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Marcelo Cabral

Acaso a fé e a humildade intelectual são inimigas?

01/07/2023

Profetas do fim (de alguma coisa) sobejam no mundo moderno. Houve quem profetizasse, há mais de 100 anos, que, na esteira do progresso, da ciência e da tecnologia, a religião diminuiria drasticamente no mundo. Charles Taylor denominou esse tipo de tese de “secularismo de subtração”, a ideia de que o secularismo não tem nada de substantivo, sendo, portanto, apenas o mundo se purgando das manhas e bagaços religiosos.

Se o teste do profeta é acertar a profecia, estes não passam de falsos profetas. Nosso mundo é ainda muito religioso e, em partes substanciais, cada vez mais religioso. E mesmo os não religiosos, é possível alegar, são pessoas de fé – talvez fé em alguma tradição, em algum esoterismo, talvez fé na humanidade, no acaso, ou, quando pouco sobra, fé em si mesmos.

Para o cristianismo, uma das grandes tradições religiosas, a humildade sempre ocupou um lugar de destaque no panteão das virtudes. Coragem, justiça, amabilidade – todas virtudes importantes […], mas a humildade, que por sua natureza não busca o trono, foi entronizada como a virtude mais distinta, mais importante e também a mais escassa.

Para o cristianismo, uma das grandes tradições religiosas, a humildade sempre ocupou um lugar de destaque no panteão das virtudes.

Paulo, talvez ecoando um hino da igreja primitiva, escreveu aos Filipenses:

Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus,
que, embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se;
mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo (2:5-7)

Humildade é a virtude que certamente faltava a Brás Cubas, e possivelmente a todos nós. Mas o tópico que coloco em nossa conversa hoje é o seguinte: não seria a atitude de fé oposta à humildade, especialmente a humildade intelectual? Ter fé é, em alguma medida, crer com convicção e manter a mesma tese, ideia ou doutrina a todo custo. Humildade intelectual é, em alguma medida, um reconhecimento das próprias limitações cognitivas, da finitude da própria razão e, portanto, uma abertura para mudar de ideia quando encontrar novas razões.

Inimigas?

O filósofo analítico que habita em mim demanda que eu deixe as coisas um pouco mais claras e, portanto, um pouco mais formais. Pois bem, sigamos Lara Buchak, professora de Princeton e uma das principais filósofas analíticas da religião mundo, que tem um amplo projeto em entender as condições em que ter fé é uma atitude racional.

Seu modelo é por ela chamado de risk-commitment account (modelo do risco-compromisso), segundo o qual “ter fé requer que se pare de procurar por nova evidência e se faça um compromisso – e se mantenha o compromisso mesmo em face de contraevidência”.¹ Ela afirma que “se comprometer e manter o compromisso em um ato ou em uma alegação constitui ter fé naquela alegação”.² 

Mais formalmente, um sujeito S tem fé em uma alegação X se e somente se:

  1. X’ é um candidato para fé de S, isto é: S se importa com X, tem uma atitude positiva com relação à X, e não tem certeza de X baseado somente em sua evidência de X.
  2. S está disposto a se comprometer a assumir riscos com base na alegação que X, independentemente de novas evidências.
  3. S está disposto a continuar a assumir tal risco mesmo que receba evidências contra a alegação X.

Para nosso exercício de hoje, peço que você deixe de lado, por ora, as suas possíveis objeções ao modelo do risco-compromisso de Lara Buchak, e utilizemo-lo para a nossa reflexão. Parece que o cristianismo (bem como outras tradições) se encaixam bem no paradigma de fé de Buchak: ter fé (que Deus exista, que a trindade seja a realidade de Deus, que a ressurreição de Jesus ocorreu, etc.) envolve (1) entender essas alegações como valiosas, (2) estar disposto a se comprometer com tais alegações e (3) continuar firme em tal compromisso mesmo que se depare com evidências contrárias a tais alegações.

