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Marcelo Cabral

Uma nova apologética para o Natal

21/12/2023

Se para Sartre o inferno são os outros, conviver com quem está ao lado é suplício. Mas é nesse convívio, e só nele, que alguma cura é possível. Pois em algum Natal distante alguém já disse: “Alegrem-se com os que se alegram, e chorem com os que choram”.

Uma Nova Apologética para o Natal

A ambiguidade no Natal é o seu próprio estigma no mundo Ocidental.

Para alguns, “it is the most wonderful time of the year”: uma coleção das mais estimadas lembranças, tempo de celebração, comida farta e saborosa (tirando as uvas passas, essa aberração que certa gente insiste em defender), presentes em torno da árvore, risadas, canções tradicionais, criançada correndo, trombando em tudo naquela santa confusão.
Para outros, é tempo de tensão: encontros que engatilham crises, familiares inconvenientes e memórias doloridas. Tempo de ansiedade pelo presente que não conseguiu comprar para os filhos, pela árvore que ninguém montou, ou pela ceia que, farta para alguns, falta para outros. Como no Natal, na segunda temporada da série The Bear, a confusão não é santa, nem saudável. Só é memorável, mas no mau sentido.

Para alguns, Natal é a festa cristã por excelência: a celebração do nascimento de Jesus, o salvador, que veio ao mundo para nos livrar do cativeiro do pecado e da morte, a encarnação da divindade que veio adotar a humanidade perdida e restaurar toda a criação.

Para outros, Natal também é uma festa cristã por excelência, mas não para celebração. Afinal, o cristianismo deixou nestes marcas doloridas e feridas abertas que o tempo insiste em não curar. Abusos espirituais e morais, moralismos truculentos, dogmatismos que engoliram a razão, tudo virou cicatriz, seja visível ou subcutânea, mas que ainda dói, e muito.

Natais apologéticos surgem então naturalmente: os entusiasmados com o Natal querem convencer os frustrados de que a festa vale a pena. Não somente a festa, mas sobretudo seu significado: e defendem, assim pretendem, a fé. Os argumentos abundam – a veracidade da ressurreição, o enigma da encarnação e o testemunho dos fiéis. Sobram ainda mais os argumentos históricos: a defesa de tudo o que o cristianismo legou de bom ao mundo, desde escolas até hospitais, até direitos humanos, e a lista continua. É claro, raramente os apologetas cotejam sua defesa com uma confissão dos desacertos, deslizes e desastres que a religião também gerou.

Natais apologéticos surgem então naturalmente: os entusiasmados com o Natal querem convencer os frustrados de que a festa vale a pena.

Nessa defesa encarecida da fé, há frequentemente boa intenção. É apresentar uma nota positiva e coerente de uma visão de mundo, de sua sobriedade, de seu apelo em um mundo que se perdeu em si mesmo; é a defesa da beleza em um mundo embrutecido e da verdade em uma era que dela duvida.

O problema é que a velha apologética não toca no cordão dos pleitos presentes no peito das pessoas atuais: a estima despedaçada. Por estima despedaçada não insinuo apenas o fato de muitos terem uma autoimagem quebrada, tipo frágil-porcelana. Há algo mais profundo: é uma autoimagem perdida, confusa, desorientada.

Ao mesmo tempo que sentem intensa empatia por alguns e uns poucos outros, são tomados de inveja pelo sucesso alheio – sucesso dos inimigos e, muito pior, sucesso dos amigos. A estima despedaçada, além do mais, tem ganas de causar inveja aos olhos alheios, pois não basta ter conquistado, conseguido, logrado, viajado, visitado, comido. É preciso ter essas coisas às vistas do público, ter o que é seu cobiçado pelos outros. E tudo isso é acompanhado por uma culpa subterrânea, raramente reconhecida, mas que dá seus frutos cotidianamente. Não à toa Nietzsche disse: “O ensombrecimento do céu acima do homem aumentou à medida que cresceu a vergonha do homem diante do homem”.¹

Assim, o indivíduo com a estima despedaçada quer vender não produtos, mas lifestyles. Acaba vendendo, porém, apenas uma lie style, uma mentira bem encapada, porque vende alegrias exageradas, tristezas calculadas ou sabedorias fajutas. É a moderna vida rarefeita, abundante de publicidade enquanto privada de significado.

