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Guilherme de Carvalho

Peregrinos na academia: e quanto à “guerra cultural”?

29/09/2023

Em sua obra The New Class War: Saving Democracy from the Metropolitan Elite [A nova guerra de classes: salvando a democracia da elite metropolitana], Michael Lind apresentou uma análise arguta da crise democrática que acometeu diversos países ocidentais nos últimos anos, com a ascensão do neopopulismo, principalmente (mas não exclusivamente) de direita. Sua tese básica é a de que há décadas teve início uma revolução de cima para baixo, pilotada por uma elite administrativa (managerial elite) que provocou, eventualmente, um backlasch populista de baixo para cima, por uma classe trabalhadora desempoderada e defensiva.¹ A classe trabalhadora, nos países mais ricos, rejeita a imigração, o multiculturalismo e certos aspectos da globalização, os quais reduzem seu poder político e eleitoral efetivo, com o sentimento de que a democracia não funciona. Essa reação das massas conduz, naturalmente, ao populismo demagógico, que seria muito mais um sintoma do adoecimento da democracia. A verdadeira doença seria o neoliberalismo tecnocrático.

Mas o que seria a nova burguesia na guerra de classes pós-moderna? “Elites estabelecidas nos setores corporativo, financeiro, governamental, midiático e educacional”.² Essas “elites nacionais com credenciamento universitário” controlam estrategicamente a atual economia mista de corporações burocráticas, governo burocrático e organizações sem fins lucrativos, circulando entre esses três setores.³ Elas não “possuem” o capital necessariamente; capitalistas pós-modernos fazem parte do sistema, mas a maior parte da nova elite é composta por profissionais, burocratas e empreendedores com uma mentalidade muito particular: são cosmopolitas multiculturalistas, desprezando o enraizamento local e cultural dos trabalhadores. Michael Lind até mesmo relaciona a sua tese com a de David Goodhart, que contrasta o “localismo comunitário” dos somewheres com o “carreirismo individualista” dos anywheres. A elite metropolitana de Lind pode também ser chamada de “classe cosmopolita”, considerando seu habitat nas grandes cidades globais, seu etos criativo e inovador, e sua adesão a um imaginário social individualista-expressivista, desconectado das realidades socioeconômicas e morais do proletariado cultural.

A composição da elite cosmopolita é um fenômeno internacional e estrutural. Musa Al-Gharbi, professor da Columbia University, escreveu recentemente para a prestigiada Compact especificando ainda mais o nicho de atividades dessa classe como a “economia do conhecimento”, e seus integrantes como “profissionais do conhecimento”. Esse grupo, que se mantém recebendo os maiores benefícios econômicos, tem influência desproporcional no processo político, combinando um progressismo que rompe a força política das comunidades locais e do proletariado cultural por meio do identitarismo político e, desse modo, se justifica como síntese de justiça e liberdade econômica. 

Aqueles que trabalham em campos como a tecnologia, as finanças, a educação, o jornalismo, as artes, o entretenimento, o design e as consultorias (e os estudantes que aspiram a essas profissões) se tornaram muito mais “radicais” politicamente nos últimos 10 anos, e crescentemente intolerantes com o dissenso. Essas mudanças foram especialmente pronunciadas em assuntos ligados à ´identidade´ (isto é, sexualidade, raça e gênero).⁴

A classe cosmopolita está na confluência entre formação universitária, posição social e a função de liderança na produção e transformação criativa dentro da economia do conhecimento. Poderíamos dizer que ela controla os meios de produção simbólica – daí falarmos em “elite cosmopolita” e “proletariado cultural”. Isso não significa, naturalmente, que essa elite controle todo o capital financeiro, nem que o proletariado cultural seja uniformemente composto de trabalhadores; a questão é que o controle simbólico serve à manutenção do controle político e econômico. Mas quem autoriza todo esse sistema?

A Revolução Industrial não substituiu o sistema de classes, no Ocidente, com sociedades meritocráticas e sem classes. Ele substituiu os sistemas de classe antigos e primordialmente hereditários consistindo de proprietários de terras e camponeses com um novo sistema de classes, primordialmente hereditário, consistindo de administradores e proletários, nos quais os graus acadêmicos são os novos títulos de nobreza e os diplomas os novos brasões de armas.⁵

A classe cosmopolita está na confluência entre formação universitária, posição social e a função de liderança na produção e transformação criativa dentro da economia do conhecimento.

Pois bem; assumindo o acerto básico da tese de Michael Lind, isso teria implicações imediatas para a consciência crítica universitária em geral. Mas de que modo ela distorce ideologicamente a percepção do sistema pós-moderno? 

