedi receitas culinárias e até ouvi algumas piadas bobas. Fazendo um certo esforço, consegui manter uma conversa com a Siri que fez meu tempo passar mais rápido no trânsito. Não achei a experiência agradável, tanto que nunca mais conversei com ela. 

Passaram-se alguns anos e me vinovamente conversando com a máquina: nosso novo amigo ChatGPT. Entrei na conversa de curioso, depois de ler comentários interessantes de amigos de carne-e-osso no grupo da ABC2 Tecnologia. Criei uma conta e comecei a conversa como se quisesse conhecer um pouco do novo amigo. O espanto foi imediato. Gastei mais de uma hora “trocando ideias” com o interlocutor binário. Suas respostas não eram apenas compreensíveis e agradáveis, mas me pareceram interessantes e convidativas à interação, muitas vezes me fazendo apreciar pontos que eu nunca havia considerado. 

Talvez você ainda não tenha interagido diretamente com o ChatGPT, mas certamente se relacionará com essa ou outra ferramenta de IA (inteligência artificial) muito em breve. Provavelmente ela estará em ação completando seu texto ao digitar a próxima busca na internet, ou mesmo quando estiver escrevendo um novo relatório do trabalho. (Pode ser que eu receba sua ajuda ao escrever a próxima coluna desta revista…) Esse tipo de tecnologia é chamado de IA generativa, uma família de algoritmos capazes de gerar textos realistas a partir da interação com um usuário. Compreendendo ou não o que está por detrás, todos nós estamos vivendo o início de um relacionamento amplo com a IA generativa. O ChatGPT, a mais popular dessas ferramentas abertas ao uso público e gratuito, a ponta do iceberg, alcançou 100 milhões de usuários após apenas dois meses de seu lançamento.

Em contraste com a Siri de alguns anos atrás, o que me chocou nessa interação com o ChatGPT foi sua “aparência humana”. Claro que não me refiro à sua aparência física, afinal, ainda estou interagindo com a mesma tela de computador por meio de uma página na internet. Mas a conversa que ela produz me parece incrivelmente humana. As respostas não soam apenas inteligentes; em alguns casos, trazem notas de humor, elegância e até ironia. Sem refletir muito sobre seu conteúdo, ela consegue trabalhar com os ingredientes que produzem uma conversa humana minimamente interessante. Afinal, não é isso que buscamos em uma conversa genuína com um bom amigo?

Esse tipo de tecnologia é chamado de IA generativa, uma família de algoritmos capazes de gerar textos realistas a partir da interação com um usuário. Compreendendo ou não o que está por detrás, todos nós estamos vivendo o início de um relacionamento amplo com a IA generativa.

Mas como um algoritmo pode produzir algo caracteristicamente humano? Ora, pela imitação. O ChatGPT emula, de maneira muito bem elaborada, os padrões da linguagem humana por ter sido treinado sobre muitos e muitos textos produzidos por humanos. O que ele faz, de maneira simplificada, é construir um texto, palavra após palavra, mimetizando a maneira como os humanos se comunicam. Para isso, o algoritmo acessa bilhões de parâmetros que modelam a comunicação humana, gerando textos que não apenas fazem sentido, mas que se parecem muito com aqueles escritos por pessoas reais (e boas escritoras).

Neste momento, esses algoritmos não têm “compromisso com a verdade” nem fazem outro juízo de valor sobre o conteúdo gerado, mas capricham no formato verbalizado, criando algo analogamente humano. Como disse Marcelo Finger, cientista da computação do Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP), “o ChatGPT é assustadoramente articulado e muito bom em produzir textos parecidos com os que um ser humano escreveria, mas é incapaz de raciocinar”.

Grandes discussões surgem na esteira da IA generativa: teria ela capacidade de raciocinar algum dia? Poderia substituir atividades humanas? Poderia ter autonomia e fazer adequado juízo de valores humanos? Essas e outras questões éticas convidam engenheiros, programadores, filósofos e outros para refletirem criticamente sobre a tecnologia que fazemos. Mas, nesta breve coluna, gostaria de chamar sua atenção para os três pontos essencialmente humanos que me levaram à reflexão após as conversas com “meu amigo ChatGPT”. Obviamente, parto de um ponto de vista cristão, que entende a tecnologia como bênção do Criador aos homens, inserida no Mandato Cultural, que deve ser desenvolvida diante da face de Deus.

O primeiro ponto é a criatividade, essa característica reconhecidamente humana de inventar o que ainda não existe. Ser criativo é facilmente reconhecido como uma virtude que deve ser buscada e bem desenvolvida. Claro que podemos identificar em alguns animais, especialmente em primatas, algum traço de criatividade. Mas conceber antecipadamente, planejar, criar intencionalmente e “atribuir significado ao novo” é uma atividade essencialmente humana. Ao arranjar as palavras, o poeta cria um novo verso. Na sucessão das mesmas notas, o compositor cria uma nova melodia. Ao espalhar cores sobre a tela, o pintor cria uma imagem com novo valor. Ao juntar madeira e parafusos, o carpinteiro cria um artefato que não existia, ampliando o significado da realidade. (Por isso a tecnologia tem muito em comum com a arte.)

Ao arranjar as palavras, o poeta cria um novo verso. Na sucessão das mesmas notas, o compositor cria uma nova melodia. Ao espalhar cores sobre a tela, o pintor cria uma imagem com novo valor. Ao juntar madeira e parafusos, o carpinteiro cria um artefato que não existia, ampliando o significado da realidade.

