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ARTIGO

O telescópio James Webb refutou mesmo a teoria do Big Bang? (Parte 1)

Alexandre Fernandes e Roberto Covolan|

03/11/2023

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Alexandre Fernandes e Roberto Covolan

Alexandre possui graduação (UCB), mestrado e doutorado em Física (UnB) com pesquisa em Cosmologia Quântica. Atualmente é professor do ensino básico e superior, além de coordenador de grupos de estudo em Relatividade Geral. Também é líder do Grupo de Estudos em Brasília e do Grupo Temático em Física da ABC².

Roberto é doutor em física, ex-professor da UNICAMP, fez estágio de pós-doutorado na Universidade de Turim (Itália) e foi pesquisador visitante na Universidade Rockefeller (Nova York, EUA) e na Universidade Harvard (Boston, EUA). Criou o Grupo de Neurofísica da UNICAMP. Atuou na criação e gestão do BRAINN: Brazilian Institute of Neuroscience and Neurotechnology. Foi presidente fundador da ABC². Atualmente, é presidente da Academia ABC² e editor da revista UNUS MUNDUS.

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Como citar

Fernandes, Alexandre; Covolan, Roberto. O telescópio James Webb refutou mesmo a teoria do Big Bang? (Parte 1). Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Nas ciências naturais, estamos preocupados, em última análise, não com arranjos convenientes de dados observacionais que podem ser generalizados numa forma explicativa universal, mas com dinâmicas intelectivas, ao mesmo tempo teóricas e empíricas, que penetram nas estruturas intrínsecas do universo de tal maneira que se nos revela a sua conformação básica e somos postos em contato com a realidade.¹

Introdução

Desde sua concepção inicial, a teoria do Big Bang foi alvo de grandes polêmicas que transbordaram o campo científico. Mesmo quando a polêmica se deu entre cientistas, frequentemente as motivações envolvidas iam além das equações e dados observacionais, checando a tocar — quem diria! — em aspectos teológicos. Em paralelo às disputas acadêmicas visando estabelecer um quadro explanatório geral que descrevesse a formação do universo, acontecia também uma disputa teológica. Afinal, Deus teria criado o universo por meio do Big Bang?

Cabe notar que perguntas e observações com esse caráter não partiram apenas do campo religioso. Aliás, foi um físico agnóstico e, na época, cientista chefe da NASA quem escreveu em seu livro:

Agora vemos como a evidência astronômica apoia a visão bíblica da origem do mundo. Os pormenores diferem, mas os elementos essenciais no relato astronômico e nos relatos bíblicos de Gênesis são os mesmos. A cadeia de eventos que conduz ao homem começou súbita e bruscamente em um momento definido no tempo, em um flash de luz e energia.²

Teria, então, a cosmologia demonstrado cientificamente que o momento da criação ocorreu há 13,8 bilhões de anos? Conforme o próprio Jastrow afirma na sequência da citação acima, alguns cientistas não ficaram nem um pouco contentes com a ideia de que o mundo teria começado dessa forma. Conforme veremos, os fundamentos da teoria do Big Bang já têm mais de um século e ambas as disputas, tanto a científica quanto a teológica, continuam mais acesas do que nunca. Mas como essa história começou?

No início do século 20, a visão científica predominante sobre o universo era de que ele seria homogêneo, estável, estático e eterno. Os movimentos de planetas, cometas e asteroides só eram reconhecidos como resultantes de uma dinâmica local, própria do nosso sistema solar. As constelações estelares conhecidas até então eram vistas como essencialmente fixas umas em relação às outras. Cogitava-se, sim, de que pudesse haver outros sistemas planetários semelhantes ao nosso, mas não havia observações que corroborassem essa ideia.

As mudanças vieram de novos achados científicos fundamentais que ocorreram de forma independente, tanto no campo teórico quanto no campo observacional. Modelos teóricos e observações astronômicas cada vez mais precisos acabaram conduzindo à teoria do Big Bang como o principal referencial teórico-conceitual para se entender a origem e evolução do universo.

Modelos teóricos e observações astronômicas cada vez mais precisos acabaram conduzindo à teoria do Big Bang como o principal referencial teórico-conceitual para se entender a origem e evolução do universo.

Recentemente, porém, tem-se disseminado amplamente na internet que as observações do telescópio espacial James Webb (JWST, na sigla em inglês) colocaram em crise a teoria do Big Bang. Alguns chegam a afirmar que o James Webb provou que o Big Bang está errado. Acaso essa afirmação faz sentido? De que maneira as observações do JWST surpreenderam a comunidade científica?