O vício da estima despedaçada não é privilégio de poucos; virou moda, até de quem não o quer vestir. O mundo já tão bem estudado das mídias sociais, instagrams pra cá e twitters pra lá, algoritmos que tudo sabem e conduzem, têm, já se sabe, papel importante nisso tudo. São potentes em destilar inveja e egoísmo, construir pessoas ensimesmadas e obcecadas pela própria imagem e gente cada vez mais incapaz de conviver com quem está ao lado – o inferno são os outros, acreditou Sartre.

Há ainda outros vícios viralizando. Considere o vício do dogmatismo dogmático: não só ter certeza das próprias ideias, mas ter certeza de que tem certeza, aliada à certeza de que todos os que pensam diferente (certamente!) estão errados. Daí resultam pessoas com estimas dogmaticamente despedaçadas, que em vez de buscar auxílio, socorro, ou ao menos a sobriedade da companhia real de quem está perto, continuam vivendo sua lie style, e com toda a convicção.

A isso ainda se soma o entrincheiramento ideológico, a ansiedade generalizada, o cansaço que não sabe mais descansar e o medo de que no Natal desse ano a felicidade seja brinquedo que não tem, ou até que Papai Noel tenha morrido. E no Natal que já está chegando, seja talvez o momento (inevitável) de conviver com quem está ao lado. Suplício ou salvação?

É por isso que convoco todos apologetas de plantão para uma nova abordagem. Um pouco menos de argumentos, de palestrinhas, de lições de moral, de esnobismo religioso travestido de humildade. O que, então? Uma virtude. Cultivemos e exercitemos o que chamo de virtude natalina: é a competência de se alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram. Mas com um condicional irrevogável: “os” não são qualquer um; são os que estão ao lado. De carne e osso, encarnados. Já que o Natal é a festa da encarnação, nada mais justo. Para essa virtude, não vale chorar ou se alegrar com a notícia, nem com indivíduos abstratos.

É por isso que convoco todos apologetas de plantão para uma nova abordagem. Um pouco menos de argumentos, de palestrinhas, de lições de moral, de esnobismo religioso travestido de humildade. O que, então? Uma virtude. Cultivemos e exercitemos o que chamo de virtude natalina: é a competência de se alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram.

Já advirto que é uma virtude dificílima e rara. Chorar com os que choram requer uma disposição em ouvir os lamentos, dores e crises do outro. Não basta querer o outro para ouvir os meus problemas, e também não basta o outro para me ludibriar de todos os problemas, dos meus e dos do mundo. É preciso ouvir, acolher, escutar, ligar-se ao outro em sua dor e – POR FAVOR – não oferecer respostas prontas, tapinhas nas costas com um “vai ficar tudo bem” catatônico, e menos ainda alguma frase motivacional. É chorar junto. E ponto. (Há sabedoria no silêncio; se a palavra for convocada, entregue-a como um presente.)

Alegrar-se com os que se alegram é uma competência ainda mais escassa. Dado a epidemia da estima despedaçada, a alegria dos outros nos afugenta, chega a apavorar. Talvez nos lembre que nossos sucessos publicados são parcialmente produzidos, e que a vida sorri para outros enquanto nós nem sempre somos lembrados. Mas é só com essa alegria não fabricada, dividida com quem está ao lado, que o Natal é verdadeiramente proclamado. É assim – talvez, só assim – que ecoaremos Cartola “lembrando ao mundo / ao velho mundo / que hoje é noite de Natal”.

E nisto há uma beleza real: a virtude natalina, por rara e custosa que seja, é a única rota de fuga contra os vícios anteriormente elencados. Vícios encantam, mas aprisionam, e aprisionados cá estamos. Ao chorar com os que choram, e se alegrar com os que se alegram, quando o “os” é quem está ao lado, brota a lembrança de que o Cosmo não está, no fim das contas, em guerra. De que nas relações encarnadas, o encarnado vive.  E foi ele, afinal de contas, que também disse: “Há maior alegria em dar do que em receber”.

Ao chorar com os que choram, e se alegrar com os que se alegram, quando o “os” é quem está ao lado, brota a lembrança de que o Cosmo não está, no fim das contas, em guerra. De que nas relações encarnadas, o encarnado vive.

Se para Sartre o inferno são os outros, conviver com quem está ao lado é suplício. Mas é nesse convívio, e só nele, que alguma cura é possível. Pois em algum Natal distante alguém já disse: “alegrem-se com os que se alegram, e chorem com os que choram”.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Friedrich Nietzsche, Genealogia da Moral, 2013, p. 52.

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