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Guilherme de Carvalho

A consciência peregrina e a autonomia intelectual cristã

25/08/2023

Quando pensamos sobre a missão científica da igreja, pensamos em como correlacionar a caracterização bíblica do serviço do povo de Deus no mundo com o universo acadêmico em geral e com essa forma singular de trabalho intelectual que é a vida científica. É uma tarefa ainda em aberto, em busca de uma linguagem adequada.

Na última coluna, recorremos ao missiólogo Stefan Paas¹ e sua proposta de recuperação das imagens bíblicas do peregrino e do sacerdote; e, por enquanto, temos focalizado especificamente a natureza peregrina da igreja, vivendo pacientemente no mundo, mas resistindo intencionalmente à absorção espiritual e ideológica dentro do sistema cultural. Essa consciência peregrina constitui para a comunidade cristã uma identidade separada, reconhecendo seu estado de exílio, mas nem por isso se tornando alienada ou irresponsável. Pelo contrário, apenas na medida em que a igreja se torna ela mesma é que poderá ser relevante.

O teólogo e filósofo de Notre Dame Stanley Hauerwas ganhou justa notoriedade ao estabelecer uma relação interna entre a narrativa cristã, a identidade da igreja e a ética da virtude. Hauerwas deixa claro, em primeiro lugar, que a cristologia da igreja é inseparável da história do evangelho, e que essa narrativa define tanto quem Cristo é quanto a natureza da própria igreja. Ocorre, no entanto, que a história de Jesus é inerentemente ética – é, até mesmo, uma forma singular de ética social –, e a igreja não é igreja enquanto não toma a história de Jesus como fundamento da sua identidade. 

Hauerwas recusa-se a separar o dogma calcedônico de uma apreciação da vida humana de Jesus, que, por sua vez, precisa ser revivida na igreja. O teólogo dirá que “a igreja é a forma organizada da história de Jesus… Jesus é a história que forma a igreja”. E, na medida em que a igreja vive sua própria história, o mundo poderá, por meio do contraste, conhecer a si mesmo como mundo. Ele toma consciência de si observando o contraste entre o que ele é e o que a igreja é, e a falsidade de seu modo de ordenar a vida.

na medida em que a igreja vive sua própria história, o mundo poderá, por meio do contraste, conhecer a si mesmo como mundo.

Nesse ponto, Hauerwas torna-se um pouco contraintuitivo: é claro que uma igreja moldada pela história de Jesus tem importância para o mundo; no entanto, ela não existe por isso, nem pode construir sua identidade sobre a relação que o mundo estabelece ou não com ela:

Nenhuma sociedade pode ser justa ou boa sendo edificada sobre a falsidade. A primeira tarefa da ética social cristã, portanto, não é fazer o “mundo” melhor ou mais justo, mas ajudar o povo cristão a formar a sua comunidade de modo consistente com a sua convicção de que a história de Cristo é uma representação veraz da sua existência [...] a tarefa social primária da igreja é ser ela mesma [...].²

Não é que a igreja “não possa” ou “não deva” melhorar o mundo, mas que esse não é o eixo da sua vocação; a tentativa de legitimar a igreja cristã como uma espécie de agência humanitária internacional é um exemplo cabal da consciência absorvida e digerida pela ordem do tempo, e que se perdeu de seu caráter escatológico. A igreja não pode ajudar o mundo enquanto perde sua identidade nele, imanentizando-se e admitindo o que costumo descrever como o “desvio teleológico” da missão cristã. Hauerwas chega a ser agudamente específico em suas teses sobre a natureza da igreja e a sua ética:

A igreja não existe para proporcionar um etos para a democracia ou qualquer outra forma de organização social, mas permanece como uma alternativa política a cada nação, testemunhando do tipo de vida social possível para aqueles que foram formados pela história de Cristo.³

Ironicamente, o mais coercivo aspecto da visão liberal do mundo é que nós somos livres para construir a nossa própria história. A história que o liberalismo nos conta é que nós não temos história, e como resultado, falhamos em notar quão profundamente essa história determina as nossas vidas […].⁴

Ao levarmos a sério o desafio hauerwasiano, nos colocamos em uma direção claramente contracultural. Consideremos por um momento os resultados recentemente publicados na sétima rodada da World Values Survey (2017-2022), ou “WVS-7”. Segundo a teoria normativa de desenvolvimento de Ronald Inglehart e Christian Welzel, o desenvolvimento econômico e a democracia têm relação com a evolução das sociedades, de sistemas tradicionalistas e coletivistas para sistemas racionalizados (ou, como eu diria, tecnicistas) e abertos para a igualdade e a autoexpressão individual: a sociedade “pós-materialista”. Décadas de pesquisa tem produzido uma confirmação robusta de que sociedades mais desenvolvidas e democráticas são mais individualistas e menos religiosas. O mais recente mapa cultural⁵ produzido pelo projeto é iluminador (veja a seguir):

