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Guilherme de Carvalho

Profetas na Academia?

28/03/2024

Nas minhas andanças buscando modelos, recursos e networking para a nossa embaixada entre o mundo acadêmico e a igreja, tive o privilégio de conhecer pessoalmente alguns pensadores cristãos que, além da vida acadêmica, assumiram postos políticos em seu país: Bob Goudzwaard, o economista, Egbert Schuurman, o filósofo da tecnologia, Roel Kuiper, o historiador, e Maarten Verkerk, também filósofo moral. Todos eles pensadores reconhecidos em seus campos e que ocuparam sequencialmente cadeiras no Senado holandês.

Uma das conversas mais marcantes que já tive sobre vocação intelectual cristã se deu na casa do Dr. Schuurman, precisamente no dia 20 de agosto de 2016. Schuurman fora o sucessor Goudzwaard na câmara alta e o líder da união conservadora que negociou diretamente com o chefe da oposição a liberação do casamento igualitário na Holanda, o primeiro país do mundo a legalizar essa condição. A missão de Schuurman era a de atingir um acordo que permitisse aos cristãos manterem suas posições sobre o tema de forma pública e institucional, garantindo um arranjo pluralista. Schuurman havia se interessado por alguns esboços meus sobre o tema da “revolução afetiva”, repassados a ele pelo Dr. Wim Rietkerk, à época líder de L’Abri na Holanda e vereador em Utrecht, e enveredamos pelo assunto das responsabilidades públicas do intelectual cristão. 

Lembro-me do Dr. Schuurman citar Dooyeweerd, Rookmaaker e outros acadêmicos ou apologistas importantes, recomendando seu estilo de engajamento intelectual, que não apenas solucionava problemas e trazia contribuições criativas, mas construía pontes e mostrava como a fé iluminava seus campos. 

E então ele usou uma expressão totalmente fora das minhas expectativas: “em seu tempo, esses homens foram intelectuais proféticos”. Com alguma surpresa eu devolvi: “como assim, proféticos?” Ele se inclinou na poltrona e reafirmou enfaticamente o ponto. Não me lembro das palavras exatas, mas a força do que ele disse impressionou minha mente: “sim, proféticos! Sua erudição não era algo escolástico… eles expunham de modo incisivo e pertinente à realidade espiritual do mundo, da cultura, iluminavam a sua condição. Eu sinto falta disso hoje… precisamos disso com urgência, de intelectuais proféticos, que interpretem e desafiem o coração da sociedade contemporânea!”

Eu nunca havia pensado na obra de Herman Dooyeweerd como algo “profético”, mas aos poucos a visão de Schuurman se esclareceu para mim. Por “profetismo”, o velho filósofo não pensava, de forma alguma, no mero denuncismo moral, que no imaginário evangélico comum tornou-se um equivalente da profecia – entendimento absurdo, em todo caso, e ainda mais com a emergência da “máquina do caos” das mídias sociais. Tratava-se, entretanto, de luz; mas não apenas num sentido teorético, de capacidade explanatória, mas do tipo muito especial de luz que revela o estado espiritual da cultura e que oferece esperança.

O caso é que tal tipo de insight, que “acerta” em um nível um pouco diferente da mera competência técnica, é coisa que realmente depende de um carisma, uma graça divina particular, que poderia se parecer, em alguns momentos, com o “gênio”. Schuurman chegou a mencionar Francis Schaeffer, não enquanto acadêmico, que ele não era, mas como exemplo humilde desse tipo de leitura profética da realidade, e que em Dooyeweerd, a seu tempo, combinava maturidade técnica, contribuição criativa e uma estranha capacidade de atingir a artéria do momento histórico.

O caso é que tal tipo de insight, que “acerta” em um nível um pouco diferente da mera competência técnica, é coisa que realmente depende de um carisma, uma graça divina particular, que poderia se parecer, em alguns momentos, com o “gênio”.