Lind oferece um interessante exemplo do etos cosmopolita ao mencionar as prioridades profissionais típicas da classe. Para a elite, a mobilidade geográfica é a norma indiscutível, ao passo que o proletariado não vê isso da mesma forma. A maior parte dos estadunidenses vive dentro de 18 milhas de distância de suas mães, 57% nunca viveu fora de seu estado, e 37% passam a vida inteira em suas cidades originais – e isso num país de elevada riqueza, mobilidade social e cosmopolitismo. A realidade daqueles com grau universitário ou participantes na economia do conhecimento é muito diferente, no entanto.

Refletindo o sacrifício dos compromissos familiares às ambições de carreira que é característica de muitos profissionais altamente educados e ambiciosos da elite (overclass), uma pesquisa em vinte e quatro democracias industriais avançadas mostrou que, comparados às pessoas sem educação superior, os indivíduos com educação universitária têm maior tendência de descrever crianças como um “peso” em vez de uma “alegria” [...] Os hubs urbanos são crescentemente populados por indivíduos sem nenhuma criança. De acordo com o American Community Survey, em 2016 havia mais cachorros do que crianças em São Francisco. Escrevendo para a The Atlantic em 2019, Derek Thompson concluiu: “O Futuro da Cidade é sem Crianças”.⁶

O que Lind chama de “hubs” são regiões geográficas nas grandes cidades globais populadas por pessoas com educação universitária superior e ocupados com a economia do conhecimento, dentro das burocracias corporativa, governamental e no terceiro setor. 

A observação de Lind ressalta a natureza do imaginário social habitado pela elite cosmopolita: basicamente individualista-expressivista; daí seus interesses pouco comunitários. Ora, segundo a nova teoria da secularização do cientista político Ron Inglehart, uma ênfase maior na autoexpressão individual significa maior hostilidade a regras de fertilidade tradicionais, sustentadas pela religião, e um movimento acelerado em direção à secularização e ao abandono da religião organizada.

[...] quando uma sociedade atinge um nível suficientemente alto de segurança física e econômica, de modo que os mais jovens cresçam assumindo que a sobrevivência está garantida, isso abre o caminho para uma mudança intergeracional de normas pró-fertilidade a normas de escolha individual que encorajam a secularização [...] a mudança de normas pró-fertilidade para normas de escolha individual alcançou um ponto de inflexão no qual pressões conformistas revertem a polaridade e aceleram mudanças antes resistidas.⁷

Segundo Inglehart, mudanças de costumes, jurisprudência e legislação em campos como a liberação sexual, casamento igualitário, igualdade de gênero no trabalho, e aborto seriam exemplos dessas mudanças sociais que caracterizam uma sociedade com maior autonomia individual e menor restrição coletiva da expressão individual. Dada a função universal da religião como organizadora da pró-socialidade e da economia reprodutiva humana, essas mudanças levariam necessariamente à secularização.

No entanto, essas transformações não podem ser naturalizadas. O que ocorre é que a economia do conhecimento, gerida pela elite cosmopolita, é posta a serviço de um processo de transformação moral da sociedade, no sentido de reproduzir sua lógica individualista e expressivista, que é legitimadora do sistema de vida dessa mesma elite. Ron Inglehart tem uma visão basicamente positiva desse processo como um resultado bom e necessário do desenvolvimento econômico e político das democracias liberais, mas a visão crítica de Michael Lind sugere que esse processo é, mais do que o mero avanço civilizatório, a construção de uma hegemonia de classe, que vem dos países ricos para o resto do mundo, e das classes cosmopolitas nacionais para seus respectivos proletariados culturais.

A promoção de um estilo individualista-expressivista é acompanhada, portanto, de uma pressão sistemática contra moralidades sexuais e familiares tradicionais e contra a religião organizada, tudo isso em nome de espiritualidades fluidas ou secularizadas. O que isso significa para cada nação varia segundo as suas realidades históricas e culturais, alterando necessariamente a composição específica do proletariado cultural. Esse ponto é importante: embora a elite cultural seja sempre cosmopolita, o proletariado cultural é sempre localmente colorido.

Isso explicaria por que, no caso do Brasil, esse proletariado cultural é composto majoritariamente por pessoas religiosas cristãs, mas principalmente evangélicas. A nova guerra de classes seria uma subestrutura material ou o esqueleto socioeconômico da guerra cultural contemporânea, na qual a elite cosmopolita nacional, credenciada por nossas universidades laicas e controlando a produção simbólica “oficial”, manipula as instituições nacionais de modo a garantir a sua hegemonia em um tipo de supremacismo cultural, conforme argumentei em artigo recente no Observatório Evangélico.⁸ Nos centros com maior concentração urbana, os evangélicos são um grupo mais negro, mais feminino e mais pobre que o restante da população, sustentando ao mesmo tempo visões mais conservadoras e mais religiosas do que a elite cosmopolita.

Esse ponto é importante: embora a elite cultural seja sempre cosmopolita, o proletariado cultural é sempre localmente colorido.

