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Marcelo Cabral

A virtude da mentalidade-aberta

Por que tão temida, por que tão importante?

03/04/2023

As coisas mais valiosas da vida envolvem riscos. A medida do risco pode variar, mas ele estará lá. Amar, ter um filho, tentar uma vaga de emprego, ser discípulo de Jesus – cada qual com seu valor, cada um com o seu risco. Sou do time que acredita que a construção do caráter conta entre os maiores valores da existência. (Ao contrário do que alguns pensam, edificação não é e nunca foi um projeto meramente individual – embora envolva algum grau de solidão, como Heidegger alertou sobre a condição de existir). Se for assim, cultivar virtudes é um destino repleto de perigos, incertezas e, quase sempre, feridas duradouras.

Minha atenção nesta coluna se volta para a virtude da mentalidade-aberta, uma habilidade intelectual que se encontra, marcadamente, na fronteira dos saberes. Ela é ao mesmo tempo (e às vezes pela mesma pessoa) estimada e estigmatizada, perseguida e evitada, louvada e condenada. Eu gosto de ser chamado de mente-aberta, mas odeio abrir minha mente. Assim como veste fácil um sapato antigo, crenças bem-estabelecidas são de grande conforto cognitivo.

Jason Baehr, um dos principais filósofos da epistemologia das virtudes, a caracteriza do seguinte modo:

Uma pessoa mente-aberta é de modo característico (a) disposta e (dentro de certos limites) capaz de (b) transcender seu ponto de vista cognitivo padrão (c) para tomar ou avaliar seriamente os méritos de (d) um ponto de vista cognitivo diferente.¹

Ser mente-aberta, diferentemente de concepções populares, não significa acreditar em coisas exotéricas, topar qualquer proposta ou aceitar toda teoria com um ar de “quem sabe isso não é verdade?”. Não é encarnar o espírito Stiepan Arcáditch Oblonski, irmão de Anna Kariênina, que se tornava amigo de qualquer verdade que lhe conviesse. Muito pelo contrário, ser virtuosamente mente aberta requer uma refinada capacidade de julgamento de em que circunstâncias, e diante de quais ideias, é adequado considerar seriamente pontos de vista diversos e até opostos aos nossos. Tal atividade tem um custo emocional e cognitivo alto, e, portanto, não devemos jogar pérolas aos porcos. Além disso, ser mente aberta não implica que, após avaliar os méritos de ideias ou evidências contrárias às minhas, terei que mudar de posição. É perfeitamente cabível que, após um processo de ponderação, conclua-se que tais visões simplesmente não são boas o bastante. Ademais, a posse de um núcleo fundamental de crenças basilares, em vez de inimiga, é essencial para uma mente que almeja ser virtuosa. 

Muito pelo contrário, ser virtuosamente mente aberta requer uma refinada capacidade de julgamento de em que circunstâncias, e diante de quais ideias, é adequado considerar seriamente pontos de vista diversos e até opostos aos nossos.

Mas raramente será o caso de voltarmos os mesmos depois de abrir a mente. Mesmo que certas crenças fiquem intactas, interagir com perspectivas distintas refina, aguça e amplia nossa concepção das coisas. Como diz Andrew Briggs, a natureza sempre apresentará novos segredos que escapam às nossas teorias de estimação.² O mundo é sempre maior do que nossas caixinhas.

Mas, como todas as coisas valiosas, essa virtude não vem sem seus riscos. E se, no caminho, eu renunciar a crenças que eram verdadeiras? E se eu for lançado em um mar de confusão ao tentar entender visões tão díspares? E se eu me confundir sobre o que é a realidade? E se eu perder a fé? 

Concedo que o perigo existe. Mas me permitam concluir com um apelo ao seu cultivo. Vejo uma ameaça muito mais urgente nos vícios da arrogância e do dogmatismo do que na virtude da mentalidade aberta. A incapacidade de pensar fora das próprias categorias tem nos isolado. Os que estimam muito as próprias ideias têm se tornado violentos contra quem configura as coisas de um modo diferente. Muitas crenças públicas têm sido defendidas sem nenhuma base evidencial. A crise de confiança na ciência é um sinal disso: já que o fulano não entende (ou não quer entender) a ciência, prefere fechar os olhos para o mundo e abri-los para o Twitter (ou WhatsApp), onde seu dogmatismo vai ser alimentado e elogiado como “coragem”. Por falar em coragem, ela é imprescindível para quem quer ter mentalidade aberta: como no maravilhoso filme A Vida dos Outros, deixar para trás algumas de minhas crenças mais importantes pode salvar vidas (dos outros), mas custar a própria. O caminho à verdade não é sempre seguro, mas, assim como o amor, a virtude intelectual lança fora todo o medo.

O caminho à verdade não é sempre seguro, mas, assim como o amor, a virtude intelectual lança fora todo o medo.

Histórias, mais do que argumentos, são o baldrame para cultivá-la. Enquanto argumentos concluem (e, portanto, encerram), histórias dilatam (abrem portas). Leia bons livros, assista a bons filmes e, principalmente, interaja com as muitas gentes – que são, propriamente, histórias encarnadas. É preciso, entretanto, ler, assistir e interagir com a disposição adequada. 

Virtudes demoram a ser sedimentadas, e, ao longo do caminho, tropeços acontecem. Mas o ganho final sempre valerá a jornada. “As sombras construímos com nossas mãos”, mas, “se nos virarmos para a luz, ela queimará a noite”.³ 

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Jason Baehr, The Inquiring Mind, 2011, p. 152.

2. Andrew Briggs; Hans Halvorson; Andrew Steane, It Keeps Me Seeking: The Invitation from Science, Philosophy and Religion, 2018.

3. Iron Maiden, Journeyman, do álbum Dance of Death. 

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