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Guilherme de Carvalho

Peregrinos na Academia

14/07/2023

As igrejas cristãs têm uma missão com relação ao mundo científico e acadêmico: anunciar o evangelho de Cristo e demonstrar a ética do evangelho nesse universo. O núcleo kerigmático dessa missão se dá nos moldes tradicionais: por círculos de leitura das Escrituras, pelo diálogo de fé e ciência e por debates intelectuais. E aqui pode haver grande proveito para as igrejas, na medida em que os padrões acadêmicos as desafiam, exigindo qualidade intelectual, mente crítica e humildade na defesa de suas crenças, segundo as melhores regras do pensamento e do discurso.

Mas, segundo tenho argumentado nessa coluna, o testemunho deve ser acompanhado de demonstração. E a demonstração deve ser consonante, nas sociedades complexas, com os bens internos a cada círculo de associação – os bens e capitais inerentes, no caso, à vida científica e acadêmica. Como ilustração: o cristão em missão na universidade – tendo em mente o caráter tautológico da declaração “cristão em missão” – deve demonstrar amor no sentido geral, no trato das pessoas, na construção da amizade, no espírito pacificador e na consideração pela justiça. Mas também o amor no sentido específico, como amor pelos bens internos da ciência: o próprio conhecimento, a expertise, a tradição de pesquisa, os símbolos da ciência, suas grandes autoridades e até mesmo o cuidado com os equipamentos, laboratórios e insumos.

Hoje, pretendo avançar um pouco mais na discussão do ethos dessa missão: a proclamação-demonstração deve expressar um tipo cruciforme de espiritualidade missional. Uma espiritualidade da fraqueza. Recorro primeiramente, como se poderia esperar, ao apóstolo Paulo, rememorando a sua primeira visita missionária à cidade de Corinto: “Estive convosco em fraqueza, em temor e em grande tremor” (1Co 2.3). De algum modo a fraqueza de Paulo o ajudou a manter a centralidade da cruz e a dependência do poder de Deus.

Um caminho para recuperar esse sentido da fraqueza é a incorporação mais atenta das metáforas bíblicas para a obra cristã. Discutindo o fato de que vivemos em uma sociedade pós-cristã, o Dr. Stefan Paas sugere revisitarmos a linguagem bíblica da peregrinação, tão importante para os cristãos primitivos e praticamente esquecida no evangelicismo contemporâneo. Como encontramos na 1a. carta de Pedro: “Amados, exorto-vos como a peregrinos e estrangeiros a vos absterdes dos desejos carnais, que combatem contra a alma” (1Pe 2.11). Parece que a espiritualidade saudável exige um grau de “descolamento” espiritual do sistema do mundo e uma experiência de não pertencimento.

De fato, o “exílio” cultural do cristianismo é uma realidade cada vez mais premente, e a última coisa de que precisamos agora é de pollianismos, negando inutilmente a gravidade do problema. Ainda assim, em vez de tão somente lamentarmos o fim da cristandade, é crucial compreendermos o propósito divino para o seu povo exilado. Paas recorre a Pedro para esclarecer a postura que o momento demanda:

Ao aceitar um status de estrangeiros, os Cristãos serão capazes de redescobrir a sua verdadeira identidade no mundo. O antigo termo “peregrino”, embora não usado por Pedro, pode ser melhor para denotar o sentido positivo de ser um estranho. Essa palavra é um claro aviso contra todos os sonhos missionários de “mudança cultural” e “crescimento da igreja”... Como C. S. Lewis disse de modo tão contundente, “Se você ler história descobrirá que os Cristãos que fizeram mais pelo mundo presente foram precisamente aqueles que pensavam mais no vindouro”... Os cristãos primitivos não tentaram edificar uma cultura cristã...¹

O ponto do Dr. Paas não é enfraquecer o impulso missionário nem a integralidade da missão – como ele deixa claro depois –, mas considerar de modo prático o significado da vida peregrina, que é “complexa, esperançosa e constantemente moldada pela negociação”. É um tipo de existência que convive com certa precariedade, que é desafiada pela ansiedade e que guarda profunda consciência de sua fraqueza. O exilado sabe que não pertence, e por isso se sabe fraco; mas que nem por isso é um desesperado, porque seu horizonte de esperança o sustenta na jornada.

