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Gustavo Assi

Uma obra em restauração

05/04/2024

Se tem um tipo de vídeo que sempre me faz parar de rolar o feed das minhas redes sociais são as restaurações de móveis, brinquedos ou máquinas antigas. Adoro ver caminhõezinhos de lata, utensílios de cozinha, ferramentas de marcenaria ou qualquer outra quinquilharia sendo restaurada. Quanto mais riscado, enferrujado e amassado for, mais interessante fica a restauração. Melhor ainda quando o vídeo é feito da perspectiva do restaurador, mostrando apenas suas mãos em ação, dando a impressão de que sou eu quem está executando o conserto.

Por causa da degradação natural, falta de manutenção ou, muitas vezes, por simples mau uso, esses objetos antigos perderam sua função. Ainda são a mesma madeira, o mesmo aço, a mesma matéria do dia em que foram criados. Agora, sem utilidade. A restauração lhes devolve algo perdido.

Na minha última coluna aqui na Unus Mundus, escrevi que o mundo é uma “obra de arte de Deus”, que o criou com beleza perceptível e nos deu a capacidade de apreciá-la. Foi uma coluna bastante otimista que talvez tenha levado alguém a pensar que minha visão seletiva queira enxergar um tipo de mundo perfeito. Talvez alguém tenha pensado: “Como afirmar que este mundo é uma obra de arte diante de tantas misérias que nos cercam?”

Creio que exista algo errado com o mundo em que vivemos; há muita coisa feia e quebrada por todos os lados. Eu não preciso ter apreciado a obra original com meus próprios olhos para saber que ela está estragada. Mas, no meio de tantos destroços, ainda existe um mundo belo; ainda existe um mundo. É como olhar para as ruínas de um anfiteatro greco-romano e conseguir apreciar a beleza que teve nos seus dias de glória.

Entendo, a partir da Bíblia, que Deus criou o mundo perfeito e bom. No clímax da obra, Deus criou a humanidade para servir como sacerdotes neste templo cósmico. Mas bagunçamos a praça com nosso ego inflado. Entendo que o estrago que observamos e experimentamos seja a consequência universal do nosso próprio orgulho e da nossa própria rebeldia. Mas também entendo que esse estado deteriorado não é o fim da obra. O mundo está passando por um processo de restauração.​

Entendo que o estrago que observamos e experimentamos seja a consequência universal do nosso próprio orgulho e da nossa própria rebeldia. Mas também entendo que esse estado deteriorado não é o fim da obra. O mundo está passando por um processo de restauração.

Aos poucos, o Criador-Redentor vai expulsando o reino parasita, as luzes tomam o lugar das trevas, e a desordem é vencida por shalom. É um processo de restauração que custou muito caro. De fato, é um resgate. Há resistência. O parasita luta por território nas batalhas de uma guerra já perdida, mas ainda luta. Ainda há dores e ranger de dentes na Babilônia, mas sabemos que uma luz ofuscante já brilha na paz eterna da Nova Jerusalém. A restauração de todas as coisas está garantida!

(Se você é cristão, como eu, já foi convencido desse processo de redenção e reconhece os termos e jargões do parágrafo anterior. Se ainda não é, fica o convite para conhecer a Esperança que faz o futuro ser infinitamente melhor do que tudo o que conhecemos aqui.)

Toda a criação aguarda o dia final em que todas as coisas serão restauradas. A criação anseia pelo dia em que sua função original será restabelecida. Porém, há um detalhe muito especial na restauração desta obra de arte original: o restaurador é o próprio Autor! Ele, que conhece cada detalhe, que definiu a função da sua criação, garante que ela será feita nova de novo pelo poder de suas mãos. Não há desvio de finalidade. O criador é quem restaura. A obra não pode servir a outro propósito. A perfeição original está garantida na obra final.

Mas o que exatamente está sendo restaurado? Seriam “os novos céus e a nova terra” uma outra criação sem conexão material ou histórica com o cosmos original? O Autor vai jogar tudo fora para começar de novo? Creio que não. A Cidade Santa não é uma obra nova, mas uma obra restaurada. Não é a sua essência material que está sendo alterada, mas sim a sua função que está sendo restabelecida. O autor restaurará a obra à sua função original. Ao mesmo tempo, ela será uma realidade maravilhosa e gloriosamente nova. Uma realidade nova, porém reconhecível, que não conseguimos entender completamente, mas pela qual aguardamos ansiosamente.

A Cidade Santa não é uma obra nova, mas uma obra restaurada. Não é a sua essência material que está sendo alterada, mas sim a sua função que está sendo restabelecida. O autor restaurará a obra à sua função original.