(1) e (2) parecem fáceis de aceitar. Mas e (3)? Acredito que todos nós nos deparamos com contraevidências de nossos objetos de fé. Com relação ao teísmo, algumas são clássicas: versões do problema do mal, afirmações científicas contra a possibilidade de ressurreição, o problema da ocultação divina, entre outros. Isso não significa que tais contraevidências sejam conclusivas. O ponto é que, mesmo diante delas, estamos dispostos a manter a atitude de fé. (Em uma coluna futura, tratarei mais detalhadamente dos aspectos epistemológicos dessa questão).

Tendo agora mais clareza do que significa ter fé em uma certa alegação, voltemos à nossa questão: é a fé oposta à humildade? Mais especificamente, é a fé cristã intrinsecamente antagônica à humildade intelectual? Se a resposta for positiva, o cristianismo estaria em contradição com (talvez) sua principal virtude!
O modo de muitos expressarem sua fé é orgulhoso e arrogante, disso não restam dúvidas. Mas defendo que não há nenhum conflito inerente entre a atitude de fé e a humildade, incluindo sua dimensão intelectual.

O modo de muitos expressarem sua fé é orgulhoso e arrogante, disso não restam dúvidas. Mas defendo que não há nenhum conflito inerente entre a atitude de fé e a humildade, incluindo sua dimensão intelectual.

Em primeiro lugar, para cultivar a humildade, não é necessário renunciar às próprias convicções. Como Roberts & Wood expressam, humildade intelectual é ter um apreço tão grande pela verdade e pelo conhecimento que se acaba tendo pouca preocupação com a própria projeção, status ou prestígio. Rosalind Franklin, pesquisadora do King’s College em Londres, fez contribuições fundamentais para a então futura descoberta da estrutura de dupla hélice da molécula de DNA. James Watson e Francis Crick fizeram uso de sua pesquisa, acabaram ganhando o prêmio Nobel e não deram o devido crédito à Rosalind. O fato é que Rosalind celebrou mais a descoberta do que se chateou por não ter ganhado o destaque. Ela era uma pessoa com uma série de convicções, mas a humildade intelectual era uma marca indelével de seu caráter e de seu amor pela verdade.

Em segundo lugar, a humildade intelectual requer certas convicções profundas. É preciso ser convicto das próprias limitações cognitivas; é preciso estar certo de que algumas de nossas certezas são provisórias; é preciso ter convicção no valor intrínseco do conhecimento e dos demais bens intelectuais; é preciso ter fé no valor das outras pessoas a quem o humilde é capaz de levar a sério, de ouvir suas críticas e se dispor a melhorar. A sabedoria, fim último de todas as virtudes intelectuais, requer que algumas crenças sejam objetos de nossa fé:

Uma estrutura noética madura é um conjunto de crenças, entendimentos e memórias que é significantemente consistente, no centro da qual estão algumas crenças e entendimentos especiais, valiosos e estruturantes. Com a maturidade (sabedoria), a estrutura assume uma forma mais definida e firme.³

Por fim, vale lembrar que, na tradição cristã, mais do que fé em uma proposição ou alegação, somos chamados a depositar a nossa fé em uma pessoa. A fé, como acertou Buchak, sempre envolve risco, mas, no fim das contas, é um risco por anunciar a própria condição de ser dependente e vulnerável, que é inescapável à nossa condição humana. Mas, além de risco, a fé é a possibilidade final de repouso:

Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei.
Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas.
Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve.

Mateus 11:28-30

Por fim, vale lembrar que, na tradição cristã, mais do que fé em uma proposição ou alegação, somos chamados a depositar a nossa fé em uma pessoa. A fé, como acertou Buchak, sempre envolve risco, mas, no fim das contas, é um risco por anunciar a própria condição de ser dependente e vulnerável, que é inescapável à nossa condição humana.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Lara Buchak, Faith in Traditions, 2021b.

2. Lara Buchak, A Faithful Response to Disagreement, 2021a, p. 199-200.

3. Robert Roberts & Jay Wood, Intellectual Virtues, 2007, p. 210.

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