QUEM SOMOS
Screenshot 2023-03-24 at 14.06.13

Marcelo Cabral

Virtudes intelectuais para uma economia da informação especializada

15/03/2024

Virtudes são hábitos de funcionamento excelente do caráter em áreas significativas da vida que nos permitem florescer. Nas tradições aristotélica e agostiniana, a despeito de suas grandes diferenças, as virtudes são um componente essencial da vida feliz, da vida que é capaz de cumprir seu fim apropriado: para Aristóteles, realizar plenamente as potências da parte racional da alma; para Agostinho, contemplar a verdade divina em todas as coisas.

Os leitores desta coluna sabem que minhas investigações e curiosidades estão atreladas às virtudes intelectuais, que são hábitos de funcionamento excelente do caráter que nos tornam excelentes conhecedores e pensadores e que nos permitem florescer intelectualmente. Nas tradições clássicas (seja aristotélica, estoica ou agostiniana) e nas modernas (especialmente Descartes e Kant), o discurso sobre virtudes intelectuais é dirigido pela questão de como indivíduos, em suas práticas epistêmicas, podem adquirir conhecimento, entendimento e sabedoria. Veja, assim – novamente, a despeito da enorme distância teórica que essas tradições possuem entre si –, que seu modo de conceber as virtudes intelectuais têm ao menos dois pontos comuns: (1) virtudes são propriedades da alma e, portanto, de indivíduos; e (2) virtudes intelectuais são atributos que permitem indivíduos serem bem-sucedidos em suas atividades de reflexão e investigação, e, assim, gerar conhecimento.

A literatura contemporânea sobre virtudes epistêmicas se enquadra bem nessas abordagens mais tradicionais. Virtudes estudadas e descritas como a humildade intelectual, a curiosidade, a inquisitividade, a mentalidade-aberta, a perseverança intelectual, o amor pelo conhecimento, entre muitas outras, são competências de indivíduos que os permitem ser bem-sucedidos em suas investigações e reflexões, e, assim, gerar conhecimento.

Entretanto, como muitos epistemólogos sociais apontam, a nossa atual sociedade da informação é altamente especializada, com campos e mais campos de saberes técnicos que se multiplicam a cada dia. Assim, enquanto lidamos com e acessamos uma enorme montanha de dados, impressões, ideias e informações cotidianamente, adquirimos tais produtos epistêmicos não tanto porque os produzimos, mas porque os consumimos. Isto é, a maior parte das informações relevantes que obtemos não são produtos das nossas próprias investigações, mas das investigações de outras pessoas e comunidades, que as disponibilizam (na forma de informação) e das quais podemos nos apropriar e utilizar das mais variadas maneiras. 

Isto é, a maior parte das informações relevantes que obtemos não são produtos das nossas próprias investigações, mas das investigações de outras pessoas e comunidades, que as disponibilizam (na forma de informação) e das quais podemos nos apropriar e utilizar das mais variadas maneiras.

Pense, por exemplo, em uma pessoa – Abel, vamos assim chamá-la – que não tem se sentido muito bem: dorme mal, está sempre cansado e sem disposição. Abel percebe que não tem cuidado de sua saúde e decide mudar isso. Não adota nenhum coach instagramer, mas vai ao médico e realiza uma série de exames. Os exames apontam que ele está quase com diabetes (pré-diabetes). Abel não produziu essa informação: foram os médicos e técnicos de laboratório que, com seus conhecimentos especializados, foram capazes de produzir e disponibilizar a informação. Ele consumiu a informação.

Agora, em posse desse conhecimento preocupante, Abel decide mudar sua dieta e começar a fazer exercícios físicos. Ele vai a um nutricionista para montar uma dieta adequada e baixa um aplicativo de atividades físicas para saber, de acordo com sua idade, peso, histórico de treinos e outros dados, qual deve ser seu treino inicial. Ambas as informações – nutricional e de treino – são muito importantes, porque informam as decisões práticas que Abel vai adotar: o que comprar no mercado, o que cozinhar, o que e quanto vai comer, quantas vezes vai treinar por semana, quais exercícios fará etc. Novamente, Abel não produziu essas informações, mas as consumiu.