Mapa cultural de Inglehart-Welzel 2023

Uma nota crítica ao modelo de Inglehart-Welzel é que ele pode autorizar uma naturalização desse processo, ignorando o quanto o desenvolvimento político e econômico é historicamente dependente de valores gestados no interior da tradição cristã, e não apenas como resultado da transformação capitalista – isso fica claro no fato de que os países de tradição cristã e, em particular, de histórico protestante, tem maior grau de liberdade individual do que os outros. Esse fato foi notado também pelo cientista político Samuel P. Huntington, de quem o modelo Inglehart-Welzel empresta sua descrição das grandes regiões culturais.

Outra crítica relevante é a adoção do avanço em racionalidade científica, industrial e em autoexpressão individual como um paradigma normativo, como se não trouxesse graves ambiguidades, tanto global quanto localmente. Em um artigo publicado em 2018 e reproduzido no Estadão, o professor do Insper Fernando Schüller comenta uma rachadura importante no modelo:

A visão de Inglehart e Norris tem sido predominante no mundo intelectual. Ela se organiza a partir de um dualismo sedutor. Há um polo positivo, feito de um conjunto de valores progressistas, entre os quais se incluem a matéria-prima identitária, e um polo negativo, feito de valores conservadores, carente de legitimidade democrática e movido pelo ressentimento e pela raiva. A tese se abstém de especular se a retórica identitária também pode expressar elementos regressivos e de algum modo representar um problema para a democracia.

Direção distinta toma a argumentação de Mark Lilla, em Once and a Future Liberal. Para ele, a radicalização recente dos movimentos identitários vai na direção inversa da rota sugerida por Inglehart e Norris. Sua dinâmica conduz o debate democrático na direção da fragmentação social e cultural e negação de valores universalistas. Lilla inverte a equação: haveria um universalismo progressista no passado, representado pelo New Deal, de Roosevelt, até a grande sociedade, de Lyndon Johnson. Tudo isso se perdeu no paroquialismo em que mergulhou o embate identitário contemporâneo. Haveria também aí, portanto, um traço regressivo.⁶

Por certo os cristãos não estão obrigados a serem liberais ou conservadores, e muito menos progressistas ou reacionários, como posição fundamental; pelo contrário, a liberdade cristã, conferida por sua esperança escatológica, é o que lhes permitirá o salutar distanciamento enquanto julgamos criticamente os desafios éticos contemporâneos. De modo geral, eu alegaria que a fé cristã é tanto uma influência histórica positiva para a civilização quanto funciona como sua consciência profética e crítica. Não é por acaso que a presença cristã tenha relação tanto com ruptura com o tradicionalismo e o coletivismo, quanto com a crítica presente aos excessos patológicos e regressivos – como diz Schüller – da democracia liberal.

De modo geral, eu alegaria que a fé cristã é tanto uma influência histórica positiva para a civilização quanto funciona como sua consciência profética e crítica.

No entanto, o fato de que vivemos no ambiente e no fluxo histórico em direção à hegemonia da democracia liberal, que inclui os vetores do tecnicismo e do individualismo expressivo, torna ainda mais urgente a tomada de consciência crítica desse mundo como o contexto imediato da missão cristã. Com isso, se impõe interrogações: o quanto a academia moderna faz parte desse movimento hegemônico? É válida a acusação de que ela seria – do que o próprio modelo normativo de Inglehart-Welzel seria um exemplo – majoritariamente afirmativa desse movimento? O quanto a própria igreja cristã reproduz os vícios desse processo?

Tudo isso é muito importante, mas exemplifica um perigo que ronda a missão cristã. Ela não pode contribuir efetivamente para a solução ou para a atenuação desses problemas se perder sua identidade na mera afirmação ou na mera negação de megatendências culturais ou civilizacionais. Pelo contrário, é precisamente na recuperação de sua consciência peregrina que a igreja pode ajudar o mundo.

[...] a igreja é radicalmente não democrática se por democrática dizemos que ninguém sabe a verdade e que, assim, a opinião de todos conta igualmente. Cristãos não acreditam que não existe verdade; antes, a verdade pode apenas ser conhecida por meio do conflito. É exatamente por isso que a autoridade na igreja reveste aqueles que aprendemos a chamar de santos em reconhecimento à sua apropriação mais completa dessa verdade.