Para responder a essas questões, lançaremos mão dos dados científicos atualmente disponíveis — e vamos fazê-lo neste artigo em duas partes. Antes de tratar das observações do JWST, precisamos começar do princípio e entender o surgimento da teoria do Big Bang e quais são as evidências que a sustentam. Faremos isso nesta primeira parte do artigo. Tendo entendido os fundamentos da teoria, abordaremos então as novidades trazidas pelo JWST e de que forma essas observações poderiam afetar — se é que afetam — o modelo cosmológico padrão (vulgo Big Bang). Esta segunda parte será publicada em um próximo artigo na Unus Mundus.

Os primórdios do Big Bang (ou melhor, a recessão das galáxias)

Uma das coisas importantes de se saber logo de início é que a designação “teoria do Big Bang” funciona muito bem em termos de publicidade, mas carrega dois grandes problemas: foi inventada por um dos principais oponentes dessa teoria com o intuito de ridicularizá-la e trata-se de uma expressão que frequentemente conduz as pessoas a uma visão equivocada do que esta teoria preconiza. Continuaremos usando aqui o título Big Bang (BB) apenas por uma questão de simplicidade; mais adiante ficará claro porque ele é problemático.

A teoria do BB teve seu início a partir dos cálculos matemáticos de Albert Einstein em 1915. O que Einstein estava propondo era uma generalização da teoria newtoniana para o campo gravitacional a partir da Relatividade Especial de 1905. Essa generalização recebeu um nome hoje bem conhecido: Relatividade Geral (RG). A RG teve seu primeiro teste bem sucedido quando ocorreu o eclipse solar de 29 de maio de 1919:³ as observações mostraram que a luz descreve uma trajetória curva ao passar próximo ao Sol, demonstrando a curvatura do espaço-tempo. Com o sucesso da teoria, Einstein tornou-se, do dia para a noite, um popstar da ciência mesmo que apenas algumas poucas pessoas conhecessem realmente a matemática da RG.

Os anos de 1910 a 1935 foram repletos de intensos desenvolvimentos científicos nessa área, tanto no campo teórico quanto no observacional. Durante esses 25 anos, além da RG, ocorreu o surgimento da mecânica quântica e um grande desenvolvimento nas observações cosmológicas. Um detalhe interessante é que, até 1929, não se conhecia outras galáxias: o que era observado, as chamadas nebulosas — um composto de gás, poeira cósmica e estrelas —, eram objetos que não se sabia se faziam parte da Via Láctea ou se estavam “fora” dela. Esse problema seria resolvido, mais tarde, por Hubble.

Einstein e outro grande físico, Willem de Sitter, analisando as equações da RG, observaram que elas poderiam indicar uma dinâmica (expansão e/ou contração) do universo. Contudo, a concepção ou cosmovisão de universo vigente à época falou mais alto do que as soluções das equações da RG e Einstein, de forma arbitrária, altera suas próprias equações em 1917 para que passem a representar um universo estático, de modo que não se expanda nem se contraia.

Em 1922 e 1924, o matemático e cosmólogo Alexander Friedmann, trabalhando independentemente com as complicadíssimas equações da RG, também encontra uma solução matemática em que o universo tem uma dinâmica. Em outras palavras, Friedmann encontra uma possibilidade, matemática e real, de que o universo possa se expandir ou se contrair. Essa solução estava de acordo com as equações da RG, mas necessitava de uma contrapartida observacional, ou seja, para Friedmann — ou qualquer outro que propusesse ideias do mesmo tipo — estar correto era necessário observar o universo se contraindo ou se expandindo. Essas observações estavam próximas de se tornar públicas.

Em 1923, o astrônomo Edwin Powell Hubble começa a resolver um grande problema que já atormentava os físicos e astrônomos havia mais de dez anos. O problema é que estavam sendo observadas diversas nebulosas cuja distância calculada indicava que estariam fora da Via Láctea.

Utilizando o grande telescópio de 100 polegadas do Observatório Mount Wilson, Hubble faz observações de nebulosas e calcula a sua distância. A técnica utilizada por Hubble vem da astrônoma Henrietta Leavitt: observa-se estrelas que pulsam periodicamente, ou seja, que possuem uma luminosidade variável. Por meio do período de pulsação da estrela é possível determinar sua luminosidade intrínseca e desta grandeza é possível calcular a distância até ela. De posse desses detalhes, Hubble publica alguns trabalhos, incluindo um grande relatório em 1926 em que analisa 400 nebulosas. A conclusão vem na forma de um trabalho clássico, publicado em 1929, afirmando que algumas dessas nebulosas, na realidade, são universos-ilha. Com o desenvolvimento da cosmologia chegou-se à conclusão de que esses universos-ilha são o que hoje chamamos de galáxias: imensos aglomerados com bilhões de estrelas com planetas, gás e poeira.