Entendo que a narrativa da criação no livro de Gênesis seja, principalmente, uma narrativa funcional. Os leitores da época não se preocupavam muito com a origem material do mundo em que viviam. Essa “questão científica”, tão comum e bem estruturada em nosso tempo, não fazia parte das grandes preocupações dos povos do Antigo Oriente Próximo.¹ O grande assunto que as cosmogonias antigas buscavam responder era sobre propósito, sobre a função de todas as coisas. Dedicavam-se muito mais a saber “para que elas servem” do que “como elas foram feitas”. Creio, portanto, que a narrativa de Gênesis veio revelar a explicação funcional entregue diretamente pelo Autor, e não uma inventada pelos usuários. Além disso, Gênesis veio esclarecer “a quem todas as coisas servem”. A função de todos os atores nesse teatro cósmico é render glórias ao seu Autor.

Ora, se concordarmos que esse mundo esteja mesmo estragado e que nós, humanos, tivemos participação como protagonistas nesta tragédia, podemos avaliar que o principal estrago causado por nossa queda não foi a eliminação do material criado, mas a perda da sua função original. A ordem criada continuou a existir, mas houve uma inversão da sua função. Nós, regentes corrompidos do cosmos, fizemos a criação servir a nós mesmos, e não ao seu Autor. Mas a obra redentora de Jesus Cristo devolve a função à matéria criada. O que existe volta a ter serviço.

Haveria utilidade neste papo teológico para alguém interessado em ciência? Estou convencido de que o cientista cristão tem uma visão privilegiada ao enxergar seu empreendimento científico dentro deste processo de redenção cósmica.

A ciência se debruça sobre o mundo natural e desvela, maravilhosamente, como se executam seus mecanismos mais intrincados. É um empreendimento que traz aos humanos – em especial aos cientistas cristãos – grande satisfação e nos permite apreciar quão poderosas e “grandes são as obras do Senhor” (Sl 111.2). A ciência nos dá respostas a algumas das questões próprias do nosso tempo. Como escreveu Andrew Briggs, “a ciência nos dá excelentes respostas às nossas curiosidades penúltimas”.² Mas a ciência não tem alcance para tocar nas questões funcionais. O método científico não enxerga propósito. A ciência pode nos explicar muito bem como o mundo natural funciona, mas não diz nada sobre a sua função essencial e, sem enxergar a função, a ciência não pode fazer restauração.

A ciência pode nos explicar muito bem como o mundo natural funciona, mas não diz nada sobre a sua função essencial e, sem enxergar a função, a ciência não pode fazer restauração.

Sim, a ciência nos revela algo da beleza e da ordem do mundo criado. Algo do alto nos é revelado por meio das coisas criadas: sabemos que há um criador divino e poderoso (Rm 1.20). Faça boa ciência para que o poder e a beleza de Deus sejam desvelados no mundo criado, mas faça ciência diante da face de Deus para participar do processo de restauração.

Nós não temos o poder de restaurar todas as coisas, mas fomos chamados para participar do processo de redenção restabelecendo a função das coisas criadas. Você restaura a função da paternidade quando é um bom pai para seus filhos diante da face de Deus; restaura a função do trabalho quando produz com satisfação e qualidade diante da face de Deus; restaura a função da amizade quando aconselha seu amigo com sabedoria diante da face de Deus… Você restaura a função da ciência quando desvela verdades do Criador e lhe rende glórias.

Repetindo: ao fazer ciência diante da face de Deus, o cientista cristão desvela as maravilhosas verdades da ordem criada e restaura a função do empreendimento científico, rendendo glórias ao Criador. Ao fazermos ciência diante da face de Deus, participamos do processo de restauração do empreendimento científico. Não alteramos seu método ou seu objeto, mas contribuímos para restaurar-lhe a função.

Quando começo a restaurar um armário, uma mesa ou outra velharia na oficina, sei que o processo vai consumir tempo e recursos. Obviamente, só vale restaurar aquilo que tem valor, senão é trabalho desperdiçado. Mas encontro grande satisfação quando o processo acaba e aquela escrivaninha antiga volta a ter função. Não fui eu quem a criou originalmente, mas eu restaurei seu propósito. Tenho participação em deixá-la pronta para o serviço novamente; o serviço que um dia lhe foi dado pelo seu Autor.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. John Walton, O mundo perdido de Adão e Eva: o debate sobre a origem da humanidade e a leitura de Gênesis, 2016.

2. Roger Wagner e Andrew Briggs, A penúltima curiosidade: como a ciência navega nas questões últimas da existência, 2018.

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