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Gustavo Assi

O mundo é uma obra de arte

08/12/2023

Eu trabalho com mecânica dos fluidos. Muitos alunos de engenharia têm pesadelos com as aulas de MecFlu, porém guardo ótimas lembranças. Durante meu doutorado, realizei experimentos medindo campos de velocidades no escoamento de água ao redor de cilindros. Usava uma técnica experimental de velocimetria a laser. Um dia, depois de ter terminado uma sessão, decidi aplicar o laser de outra forma para tentar capturar imagens bonitas do escoamento no canal de água recirculante. O experimento deu tão certo que estendi a sessão em mais alguns dias apenas para produzir boas fotografias. Enchi um HD com fotos e vídeos. Usei algumas delas em materiais didáticos, e muitas ilustraram minhas apresentações. Entre centenas de imagens, havia algumas que achava, de fato, maravilhosas.

Esse sentimento é muito curioso e bastante comum entre cientistas: o maravilhamento. Não é raro ouvirmos depoimentos de cientistas “deslumbrados” com o estudo do mundo natural. Certa vez, li na internet uma afirmação muito interessante: “Arte e ciência se encontram no maravilhamento”. Ela vinha ilustrada com um diagrama contendo a palavra “maravilhamento” na interseção de dois círculos representando os domínios das artes e das ciências. A figurinha, singela em si mesma, comunicava algo bastante profundo. Não sei quem é o autor, mas essa afirmação me fez pensar e lembrar dos dias em que admirava as fotos no laboratório.

Vejo muita beleza no escoamento de fluidos. Há uma estética que me fascina ao observar estruturas verticais em movimento em um meio contínuo com infinitos graus de liberdade. Cada nerd com sua mania… Mas posso ficar horas observando uma pluma de fumaça que sobe serpenteando quando apagamos uma vela, ou as instabilidades de um fio de mel que escorre da colher, ou o delicado vórtice que sua colher deixou na espuma do café espresso… Essas são minhas manias. Talvez você não veja beleza nos fluidos, mas, certamente, há momentos em que você contempla o belo na natureza. Tal qual a beleza de uma flor se abrindo em cores, da duplicação de uma célula, da cauda de um cometa, da erosão de um cânion, da sequência dos sons numa melodia ou das formas e cores das nuvens num pôr-do-sol de inverno (olha a MecFlu aí de novo). Olhe para o mundo ao seu redor e fique maravilhado com sua beleza.

Saiba que essa sensação de deslumbramento é bastante comum entre os cientistas profissionais. Em um estudo publicado pela Theos em 2022, Nick Spencer relata que 97% dos físicos e biólogos entrevistados enxergam beleza em suas pesquisas.¹ A beleza se manifesta de maneiras diferentes para grupos diferentes de cientistas. Por exemplo, físicos tendem a reconhecer beleza na “simetria”, ao passo que  biólogos veem o belo na “complexidade” dos fenômenos. De novo, cada nerd com sua mania… Mas todos concordam que há algo perceptível como belo nos fenômenos estudados que está profundamente relacionado com os conceitos de “elegância”, “ordem oculta” ou “lógica interna”. Portanto, muitos cientistas reconhecem haver uma essência comum por detrás da ordem que rege o mundo natural e que pode ser identificada e reconhecida como bela. Aristóteles já dizia que “o belo é o esplendor da ordem”.

Portanto, muitos cientistas reconhecem haver uma essência comum por detrás da ordem que rege o mundo natural e que pode ser identificada e reconhecida como bela.

É interessante entender como os cientistas entrevistados nesse estudo descreveram sua percepção do belo por intermédio de termos como: empolgante, espantoso, inspirador, poderoso, maravilhoso, gratificante e interessante. Veja como todas essas “experiências” nos remetem a um convite para um relacionamento. O belo nos convida para um engajamento com o mundo natural, um relacionamento que deslumbra o observador e aponta para uma estrutura intencional e admirável. Mais interessante é saber que, além de reconhecer que há beleza nos fenômenos naturais como eles se manifestam, boa parte desses cientistas também vê beleza nas teorias científicas que construímos para sintetizar nosso entendimento. Ao aceitarmos o convite para nos engajar com o belo mundo natural, produzimos conhecimento que também reflete e propaga sua beleza.

O estudo da Theos avança para entender como o “reconhecimento da beleza” está associado à nossa “compreensão do verdadeiro” na investigação científica, mas hoje vamos parar por aqui. Basta destacar que, para muitos desses cientistas, encontrar esta “beleza oculta” lhes traz uma percepção de algo transcendente. Para eles, o belo aponta para algo que existe além do fenômeno.