O exilado sabe que não pertence, e por isso se sabe fraco; mas que nem por isso é um desesperado, porque seu horizonte de esperança o sustenta na jornada.

Essa consciência peregrina é importante para o cristão que jornadeia no mundo acadêmico contemporâneo. Não me entendam mal: a ressurreição de Cristo e a presença do Espírito de Deus na Igreja nos dizem que ela será vitoriosa e que o evangelho prevalecerá. Não há virtude, também, em certo estilo de intelectual cristão que acolhe o cinismo com relação à contribuição histórica do cristianismo e cuja insegurança religiosa o impede de pensar em defesa da sua fé. A boa “fraqueza” reside, antes, no entendimento de que o cristianismo não precisa ser hegemônico nem responder a todas as questões para que seja defensável e capaz de cumprir a missão. Como os cinco pães e dois peixes bastaram, e como bastaram Daniel e seus amigos, bastará a cada geração a fidelidade do povo de Deus ali onde está, mesmo que seja na poderosa Babilônia.

A consciência de fraqueza e de não-pertencimento não impede a constituição de sólidas comunidades de testemunho; pelo contrário, a experiência coletiva de exílio pode reforçar sua identidade e refinar a sua contribuição. Uma comunidade estrangeira corre dois riscos opostos: perder a sua identidade ou se fechar na guetização. Essa pressão dupla pode rasgar uma comunidade, mas também pode revelar o caráter antifrágil do verdadeiro cristianismo, reforçando justamente o seu caráter missional e testemunhal.

Creio que essa pressão dupla pode ajudar os cristãos a terem mais clareza sobre as suas prioridades: menos políticas e muito mais sacerdotais. Sua função se entende como representativa, testemunhal e doxológica. Eles estão ali para serem um sinal e um ponto de referência. Não falam a partir do centro de poder, mas da margem, e convivem com essa realidade. 

A consciência de fraqueza e de não-pertencimento não impede a constituição de sólidas comunidades de testemunho; pelo contrário, a experiência coletiva de exílio pode reforçar sua identidade e refinar a sua contribuição.

Essa disposição peregrina é útil de diversas formas. Ela ajudará o acadêmico ou cientista cristão, por exemplo, a não vender seus princípios de fé em nome da ascensão na carreira ou para se proteger das críticas dos colegas. Ela permitirá que ele reconheça a independência da autoridade da Igreja em relação à autoridade científica. Ela também o fará se inclinar para o trabalho em equipe com outros irmãos de fé dentro do mundo acadêmico. Por fim, ela permitirá que eles experimentem contentamento com todos os pequenos avanços, sem a pretensão de que o intelectual cristão seja a última bolacha do pacote.

Stefan Paas pensa que os cristãos desaprenderam o testemunho porque se acostumaram a falar a partir do centro. Honestamente, acho que isso se aplica ao mundo europeu, anglo-saxão e a países como a Holanda, mas não ao Brasil, no qual os evangélicos nunca estiveram bem-posicionados nos grandes centros acadêmicos e apresentam índices educacionais mais baixos do que o restante da população. Mesmo assim, a observação vale como um conselho “dos mais velhos”, por assim dizer. Enquanto buscamos praticar a presença fiel, não devemos nos incomodar com a fraqueza; ela não é o nosso maior inimigo. Pois, como dizia o apóstolo Paulo, “quando sou fraco, é que sou forte”.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Stefan Paas, Pilgrims and Priests: Christian Mission in a Post-Christian Society, 2019, p. 170.

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