Enquanto ouvia o homem, segurando no colo a cópia original da tese que se tornaria a sua obra magna, Techniek en Toekomst (Tecnologia e futuro), me dei conta de que a obra do próprio Schuurman refletiu esse padrão e, na verdade, os trabalhos de toda aquela série de intelectuais cristãos públicos, todos neocalvinistas aderentes da wetsidee filosofie (ou filosofia da ideia cosmonômica). Goudzwaard, pouco antes dele, havia realizado o esforço sem paralelo de interpretar as transformações econômicas da modernidade até a vitória do capitalismo de consumo a partir de um fundamento espiritual e religioso, oferecendo uma refinada e inovadora exposição da ideologia do progresso. Sua obra combinava história econômica, filosofia e teologia. Schuurman, por sua vez, atualizou os insights anteriores de Dooyeweerd e de Goudzwaard em uma nova obra que ajudou a fundar todo o campo da filosofia da tecnologia na Holanda, em um momento em que pouca gente pensava sobre o assunto. E nessa obra, mais do que apenas descrever bem a natureza da tecnologia, ele conseguiu expor a dimensão espiritual e religiosa no coração do trabalho criativo humano dentro da sociedade moderna.

Eu fui sobremaneira influenciado também por outra cepa importante do pensamento cristão moderno ligada ao evangelismo britânico e ao movimento de fé e ciência nesse país, mas me pareceu, naquele momento, que o estilo intelectual dos reformacionais era muito mais penetrante nesse sentido do que o dos britânicos, ainda que estes fossem campeões na qualidade acadêmica. Mais do que meramente produzirem bons trabalhos de integração de fé, filosofia e ciência, o que Dooyeweerd e uma corrente particular de seus herdeiros estabeleceram foi uma espécie de tradição de interpretação profético-intelectual da cultura ocidental. 

Mais do que meramente produzirem bons trabalhos de integração de fé, filosofia e ciência, o que Dooyeweerd e uma corrente particular de seus herdeiros estabeleceram foi uma espécie de tradição de interpretação profético-intelectual da cultura ocidental.

Exemplares desse tipo extraordinário de trabalho intelectual existem, é claro, em muitos países, tradições teológicas e níveis de alcance. Eu incluiria aqui, a título de exemplo, Teologia e teoria social, do anglicano John Milbank, ou Depois da virtude, do católico Alasdair MacIntyre, ou, Uma era secular, do também católico Charles Taylor, ou História e escatologia, do anglicano N. T. Wright, ou A ascensão e triunfo do self moderno (The Rise and Triumph of the Modern Self), do reformado Carl Trueman, ou, ainda, Mudar o mundo (To Change the World), do evangélico James Davison Hunter. E há muitos autores mais populares que combinam o elemento acadêmico e a veia profética. 

Minha intenção não é, no entanto, propor uma lista de clássicos para a leitura! Tenho apenas dois objetivos com o leitor: primeiro, apontar esse estilo de trabalho intelectual, que não apenas é penetrante do ponto de vista analítico e crítico, mas que realiza um trabalho de natureza distintamente espiritual, expondo, por um lado, as profundezas do coração, e, por outro, anunciando a necessidade, a possibilidade e mesmo a proximidade da presença divina em alguns casos.

Meu segundo objetivo é exaltar a dimensão comunitária desse trabalho profético-intelectual, tão bem exemplificado nos melhores anos da tradição neocalvinista. Essa dimensão de tradição ou escola tornou-se menos comum, uma vez que boa parte dos intelectuais trabalha sozinho. Há exceções notáveis, como o caso mencionado da tradição wetsidee, cobrindo várias gerações, da Ortodoxia Radical, de John Milbank (que praticamente já se dissolveu), dos apologetas pressuposicionalistas nos Estados Unidos, dos teólogos latino-americanos da Missão Integral e da corrente de escritores do L’Abri, que desde os anos 1960 explora a verdadeira espiritualidade cristã. 

Na próxima coluna, vamos nos debruçar sobre a dimensão profética do testemunho cristão de um ponto de vista bíblico teológico e, também, sobre algumas de suas implicações para os cristãos que peregrinam na academia.

 

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