Na percepção desse campo, a luta por justiça social promovida pelos centros de produção simbólica, por meio do identitarismo, fragmenta sua força política diante da elite cosmopolita, transmitindo a falsa impressão de um fortalecimento da democracia. Michael Lind observa que o padrão da política contemporânea tem sido uma luta de três lados: sempre a elite e dois segmentos de uma classe proletária dividida.⁹ Temos, por exemplo, um conflito de mulheres de elite contra o discurso patriarcal promovido pelo proletariado cultural, e um conflito interno entre mulheres proletárias aliadas da elite contra mulheres proletárias alinhadas com sua classe, mas invisibilizadas na produção simbólica oficial. Nada disso significa, naturalmente, que não haja interesse de mulheres proletárias na expansão de suas liberdades e em uma ascensão econômica; mas muitas delas consideram a dissolução de seu mundo simbólico e comunitário um custo excessivamente alto a pagar, quando não uma forma de violência de classe.

Creio que esse quadro geral é suficiente para a questão que quero levantar nesta coluna: tendo em vista que o sistema universitário é parte fundamental da economia do conhecimento globalmente e socialmente, fornecendo o credenciamento da elite cosmopolita, e considerando a posição do universo evangélico na guerra de classes contemporânea, os cristãos evangélicos que estão na universidade e na ciência estão singularmente expostos, de um ponto de vista moral e político. Não podemos suprimir o fato de que, à medida que participamos como protagonistas da economia do conhecimento e nos comprometemos com seu arranjo institucional, temos nossas respectivas lealdades desafiadas. Nossa construção de pontes não se limita a questões epistemológicas e conceituais, ainda que elas sejam prioritárias. 

Em termos principiológicos, entendo que os cristãos na ciência devem se comprometer com a promoção da democracia, dos direitos humanos e de uma cultura que honre a expertise. Nesses aspectos, não haveria por que não apoiar iniciativas como o “Dia Nacional da Defesa da Democracia”, proposto pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência. Parte-se do princípio de que uma democracia funcional é necessária para a plena liberdade acadêmica e para o avanço da ciência.

Em termos principiológicos, entendo que os cristãos na ciência devem se comprometer com a promoção da democracia, dos direitos humanos e de uma cultura que honre a expertise.

Ao mesmo tempo, não podemos nos olvidar do fato de que há uma economia do conhecimento que opera de forma aristocrática, e que nosso sistema de credenciamento é parte funcional do sistema liberal. Por isso mesmo, o alinhamento com a democracia não pode ser confundido com uma submissão acrítica à elite cosmopolita, à hegemonia do individualismo expressivo e ao processo de secularização imposto por ela. Na verdade, apoiar a secularização radical da sociedade seria uma traição da missão dos cristãos na ciência, e se for demonstrado que o abandono das regras pró-fertilidade tradicionais leva, de fato, à secularização radical, como argumenta Ron Inglehart, intelectuais cristãos não poderiam naturalizar e abraçar esse processo. O debate atual sobre a descriminalização do aborto no Brasil é um claro test case a esse respeito: trata-se de uma agenda promovida a partir de cima – da elite cosmopolita – rejeitada por 79% da população, segundo investigação recente do Paraná Pesquisas. Ela avança apenas por pressão internacional, ativismo judicial e propaganda, e, como outras reformas morais recentes, só se torna algo normalizado após a criação de jurisprudência.

Enquanto pensamos sobre o caráter da presença cristã na academia a partir do paradigma da peregrinação, impõe-se a necessidade de posicionamento ético diante das irracionalidades do neopopulismo demagógico, por um lado, e, por outro, do supremacismo cultural da elite cosmopolita. O assunto é complexo, mas eu diria, em princípio, que o caminho não seria meramente tomar lados e acirrar a guerra cultural, muito menos reforçar a nova guerra de classes que lhe é subjacente, mas um caminho de testemunho e reconciliação, na forma do pluralismo democrático. E por estarem particularmente expostos nesse conflito contemporâneo, caberia aos cristãos na ciência e na academia uma articulação consciente nessa direção.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Michael Lind, The New Class War: Saving Democracy from the Metropolitan Elite, 2020, p. xxi.

2. Ibidem, p. 1.     

3. Ibidem, p. 4.      

4. Musa Al-Gharbi, “Woke-Ism Is Winding Down”, Compact Magazine, February 2023.

5. Lind, 2020, p. 9.

6. Ibidem, p. 25.

7. Ronald F. Inglehart, Religion’s Sudden Decline What’s Causing It, and What Comes Next? , 2021, p. 9.

8. Guilherme de Carvalho, “Entre Dois Supremacismos: Brasil Vive Conflito de Crenças Entre Proletariado Cultural Evangélico e Elite Cultural Cosmopolita”, Observatório Evangélico, 2023. Clique aqui para acessar.

9. Lind, 2020, p. 12.

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