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Marcelo Cabral

A arte esquecida de perguntar

04/05/2023

Ano passado, em julho de 2022, tive uma daquelas raras oportunidades que às vezes temos a graça de topar. Estava na universidade de Birmingham para a apresentação de um trabalho, quando um caro amigo que ali também estava propôs a mim e a outro amigo: “Hoje à noite será a última aula de Alister McGrath como professor de Ciência e Religião de Oxford. Vamos lá assistir?” A logística não era trivial, mas, ao fim da tarde, corremos (na verdade, andamos rápido, porque na Inglaterra, descobri, correr é pecado mortal) até a estação de trem e… fomos para Oxford!

Foi um curto e inesquecível “bate-e-volta”. Entre as várias memórias guardadas, lembro-me que, no momento das perguntas, uma estudante perguntou à McGrath sobre sentimentos: tanto a ciência como a religião envolvem sentimentos ou emoções: naquela, o arrebatamento por uma nova descoberta, ou o frio na barriga ao realizar um experimento decisivo, ou mesmo a frustração ao sentir-se em um beco-sem-saída em uma pesquisa; nesta, o arrebatamento de uma experiência mística e talvez a frustração por orar e não obter respostas. Claro, muitos outros sentimentos são evocados tanto na vida científica como na religiosa. Contudo, ela perguntou: são os sentimentos científicos fundamentalmente distintos dos sentimentos religiosos? Ou são os mesmos sentimentos, mas direcionados a objetos e fenômenos diferentes? Se forem distintos, o que fundamenta tal distinção?

tanto a ciência como a religião envolvem sentimentos ou emoções: naquela, o arrebatamento por uma nova descoberta, ou o frio na barriga ao realizar um experimento decisivo, ou mesmo a frustração ao sentir-se em um beco-sem-saída em uma pesquisa; nesta, o arrebatamento de uma experiência mística e talvez a frustração por orar e não obter respostas.

Admito que fiquei espantado com a pergunta. Quão profunda! Quão inteligente! Quão instigante! Após refletir sobre esse episódio, ainda outra coisa me chamou a atenção. Independentemente da resposta que McGrath tenha dado – e, garanto, foi uma curta e elusiva resposta – a própria pergunta foi uma fonte de conhecimento. Eu aprendi com aquela pergunta. Ela fez conexões que eu não enxergava, e apontou possíveis níveis de distinção que eu não havia apreciado até então. Além disso, me ensinou algo sobre a própria forma de uma boa questão: virtudes como clareza, foco em um objeto definido, perscrutar novos possíveis caminhos cognitivos. “Quando eu crescer, quero aprender a fazer perguntas como ela”, pensei.

Perguntar é uma das atividades mais ordinárias da vida humana. Quem tem crianças por perto chega até cansar dos “por ques” sem fim, e boa parte de nossa vida mental envolve perguntas que fazemos a nós mesmos. Sócrates estabeleceu como ponto de partida da filosofia a questão “o que é isto?” – o “isto” sendo os vários temas que ele e seus companheiros investigavam. Aliás, assim como as crianças, Sócrates às vezes cansava aqueles à sua volta com suas perguntas incessantes. Não é à toa que Chico Buarque cantou, “Te perdoo / Por fazeres mil perguntas”.

Lani Watson,¹ filósofa de Oxford, ao fazer um tipo de genealogia funcional da prática de perguntar, defende que essa é uma atividade necessária para o funcionamento das comunidades humanas. Comunidades precisam promover o intercâmbio de conhecimento e informações, e as perguntas são um dos melhores mecanismos para efetivar isso: quando eu não sei alguma coisa ou preciso de uma certa informação, procuro alguém de minha comunidade que, penso eu, saiba a resposta, e pergunto: Que horas são? Quanto tempo falta para acabar? Existem extraterrestres? Há alguma distinção fundamental entre sentimentos religiosos e científicos?

a própria pergunta foi uma fonte de conhecimento. Eu aprendi com aquela pergunta. Ela fez conexões que eu não enxergava, e apontou possíveis níveis de distinção que eu não havia apreciado até então.