Estaria Abel errado em consumir em vez de produzir essas (e outras) informações que são valiosas para sua vida? Parece evidente que não. Mesmo que quisesse, Abel não teria tempo nem conhecimento técnico para produzir as informações de que necessita. E é assim também com todos nós, visto que somos, em relação à maior parte dos bens intelectuais que utilizamos, mais consumidores do que produtores. E isso espelha o que acontece com quase todos os outros tipos de bens. Pense em comida: você mais planta e cultiva ou compra o que come? E roupas? E eletrônicos? A resposta é bastante evidente.

Essa constatação coloca um problema para a visão tradicional (e contemporânea) de virtudes intelectuais que apresentei no início da coluna: elas são virtudes que, embora valiosas para todas as atividades intelectuais, são particularmente direcionadas para a investigação racional e produção de conhecimento. É preciso que pensemos, entretanto, nas virtudes que nos tornam bons consumidores de informação e demais bens intelectuais. Se formos mal consumidores, pode ser que nosso prato epistêmico fique, sem que percebamos, cheio de comida podre. É isso, de fato, que tem acontecido com o consumo quase irrestrito de fake news, teorias conspiratórias e desinformação na dieta de muitos em nossa era da (des)informação.

Seguindo a proposta de Jonathan Matheson,¹ gostaria de sugerir três virtudes intelectuais relevantes para consumidores de informação e demais bens epistêmicos: a caridade intelectual, o discernimento intelectual e a sintonia apropriada.

A caridade intelectual é a competência de interpretar caridosamente falas, ideias, teorias e as visões de outras pessoas, atribuindo aos nossos interlocutores tanta inteligência e virtude intelectual quanto for racionalmente possível. Isso significa que, quando conversamos com alguém, quando lemos um livro ou assistimos a uma palestra, procuraremos ouvir as ideias e os argumentos em sua melhor versão possível, e não descartaremos sugestões só porque não nos soa bem ou vai contra alguma crença estabelecida.

Essa virtude é importante por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, em nossa era polarizada e inflamada, pessoas cotidianamente descartam visões e ideias não porque tais visões e ideias carecem de méritos epistêmicos, mas porque quem as profere “não joga no meu time”. É uma incapacidade de reconhecer boas e frutíferas perspectivas na boca daqueles que têm posições teóricas distintas da minha. Tal vício, evidentemente, nos furta de aprender um bocado de coisas e de refinar o nosso próprio pensamento; nos impede de consumir boas informações de fontes que rapidamente desacreditamos, e também como nos leva a consumir desinformação da boca de quem damos, às vezes, crédito demais.

Em segundo lugar, essa virtude nos auxilia a sempre aprender com a melhor versão possível das teorias e dos entendimentos que encontramos, o que vai contra a tendência de menosprezar ou diminuir ideias rivais. Isso acontece quando, por exemplo, alguém faz uma caricatura, ou monta um espantalho, dos argumentos ou abordagens de seu interlocutor, para então os estraçalhar como se estivesse demonstrando, assim, grande competência intelectual. A virtude da caridade intelectual é uma vacina contra esse tipo de atitude, pois nos motiva a sempre ouvir o outro do mesmo modo que gostaríamos de ser ouvidos, e de acolher a melhor versão das ideias mesmo que, depois, ofereçamos críticas e contrapontos. 

A virtude da caridade intelectual é uma vacina contra esse tipo de atitude, pois nos motiva a sempre ouvir o outro do mesmo modo que gostaríamos de ser ouvidos, e de acolher a melhor versão das ideias mesmo que, depois, ofereçamos críticas e contrapontos.