Essa percepção não é estranha aos cristãos. Imagino Davi deslumbrado ao olhar para as estrelas quando compôs: “Os céus declaram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos“ (Salmo 19:1). Tanto nas Escrituras quanto nos pais da igreja, vemos essa ideia repercutida de várias formas. Basílio de Cesareia ressoava Davi dizendo que “o mundo é uma obra de arte, colocada diante de todos para contemplação, para que por meio dela seja conhecida a sabedoria daquele que a criou”. Para ele, a apreciação da beleza nas coisas visíveis nos permite “formar uma ideia de Deus, que é muito mais que belo.” Agostinho também entendia que seu amor pela beleza do mundo era derivado, ou um reflexo, do seu amor por Deus. “Amamos algo que não seja belo?” Ele tinha clara a relação entre beleza e ordem, concluindo que Deus é “o Ser a partir do qual todas as coisas se mantêm harmoniosas e ordenadas entre si”.

Tomás de Aquino também propagou o entendimento do Salmo de que “cada criatura manifesta Deus de alguma forma, mas a melhor manifestação de Deus é o universo lindamente ordenado, onde todas as criaturas funcionam em relação umas com as outras conforme Deus pretendia.” Para o cristão, não há dúvidas que o belo produz adoração e rende glórias ao Criador. Mais recentemente, dando ênfase à esperança do cristão, C. S. Lewis esclarece a nossa experiência do belo como um reflexo da beleza do reino de Deus restaurado. Se encontramos beleza no mundo hoje, ela aponta para o anseio por nossa pátria eterna, bela, perfeita, restaurada.

Ora, a busca pela beleza na ordem do cosmo não é o fascínio dos cientistas? A ciência, enquanto empreendimento humano estruturado, nos deu ferramentas muito poderosas para apreciarmos o belo. Aqueles treinados como cientistas profissionais têm o privilégio de apreciar a obra e se deliciar em suas belezas em primeira mão. Para usar uma analogia das artes plásticas: enquanto o mundo aprecia a beleza da “Mona Lisa” a cinco metros de distância e por detrás de um vidro grosso, os cientistas têm o prazer de poder tocar na tela e sentir o cheiro da tinta. (É só uma ilustração).

Muitos cientistas podem reconhecer a beleza do mundo natural, como relatado no estudo apresentado anteriormente. Mas o cientista cristão (também o cristão na ciência) vai além, pois sabe que o mundo natural é criação, e aprecia a beleza na obra criada, encontra enorme satisfação e se rende em adoração ao Criador. O cristão sabe que as coisas criadas por Deus são cheias de beleza, e nós fomos criados para percebê-la e experimentá-la. Cientistas podem até reconhecer que a beleza dos fenômenos naturais aponta para algo transcendente; mas o cientista cristão se rende em adoração, pois conhece bem a fonte; além disso, essa beleza o aproxima de Deus.

A ciência moderna deu ao cristão mais uma maneira de experimentar as maravilhas de Deus na criação.  As micro e macroestruturas identificadas dos átomos às galáxias, a simetria dos fenômenos físicos, a complexidade dos fenômenos biológicos, a elegante beleza das equações matemáticas, a consistência ontológica das teorias científicas… são todos novos olhares sobre a deslumbrante obra do Criador. Ao apreciarmos a beleza da ordem divina sustentando o cosmo criado, encontramos propósito e harmonia (shalom), autoridade e poder nas obras de Suas mãos. Obrigado, Senhor, por nos fazer apreciadores da Sua beleza!

A ciência moderna deu ao cristão mais uma maneira de experimentar as maravilhas de Deus na criação.

Para terminar aquela história das fotos com laser no canal de água recirculante… Em 2021, treze anos depois de ter produzido aquelas fotografias no doutorado, vi um edital do CNPq para o X Prêmio de Fotografia Ciência & Arte. Lembrei das imagens no HD e enviei uma delas sem muitas pretensões. Resultado: ganhei o segundo lugar com “A dança dos vórtices” na categoria de imagens produzidas por câmeras fotográficas.² No seu próximo experimento, encontre tempo para apreciar o belo. Se der, tire uma foto.

Fig. 1 – Foto de Gustavo Assi premiada no “X Prêmio de Fotografia Ciência & Arte”.

P.S.: Para quem se interessar pela beleza dos fluidos, todos os anos a American Physical Society organiza a Gallery of Fluid Motion. Este ano, uma curadoria reuniu algumas das mais belas peças produzidas pelos cientistas nessa área em uma exibição intitulada “Chaosmosis”. Aprecie a ordem e beleza mesmo por detrás do caos de um escoamento turbulento.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Nick Spencer, Beauty is truth: what’s beauty got to do with science?, 2022. Clique aqui para acessar.

2. Resultado da premiação disponível aqui.

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