QUEM SOMOS
Screenshot 2023-03-24 at 14.06.13

Marcelo Cabral

Quem é que sabe?

Reflexões sobre a ignorância humana

01/06/2023

Mas o filósofo também sabe que essa sabedoria é um estado ideal, quase inacessível. Para o filósofo, a vida cotidiana, tal como organizada e vivida pelos outros homens, deve necessariamente parecer anormal, como um estado de loucura, inconsciência e ignorância da realidade.¹

Que somos todos ignorantes de muitas coisas e em muitos assuntos não é mais do que um truísmo. Em seu sentido mais lato, ignorância é o estado mental avesso de conhecimento – o último é propriedade de quem sabe, o primeiro de quem não sabe. A ignorância, entretanto, não é um estado monocromático, visto que existe em muitas formas. Na coluna de hoje, vamos conversar sobre vários tipos de ignorância, alguns particularmente perniciosos para a vida coletiva e para o tecido social epistêmico.

Muitos são ignorantes de assuntos socialmente importantes – isto é, assuntos que balizam a vida nas atuais sociedades e que fundamentam a democracia e outras instituições da vida pública. Tomemos, por exemplo, a ignorância científica: o desconhecimento da importância, do valor e dos contornos principais do funcionamento das ciências modernas. Tal ignorância teve um alto custo durante a pandemia da COVID-19, visto a desconfiança de muitos nas ações propostas pelos órgãos de saúde. Juntamente com o negacionismo contra às vacinas, testemunhamos muitos arredios e céticos da importância das máscaras, da ventilação e do distanciamento social. Esta ignorância custou milhares e milhares de vidas.

Há também, como alertam Zena Hitz e Jennifer Frey, um tipo de ignorância literária e cultural. Um generalizado desinteresse das grandes obras e pensamento de luminares na literatura, poesia, filosofia e teologia, acarretando um profundo vazio intelectual e moral e uma obstrução no encontro com o que há de mais humano em nossos exercícios de linguagem. Tal ignorância é vista também (e, às vezes, principalmente), nos mais abastados e privilegiados, que desdenham da mais bela cultura criada nos becos e “outras veredas sem nome ou pouco conhecidas,” onde, cantou Cartola, “o sol nascerá, finda esta saudade, ei de ter outro alguém para amar”.

Tal ignorância é vista também (e, às vezes, principalmente), nos mais abastados e privilegiados, que desdenham da mais bela cultura criada nos becos e “outras veredas sem nome ou pouco conhecidas

As ignorâncias até aqui tracejadas podem causar no leitor um sentimento ambíguo, ora concordando que são problemas sérios, ora notando um tom elitista na abordagem. Afinal de contas, quem pode ter acesso ao conhecimento científico e literário em um mundo tão desigual e segmentado? Em minha defesa, creio que a consciência de que conjuntos amplos da população são privados de tais conhecimentos deve provocar em nós não uma diminuição do valor do conhecimento, mas um impulso para que todos tenham acesso e formação adequada para dele desfrutar e com ele contribuir.

Mas… ainda há mais. Algumas das ignorâncias mais graves são encontradas exatamente nos mais privilegiados. Por mais dinheiro, estudo e acesso cultural que alguns possuam, muitos permanecem ignorantes sobre si mesmos. Tal conhecimento não é aquele adquirido nas consultas com coachs (e, frequentemente, nem na terapia), mas somente no encontro com a vida. Só pode ser sábio quem viu e entendeu a tristeza. Como o pequeno Dito, irmão de Miguilim, que “era o menor, mas sabia o sério, pensava ligeiro as coisas, Deus tinha dado a ele todo o juízo” e mostrava a sua não-ignorância “porque sempre que ele [Miguilim] chorava o Dito também pegava vontade de chorar junto”.² Como alguém já disse, se queres deixar de ser ignorante sobre, digamos, “liderança”, não vás a um “congresso de líderes altamente eficazes”, mas visites uma mãe de cinco na rua três, e preste atenção.

As ignorâncias até aqui tracejadas podem causar no leitor um sentimento ambíguo, ora concordando que são problemas sérios, ora notando um tom elitista na abordagem. Afinal de contas, quem pode ter acesso ao conhecimento científico e literário em um mundo tão desigual e segmentado?

Essa ignorância que arremete mesmo os mais doutos e abastados é aquela que tanto incomoda o filósofo, de acordo com Pierre Hadot. Isso ocorre porque tal ignorância é fruto não da falta de estudo, mas de uma certa posição (stance) diante da realidade – a posição de quem valoriza mais o status, ou o dinheiro, ou a influência, ou “ser relevante”, do que a verdade, a bondade e a beleza. De quem rejeita a carne criada para adorar as ideias de sucesso; de quem nega a vida ao lado para edificar um altar em torno do próprio umbigo.

Falta ainda falarmos de uma ignorância, talvez a mais perniciosa. Até aqui, ignorância parece ser a falta de algo, seja de um saber, de um conhecimento ou de uma atitude. Linda Martín Alcoff ressalta, entretanto, o quanto nosso mundo é dominado por redes de ignorância ativa, “uma falta remediável de conhecimento que envolve, ao menos algumas vezes, práticas substantivas (como evitação de fontes ou de reflexão) e normas (como aquelas que justificam ou desculpam tal evitação)”. Ignorância ativa se manifesta em “conjunto de práticas epistêmicas estruturalmente fundadas e normalizadas que são adotadas e seguidas tanto por indivíduos como por organizações, que mantém a ignorância estabelecida”.³

Como alguém já disse, se queres deixar de ser ignorante sobre, digamos, “liderança”, não vás a um “congresso de líderes altamente eficazes”, mas visites uma mãe de cinco na rua três, e preste atenção.

É claro, são os do topo que se beneficiam da ignorância ativa. Ela descarta propositalmente as ideias, os saberes e os artefatos culturais de quem está “em baixo”. Como cantou Milton em Para Lennon e McCartney:

Por que vocês não sabem / Do lixo ocidental?
Não precisam mais temer / Não precisam da solidão / Todo dia é dia de viver

Desse modo, a ignorância ativa descarta grupos inteiros de pessoas como “não confiáveis”, e são assim excluídas das comunidades epistêmicas e do palco de boa parte das instituições de conhecimento. Não é à toa que as prisões e universidades tem, ao menos no Brasil, cada uma a sua cor. E também não é de se espantar que tantos atores políticos tenham tão pouco interesse em promover a revolução na educação que nosso país tanto precisa.

Não há remédio óbvio contra todas essas ignorâncias. Me acalentam, como sempre, as palavras do Mestre:

Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas dos sábios e cultos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, pois assim foi do teu agrado (Lucas 10:21).


Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Pierre Hadot, Philosophy as a Way of Life, 1995, p. 58.

2. Campo Geral, de Guimarães Rosa.

3. Linda Martín Alcoff, Race and Gender and Epistemologies of Ignorance, p. 304.

Outras colunas de MARCELO CABRAL

Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!