O discernimento intelectual é a virtude que nos torna competentes em discernir corretamente em quem confiar e em que fontes de informação podemos nos basear. Nós ouvimos pessoas, sintonizamos em canais de rádio, ligamos a TV, acessamos sites de notícias, habitamos as redes sociais, ouvimos podcasts, assistimos a vídeos – todos descarregando uma infinidade de informações sobre nós. Sabemos, é claro, que nem todos são igualmente confiáveis, nem todos possuem boas evidências para o que afirmam, nem todos dizem a respeito do que sabem ou estudaram, nem todos têm um compromisso com a verdade. Mas, então, em quem confiar?

É para isso que precisamos dessa virtude que nos permite, com base em um conhecimento crescente de sinais e marcadores de confiabilidade, discernir boas de más fontes de informação. Por um lado, não devemos ser exageradamente céticos e desconfiados a ponto de não acreditar em ninguém; por outro, não devemos ser excessivamente crédulos, tomando todos como detentores de boa vontade e compromisso com a verdade. Em certos ambientes e comunidades, nosso lado mais “cético” precisará ser ativado, e, em outros, podemos confiar mais livremente. É o discernimento intelectual que nos guiará em um julgamento adequado de quando e onde devemos pender para um dos lados. Como diz Benjamin McCraw, “confiar bem significa que eu não apenas almejo saber algo, mas também que meu alvo é demonstrar o tipo e a quantidade corretos de dependência com a apropriada atitude de confiança”.²

Por fim, a sintonia apropriada é a virtude que nos torna competentes em prestar atenção nas coisas certas, do modo certo, no momento certo; é ser sensível a características significantes e ignorar o que deve ser ignorado.³ É uma virtude intelectual que nos torna excelentes curadores de informação: dentro do mar – ou, melhor, do dilúvio – informacional característico de nosso momento histórico, não temos tempo nem energia cognitiva para nos apropriarmos de e avaliar tudo o que vemos e ouvimos. É preciso escolher ao que assistir, o que ouvir, no que se concentrar; do que vemos, ouvimos e lemos, precisamos julgar o que reter, sobre o que refletir, em que se debruçar.

Essa virtude, assim, é uma maestria de nossas disposições atencionais. A atenção determina quais possibilidades levamos a sério, que características do ambiente cognitivo nos chamam atenção e quais negligenciamos, e que projetos nos despertam a motivação. É notório como dois indivíduos com crenças parecidas e inteligência similar podem acabar se distanciando muito em seus padrões atencionais.

Como diz Georgi Gardiner, mesmo quando todas as alegações são verdadeiras, a informação se afoga na informação: alguém sempre pode esconder um objeto que está bem diante dos nossos olhos colocando-o em uma sala bagunçada. Nosso ambiente informacional atual parece muito com uma grande sala bagunçada. Por isso, competências para apropriadamente selecionar, elencar, arranjar, trazer para o primeiro plano, omitir e contextualizar informação são fundamentais para uma vida intelectual bem-sucedida, para que sejamos bons consumidores intelectuais.

competências para apropriadamente selecionar, elencar, arranjar, trazer para o primeiro plano, omitir e contextualizar informação são fundamentais para uma vida intelectual bem-sucedida, para que sejamos bons consumidores intelectuais.

Ressalto que a ênfase em virtudes para o consumo (ou dieta) apropriado de informação não diminui a importância das virtudes intelectuais clássicas. Tem o objetivo, entretanto, de adicionar às nossas prioridades, no que diz respeito ao cultivo do nosso caráter intelectual, competências pertinentes para um mundo cada vez mais inundado de informações e no qual nosso papel epistêmico é, mais do que produzir, consumir boas informações. 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Jonathan Matheson, Why It’s OK Not to Think for Yourself, 2024.

2. Benjamin McCraw, “Proper Epistemic Trust as a Responsibilist Virtue,” in Trust in Epistemology, ed. Katherine Dormandy, 2020, p. 197.

3. Georgi Gardiner, “Attunement: On the Cognitive Virtues of Attention,” in Social Virtue Epistemology, ed. Mark Alfano, Colin Klein e Jeroen De Ridder, 2022, p. 49.

Outras colunas de MARCELO CABRAL

Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo
Quem é que sabe?
Coluna_Postagem_Marcelo
Coluna_Postagem_Marcelo

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!