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Guilherme de Carvalho

A Missão Científica da Igreja

Testemunho e Demonstração

09/06/2023

Em nossa última coluna discutimos a questão das motivações do diálogo evangélico entre fé e ciência. Nosso ponto foi que a questão seria fundamentalmente missiológica: a tarefa da evangelização exige um esforço simultâneo de demonstração cristã. A missão é integral, abrangendo o anúncio do evangelho e seus desdobramentos éticos em todas as áreas da vida, incluindo também os campos científicos modernos. Segundo os termos do pacto de Lausanne (1974), afirmamos tanto o primado da evangelização na missão, quanto o seu obrigatório escopo integral.

Uma vez acolhendo essa definição ampliada da missão cristã, abre-se imediatamente a questão sobre a natureza dessa “demonstração”. Alguns missiólogos e ativistas cristãos sustentam que a presença cristã visa transformar as condições históricas, manifestando a justiça do reino de Deus. Essa visão transformacional está presente, no âmbito evangélico, nas ideias de N. T. Wright, no movimento latino-americano de missão integral e na missiologia de Ruth Padilla DeBorst (filha de René Padilla) e na teologia do neocalvinismo holandês, para citar uns poucos. De um modo menos rigoroso, é a missiologia de muitas igrejas.

Nesse campo eu me inclino a concordar com os argumentos do missiólogo holandês Stefan Paas, professor J.H. Bavinck de Missiologia e Teologia Intercultural da Universidade Livre de Amsterdam, em “Pilgrims and Priests” (2019). No entendimento do Dr. Paas, a missiologia da transformação é ainda devedora de uma ideologia da cristandade, sonhando com uma retomada do domínio cristão, ainda que segundo os termos da moderna democracia liberal, e de algum modo é nociva à missão cristã.

Minha questão é essa: seria útil chamar nossas atividades testemunhais de ‘transformacionistas’ também, ou deveríamos restringir essa terminologia à própria obra de Deus? Um problema imediato que emerge do uso desse termo para a nossa missão é que ele pode levar à instrumentalização do testemunho. Se uma ‘sociedade transformada’ ao invés do testemunho fiel é o propósito da missão, todas as obras separadas de amor e serviço ao próximo serão justificadas com base na sua contribuição para um mundo diferente... Como ocorre com o conceito de ‘crescimento’ na teoria de crescimento de igreja, o conceito de ‘transformação’ nesse paradigma pode sufocar a missão autêntica. Tudo passa a ser sobre transformação cultural! Mudar o mundo! Quando esse ideal estratégico começa a dominar as missões, ele inevitavelmente levará à corrupção da missão, e possivelmente à exaustão dos cristãos.¹

No entendimento do Dr. Paas, a missiologia da transformação é ainda devedora de uma ideologia da cristandade, sonhando com uma retomada do domínio cristão, ainda que segundo os termos da moderna democracia liberal, e de algum modo é nociva à missão cristã.

O problema levantado pelo missiólogo diz respeito, primeiramente, à questão do foco da missão. Como vimos, o Pacto de Lausanne reconhece o primado da evangelização, mesmo quando afirma a integralidade da demonstração cristã. O argumento do Dr. Pass não nega essa integralidade, mas antes a questão dos fins. O foco na transformação pode alterar o propósito da demonstração cristã, tornando o testemunho do evangelho um momento subsidiário da busca cristã pelo florescimento humano. Esse é o problema do “desvio teleológico” na missiologia moderna, que já apontamos em outra ocasião.²

Mas esse não é o único problema. Ecoando críticas anteriores, e particularmente a do sociólogo americano James Davison Hunter, em To Change the World, Paas observa: “Outro problema é que a ‘transformação’ e a ‘mudança’ não são palavras inocentes; de um modo ou de outro elas estão associadas ao exercício de poder.”³

Stefan Paas é muito crítico da ideia de uma “Cristandade”, ou de um “domínio cristão”, de um modo que me parece exagerado; nesse ponto me inclino a uma visão mais positiva, como a sustentada por Oliver O’Donovan ou por Peter Leithart.⁴ Ainda assim, concordo de coração com a tese de que o domínio não pode ser buscado. Não pode ser uma meta estratégica, um plano de poder. E as missiologias da transformação correm o risco de colocar a eficácia e a “relevância” histórica como critério de julgamento e decisão, acima do compromisso com a fidelidade. E, nesse ponto, elas podem se tornar indistinguíveis de projetos seculares de poder. Pois o fato é que, para transformar, é quase sempre necessário controlar. Isso está por trás de uma forma doentia de politização que acometeu o discurso missiológico das igrejas nos últimos anos.

Pois bem: qual a relação dessas questões com a missão da ABC² e de movimentos cristãos voltados para o campo científico e para a academia? Proponho mantermos nossa imaginação e planejamento dentro de dois limites bem definidos: não submeter a evangelização à demonstração, e não submeter a demonstração à relevância. Fidelidade deve ser a palavra-chave – ou, para empregar a feliz expressão do Dr. Hunter, a “presença fiel”.⁵

Em termos muito práticos, isso significa que movimentos de diálogo de fé e ciência não precisam se preocupar em idealizar seu trabalho, buscando dominar e transformar o campo científico. O objetivo da presença cristã na universidade não é controlar, mas abençoar e sinalizar. Além disso, o estudante, o acadêmico e o cientista cristão devem, sim, buscar o mais alto padrão de qualidade e dedicação em seus esforços, mas o testemunho cristão não depende de sermos os melhores em nossos campos, pois alçar essa meta a um objetivo missionário tornaria os cristãos doentiamente competitivos e arrogantes. O objetivo precisa ser, antes, a promoção do bem comum acadêmico-científico de um modo digno do evangelho.

isso significa que movimentos de diálogo de fé e ciência não precisam se preocupar em idealizar seu trabalho, buscando dominar e transformar o campo científico. O objetivo da presença cristã na universidade não é controlar, mas abençoar e sinalizar.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Stefan Paas, Pilgrims and Priests: Christian Mission in a Post-Christian Society, 2019, p. 80.

2. De Carvalho, Guilherme, A Teologia da Missão e a Linguagem da Transformação. Blog Ultimato, 2015. Clique aqui para ler.

3. Paas, 2019, p. 81.

4. Leithart, Peter, Em Defesa de Constantino: o Crepúsculo do Império e a Aurora da Cristandade, 2020.

5. James Davison Hunter, To Change the World The Irony, Tragedy, and Possibility of Christianity in the Late Modern World, 2010, p. 95-6.

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