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Guilherme de Carvalho

Por que “Ressonâncias”?

12/04/2023

Em The Open Secret (2008), publicado em português com o título Teologia Natural, Alister McGrath descreve a certa altura o fenômeno da “agnosia visual”, que ocorre quando uma parte do córtex cerebral ligada à visão é danificada de tal modo que o indivíduo se torna incapaz de identificar objetos, apesar de vê-los. Os olhos, os nervos ópticos e outras estruturas cerebrais envolvidas podem estar intactos, mas o dano nesse ponto específico do córtex destrói a capacidade de atribuir significados aos dados visuais. Daí o nosso teólogo-cientista extrai lições importantes:

[...] embora esses múltiplos processos e representações trabalhem juntos na percepção normal, e assim deem a impressão de que a percepção seja um processo simples e unitário, o fato de que eles podem se dissociar uns dos outros, por exemplo no caso da agnosia visual, mostra que o que é crucial à percepção é a conexão do input sensorial que é recebido a uma compreensão existente do mundo. Pessoas com agnosia podem “ver” – mas não podem dar sentido ao que veem. Para usar as palavras de Isaías 6.9, elas literalmente “veem sem perceber”.

O assunto é, naturalmente, Teologia natural, e o que se propõe aqui é uma analogia entre um distúrbio neurocognitivo específico e a falha em reconhecer a revelação de Deus na Natureza. Mas que tipo de falha seria a “agnosia religiosa”?

A explicação teológica para isso vem naturalmente: uma incapacidade de formar a crença no Deus Criador, presente na natureza criada, mas inconfundível com ela, incapacidade esta resultante da operação do pecado no coração humano – o que se convencionou chamar de “efeitos noéticos do pecado” e que tem seu Locus Classicus no capítulo 1 da Carta de Paulo aos Romanos.

Mas parece que temos mais nessa analogia do que um paralelo arbitrário; o ponto de McGrath é que qualquer processo cognitivo depende de uma combinação de experiências sensoriais com representações que envolvem a memória e um sistema de significados. De certo modo, a experiência da agnosia visual não é diferente da experiência de alguém que encontra um objeto absolutamente estranho pela primeira vez e não faz ideia do que pensar sobre ele.

Nesse sentido, a agnosia religiosa poderia ser vista como um genuíno problema cognitivo, ainda que não exatamente neurocognitivo. Sem pretender esgotar suas causas, ela poderia estar associada a uma baixa exposição a práticas doxásticas que mobilizam a intuição religiosa, segundo descritas por William Alston, por exemplo; ou a uma postura existencial de negação da criaturidade – algo na linha do que Ernest Becker descreveu em sua Magnum Opus intitulada A negação da morte como a “neurose narcísica” fundamental de que todo ser humano compartilha.

De certo modo, a experiência da agnosia visual não é diferente da experiência de alguém que encontra um objeto absolutamente estranho pela primeira vez e não faz ideia do que pensar sobre ele.

Uma das fontes da agnosia religiosa que me parece mais evidente é a falta de um consenso e de uma vivência comunitária da realidade de Deus. Se, como Steven Sloman e Philip Fernbach argumentam em The Knowledge Illusion, o conhecimento é uma experiência coletiva, é possível que a incapacidade de compreender o sentido de certos fenômenos resulte da carência de memórias e representações compartilhadas que, juntas, compõem o quadro necessário para certa experiência cognitiva. Isso acontece, de fato, com a linguagem; a “graça” de uma piada é uma realidade objetiva, mas dependente de um extenso alinhamento conceptual, cultural, linguístico e emocional. Sem uma inserção nessa complexidade social, não se entende a piada. De modo similar, há uma “graça” no mundo, cuja percepção depende da inserção na comunidade divina, que fornece os recursos para interpretar seus sinais e constatar a presença divina.

Sendo assim, a Teologia Natural – ou a teologia da natureza, como alguns preferem – seria uma espécie de terapia cognitiva, uma vez que, ao procurar ressonâncias entre o evangelho e a natureza, ela procura estabelecer as conexões faltantes para que a constatação da presença/diferença Deus-Natureza possa acontecer normalmente. Nesse sentido, seria mais do que um empreendimento científico acadêmico, assumindo ares clínicos.

De modo similar, há uma “graça” no mundo, cuja percepção depende da inserção na comunidade divina, que fornece os recursos para interpretar seus sinais e constatar a presença divina.

É claro que tais esforços podem soar pretensiosos de um ponto de vista estritamente teológico: pode um método de correlação entre teologia e ciência “curar” a agnosia religiosa, se na sua raiz se encontra o pecado individual e coletivo? Certamente que não; ninguém pode voltar a ver, no sentido espiritual, sem um milagre divino, um ato da graça de Deus. A experiência evangélica da graça é necessária para que o mistério divino na natureza seja, mais do que teorizado, percebido.

Ainda assim, há duas coisas que uma boa teologia natural pode fazer: em primeiro lugar, no tocante aos que creem em Jesus Cristo, ela pode ajudá-los a integrar a sua experiência de realidade, curando suas fraturas, uma vez que aqueles que reconhecem a glória de Deus na face de Cristo estão prontos para reconhecê-la na ordem criada e para vivê-la como dádiva divina.

Mas, além disso, no tocante a alguém que não consegue ver o Deus de Jesus Cristo de forma nenhuma, a boa teologia natural pode ajudá-lo, sob certas condições, a suspeitar de sua experiência cognitiva. Se diante dele dão-se fenômenos que não parecem fazer nenhum sentido, mas que ainda assim ocupam seu campo de visão, e, ao mesmo tempo, esses mesmos fenômenos são reconhecidos por outros, ele pode abrir-se para a necessidade de ajuda divina. Como Stanley Hauerwas não se cansa de dizer, o Mundo não pode receber o Espírito Santo, mas pode ser convencido por Ele de que é Mundo; e, na medida em que a igreja pratica a realidade de Deus, inclusive na sua vida intelectual, revela-se publicamente a mundanidade do Mundo e sua alienação de Deus. 

A busca das “ressonâncias” entre a teologia e a ciência é, nesse sentido, mais do que uma atividade intelectual; é um serviço missional, sacerdotal e profético; poderia ser comparada ao trabalho de João Batista: a preparação do Caminho do Senhor.


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