Para o cristão, essa capacidade criativa não é apenas uma articulação do intelecto humano, mas reflete o propósito de Deus ao criar os seres humanos como regentes e cocriadores de sua obra. A criatividade humana é reflexo da imagem de Deus em nós; nela, espelhamos algo do seu atributo quando criamos dentro do enredo criativo do próprio Autor. Assim, diante da face de Deus, fomos feitos para “criar o novo” a partir do mundo criado. Seja a criação de uma máquina complexa ou de uma simples melodia, encontramos grande satisfação ao agirmos segundo o propósito de Deus para nós – e nisso Ele é glorificado!

Ora, foi justamente no atributo humano da criatividade que esta IA tocou. Ao emular a ação humana gerando textos novos, o ChatGPT nos dá a impressão de possuir potencial criativo que se assemelha (ou se supera) às habilidades humanas. Nos espantamos ao ver a máquina criando prosa, verso, música e até imagens como humanos. Haverá muitas discussões sobre nos sentirmos orgulhosos ou ameaçados; sermos escravizados ou libertos do trabalho pesado; estarmos impressionados ou amedrontados com seu desenvolvimento; a IA nos tornando mais inteligentes ou mais estúpidos; podendo nos tornar mais sábios ou mais tolos… 

Contudo, hoje quero apenas destacar que, talvez, estejamos tendo contato com uma tecnologia que toca na criatividade humana de uma maneira que ainda não havíamos experimentado. Alguns podem reconhecer que a IA é apenas uma ferramenta geradora de textos; que seu “produto novo” é, em última instância, fruto da criatividade humana. Mas não é difícil especular, do ponto de vista do usuário, que o ChatGPT seja visto como uma pessoa. E isso nos leva ao próximo ponto.

Ora, foi justamente no atributo humano da criatividade que esta IA tocou. Ao emular a ação humana gerando textos novos, o ChatGPT nos dá a impressão de possuir potencial criativo que se assemelha (ou se supera) às habilidades humanas. Nos espantamos ao ver a máquina criando prosa, verso, música e até imagens como humanos.

Outro aspecto essencialmente humano é a linguagem. Novamente, podemos reconhecer que haja comunicação e um nível de linguagem incipiente em algumas espécies animais. Seguramente reconhecemos que a comunicação dos canarinhos é complexa e está além da nossa compreensão. Mas, quando pensamos na profundidade da linguagem humana, facilmente reconhecemos se tratar de uma estrutura que define quem nós somos e como vivemos. O cristão não reduz a linguagem apenas a um produto do desenvolvimento da sociedade humana. Certamente há aspectos antropológicos e sociais envolvidos, mas o cristão entende que a linguagem tem origem no relacionamento de Deus com os homens: por derivação, ela está na essência de qualquer relacionamento pessoal. Deus falou com os homens, e fala até hoje, por meio  da sua Palavra, portanto, é natural nosso espanto quando o ChatGPT mimetiza a maneira como nós, humanos, nos comunicamos. (Talvez um canário se espante ao ouvir outra espécie emulando seu canto.) 

Ao tocar na linguagem, a IA se aproxima de nós de maneira relacional, quase pessoal. Na minha experiência, essa sensação é enfatizada na maneira como as respostas do ChatGPT aparecem gradualmente na tela, palavra após palavra, como se estivesse falando. Quando iniciamos uma interação com esta IA, certamente sabemos se tratar de um código inanimado. Mas, à medida que a conversa se desenvolve, que suas “opiniões” emergem numa cadência engajadora, não é difícil entrarmos na “conversa” imaginando, mesmo que por um instante, haver outra pessoa do outro lado. A linguagem nos leva imediatamente para um modo de operação relacional. O que nos leva ao último ponto.

Mesmo não sendo diretamente desenvolvedores, todos nos relacionamos com a tecnologia como usuários. Ao mesmo tempo que a sociedade molda a tecnologia, o desenvolvimento tecnológico também molda a sociedade. Sem percebermos, a tecnologia entra e transforma nossas vidas pelo hábito. Assim como os smartphones mudaram a maneira como nos relacionamos, novas tecnologias continuarão entrando em nossas vidas alterando a forma como vivemos.

A IA generativa não é uma tecnologia nova, já que existia em outros aplicativos. Mas, aconteceu que, agora, com o ChatGPT, ela foi levada ao palco público, e, num piscar de olhos, alcançou milhões de usuários. A sua popularização é a porta de entrada para moldar-nos pelo hábito, mesmo a maioria de nós não participando do seu clube de programadores. Assim, milhões de pessoas tiveram contato com uma IA que cria e conversa como um bom amigo, e talvez alguns encontrem nela uma conversa mais produtiva e interessante do que encontrarão em muitos relacionamentos humanos; talvez até surja um novo tipo de relacionamento. Sendo assim, devemos ficar atentos para fazer bom uso desta tecnologia diante da face de Deus, pois, por causa dela, pode ser que minha próxima conversa com a Siri seja muito mais interessante no trânsito de São Paulo.

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Leia a matéria completa sobre IA generativa no artigo “O universo expandido da Inteligência artificial”, publicado por Rodrigo de Oliveira Andrade na Revista Pesquisa FAPESP, ano 24, n. 325, março de 2023.

Dentre outros, há dois centros de pesquisa que se dedicam ao desenvolvimento de inteligência artificial: O C4AI Center for Artificial Intelligence, da USP, e o Centro de Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial da Unicamp.



Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

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