É para lá de óbvio que nem todas as perguntas cumprem a mesma função. Existem perguntas simples e aquelas complexas, perguntas diretas e outras mais abstratas, perguntas pontuais e umas mais abertas. Perguntamos sobre o tempo e sobre Deus, sobre opinião política e preferência futebolística, sobre tudo que cabe entre os céus e a terra e, às vezes, até sobre o que não cabe.

Mas, contra o que afirma alguma sabedoria popular, nem toda pergunta é uma boa pergunta. A competência de perguntar bem é a virtude da inquisitividade, que Lani Watson define como: “a pessoa virtuosamente inquisitiva é caracteristicamente motivada e capaz de realizar boas questões”.² 

Há nessa virtude dois componentes. O primeiro é a habilidade de fazer boas perguntas. Assim como a estudante de Oxford, tal habilidade envolve clareza e a capacidade de explicitar exatamente o que se quer saber (e não dizer, meramente, “não entendi bulhufas”, embora, às vezes, seja exatamente assim que nos sentimos após uma aula confusa). Envolve também saber a hora certa de perguntar (com cuidado para não interromper o fluxo argumentativo do professor, por exemplo) e o tom apropriado. Uma boa pergunta pode abrir novos caminhos de investigação, pode apontar conexões entre o tema presente e outros autores ou conceitos, pode ser capaz de apresentar furos de argumentação, falhas de apresentação e temas que precisam de mais desenvolvimento. A resposta nem sempre entregará o que dela se espera, mas uma boa pergunta promove uma ocasião ímpar para que toda a comunidade melhore sua posição epistêmica.

Mas, contra o que afirma alguma sabedoria popular, nem toda pergunta é uma boa pergunta.

O segundo componente, tão essencial quanto o primeiro, é uma certa motivação. Isto é, para que alguém possua a virtude de ser inquisitivo, é necessário que seja adequadamente motivado. Alguns perguntam para humilhar, outros para se envaidecer, e ainda outros apenas para ganhar pontos com o professor. Mas o questionador virtuoso pergunta porque quer saber. Quer aprender o que não sabe, quer entender o que está confuso, quer a verdade que ainda lhe escapa. Assim como Sócrates, ele ousa perguntar porque não pode se omitir da verdade. “O que é isto, a virtude?”, perguntou ele uma vez a Mênon.

Acrescento ainda um outro elemento à virtude de ser inquisitivo. Em uma era na qual nossa capacidade atencional tem sido dilacerada pelas mídias sociais, por novos padrões comunicativos e afins, perguntar é uma prática que sempre envolve disciplinar o nosso foco. Só é capaz de perguntar bem quem presta atenção, seja na aula, na palestra, seja nos seus entornos ou em suas ideias. E a disciplina da atenção precisará continuar ativa enquanto ouve a resposta, pois, caso contrário, a pergunta será efêmera. Concordo com a filósofa da Universidade de Chicago Agnes Callard, que propõe, a todos nós, que, às vezes, pratiquemos a antiga e quase esquecida atividade de conversar um longo tempo sobre uma única pergunta, e sobre perguntas que dela derivam, em vez de ficar pipocando por mil assuntos diversos. Será um treino para o intelecto, mas também para a alma. Um remédio para ansiedade.

Em uma era na qual nossa capacidade atencional tem sido dilacerada pelas mídias sociais, por novos padrões comunicativos e afins, perguntar é uma prática que sempre envolve disciplinar o nosso foco.

Ao longo de toda sua carreira, Alister McGrath nunca se cansou de enfatizar o que ele acredita ser o fundamento do diálogo entre ciência e religião: as big questions, no seu inglês, ou as “grandes questões”, no nosso português. É outra disciplina que não podemos perder de vista. Enquanto a academia contemporânea, talvez com seus justos motivos, foque em pequenas e estreitas perguntas, precisamos continuar buscando, ponderando e postulando as grandes questões da existência. Por que precisamos?

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Lani Watson, “The Social Virtue of Questioning: A Genealogical Account”, in Social Virtue Epistemology, 2022.

2. Lani Watson, “Curiosity and Inquisitiveness,” in The Routledge Handbook of Virtue Epistemology, 2019, p. 161.

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