De modo direto, o caminho pelo qual a igreja deve sempre responder ao desafio da nossa política é ser ela mesma. Isso não envolve uma rejeição do mundo, ou um abandono do mundo; antes, é uma lembrança de que a igreja deve servir ao mundo em seus próprios termos. Devemos ser fiéis de nosso próprio modo, mesmo que o mundo compreenda isso como infidelidade e deslealdade. Mas a primeira tarefa da igreja não é suprir o mundo com teorias de legitimidade governamental ou mesmo sugerir estratégias de melhoramento social. A primeira tarefa da igreja é exibir em nossa vida comum o tipo de comunidade possível quando a verdade, e não o medo, governa as nossas vidas.⁷

E o modo da igreja construir sua adesão à verdade, sua vida interna e sua identidade própria é sendo sustentada e tendo sua imaginação enraizada “nas narrativas que encontramos na escritura”.⁸ Extrapolando um pouco a partir de Hauerwas, eu diria que os cristãos na ciência precisam estar em igrejas locais, ajudando a edificar estas ou plantando novas igrejas, e tendo suas vidas estruturadas a partir da leitura comum das Escrituras. Essa atividade dará aos cristãos na ciência a consciência peregrina e comunitária necessária para um testemunho genuíno. Do ponto de vista intelectual, a consciência peregrina forneceria justamente o distanciamento espiritual e moral necessário à clareza de pensamento. Não é apostando na afirmação ou na negação do mundo moderno que os cristãos encontrarão seu caminho, mas no caminho de Abraão, o peregrino.

Não é apostando na afirmação ou na negação do mundo moderno que os cristãos encontrarão seu caminho, mas no caminho de Abraão, o peregrino.

É claro que, em nosso caso em particular, esse compromisso trará impactos imediatos em nossa relação com o mundo. Poderíamos dizer, por exemplo, que, na medida em que se recusam a construir suas próprias histórias individuais – como denuncia Hauerwas – e pensam de modo mais sociocêntrico, e na medida em que valorizam mais a tradição e a comunidade, pensando de modo mais orgânico e menos tecnicista, os cristãos poderão ser verdadeiramente o sal da terra em democracias liberais. Pensando comunitária e tradicionalmente sobre as questões éticas contemporâneas, tenderemos a construir um alinhamento contracultural. O sal precisa salgar o mundo, e o fará tão bem quanto for capaz de ser realmente sal. 

Mas poderíamos também dizer que, à medida em que os cristãos priorizam a fidelidade ao evangelho sobre o tradicionalismo e o coletivismo, evitarão movimentos meramente reacionários contra a democracia liberal, incapazes de reconhecer as “crateras históricas” que a influência positiva do cristianismo deixou na constituição da modernidade. Essas coisas não deveriam acontecer, no entanto, como programas calculados visando à relevância, mas sim como efeito da fidelidade cristã ao evangelho.

Ora, essa consciência peregrina tem um aspecto profundamente prático: envolve adesão intelectual à Bíblia e adesão comunitária à igreja. Não basta que ele seja individualmente sagaz, inteligente ou virtuoso; é preciso que o intelectual-peregrino pertença à igreja mais do que pertence ao mundo. Sem isso, ele talvez se assemelhe a uma espécie de Montesquieu piedoso, mas não terá o desprendimento definitivo e a coragem necessários à sua tarefa, que não é apenas intelectual, mas cristã.

Eu gostaria de enfatizar o seguinte ponto: a ABC² não é uma igreja; trata-se de uma comunidade-ponte, uma forma de sociedade transversal para promover a comunicação do campo religioso cristão com o campo científico. Mas isso não significa que possamos abstrair nossa atividade da realidade que é a igreja universal e local, nem que possamos ignorar a necessidade de uma consciência propriamente eclesiástica, tampouco que a singularidade da ética cristã possa ser abstraída de nosso testemunho acadêmico. Uma comunidade cristã de regime transversal como a nossa deve se lembrar a todo momento de que o pressuposto e ponto de partida concreto para o diálogo entre fé e ciência não é o simples cultivo da vida intelectual individual, mas sim a existência comunitária cristã.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Stefan Paas, Pilgrims and Priests: Christian Mission in a Post-Christian Society, 2019.

2. Stanley Hauerwas, A Community of Character: Toward a Constructive Christian Social Ethic, 1981, p. 10.

3. Hauerwas, 1981, p. 12.

4. Hauerwas, 1981, p. 84.

5. The Inglehart-Welzel World Cultural Map 2023. Clique aqui para acessar.

6. Fernando Schüler, “Democracia, Identidades, e a Ilusão do Consenso”, Estado da Arte, revista de cultura, artes e ideias, 15/03/2019. Clique aqui para acessar. 

7. Hauerwas, 1981, p. 85.

8. Hauerwas, 1981, p. 69.

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