Poucos anos depois de Friedmann ter realizado seus trabalhos em Relatividade Geral, temos um novo avanço no front teórico. Georges Lemaître, físico e matemático belga — que também era padre — publica um interessante trabalho teórico sobre o mesmo assunto em uma revista francesa de pouca divulgação. O artigo, publicado em 1927, enfatizava dois pontos importantes. O primeiro é que a velocidade de recessão de algumas “nebulosas extragalácticas” indicavam um raio do universo maior do que o previsto anteriormente. Ou seja, esses objetos, que são as galáxias, estavam a uma distância maior do que o previsto para um universo estacionário. Esse resultado estava de acordo com outro trabalho de Hubble publicado um ano antes.⁴ O outro ponto interessante é que os achados de Lemaître vão de encontro aos resultados de de Sitter e de Einstein. Em outras palavras, a solução matemática obtida por Lemaître em 1927 — e que concordava com as observações astronômicas — era que o universo estava se expandindo e que só “restava encontrar a causa da expansão”.⁵

Em 1929, Hubble publica o clássico gráfico em que mostra a distância das “nebulosas” — hoje sabemos que são galáxias — e a relação com sua velocidade de afastamento de onde estamos. Isto é, há uma relação direta entre a distância e a velocidade de afastamento dessas galáxias: quanto mais distante está uma galáxia, mais velozmente ela se afasta de nós.

Fig. 1 – Dados obtidos por Hubble e publicados em 1929.⁶ No eixo horizontal, temos a distância e no eixo vertical, a velocidade de afastamento. Observa-se que, quanto mais distante está uma galáxia, a sua velocidade de afastamento é proporcionalmente maior.

Fechando esse contexto teórico e observacional, entre 1931 e 1936, os físicos Robertson e Walker publicam valiosas contribuições para o que é tecnicamente conhecido como a métrica de FLRW (Friedmann-Lemaître-Robertson-Walker). Métrica é um objeto matemático que, em outras palavras, diz como é a estrutura do universo.

Ainda em 1931, Lemaître publica vários artigos em que trabalha com a ideia de que o universo nasce de um “átomo primordial” e está se expandindo desde então.⁷ Claramente esse conceito poderia remeter à ideia de criação. Justamente por esse ponto, o modelo de Lemaître foi duramente criticado por Fred Hoyle, um grande cosmólogo e defensor da teoria do Estado Estacionário, que advogava a ideia de que o universo era eterno e que havia contínua criação de matéria no espaço intergaláctico. Hoyle, em suas críticas ao modelo de Lemaître, de forma jocosa, apelida toda a teoria em construção (a métrica de FLRW e as evidências até então) de “teoria do Big Bang”! Embora Hoyle fosse um cientista brilhante e certamente tivesse razões de fundo científico para rejeitar a ideia de um universo em expansão, era público e notório o seu antiteísmo, e certamente não lhe escapava que admitir um início para o universo favoreceria a ideia de criação.

O mesmo tipo de rejeição, Lemaître encontrou na pessoa do próprio Einstein — ainda que sem a estridência pública de Hoyle. Durante a realização da 5a. Conferência Internacional Solvay, em Bruxelas, Lemaître teve oportunidade de apresentar a Einstein os seus estudos sobre a Relatividade Geral. Einstein, porém, repudiou sua conclusão sobre a expansão do universo, dizendo: “Seus cálculos estão corretos, mas a sua física é abominável”.⁸ Em outra ocasião, quando Lemaître tentou novamente convencer Einstein sobre a sua ideia de o universo ter-se expandido a partir de um “átomo primordial”, este encerrou o assunto rapidamente: “Não, isso não! Isso sugere muito a criação!”.⁹

Lemaître teve de lidar não só com oposição ao seu modelo teórico devido a certas extrapolações teológicas, mas também com entusiasmo excessivo pelo mesmo motivo — e partindo de ninguém menos do que o próprio papa.¹⁰

Independentemente de eventuais pressupostos filosóficos e teológicos por parte dos cientistas, a ciência seguiu seu curso e importantes desenvolvimentos estavam por acontecer.

Em outra ocasião, quando Lemaître tentou novamente convencer Einstein sobre a sua ideia de o universo ter-se expandido a partir de um “átomo primordial”, este encerrou o assunto rapidamente: “Não, isso não! Isso sugere muito a criação!”.

Nucleossíntese primordial e a abundância de elementos químicos leves

No final dos anos 1940, Ralph Alpher, Robert Herman, George Gamow, Chushiro Hayashi e outros físicos trabalharam com a seguinte ideia: dado que o universo nasceu a partir de um estado inicial extremamente quente e denso — afinal, toda a energia que deu origem ao universo estaria concentrada em um ponto de densidade infinita: uma singularidade —, o que aconteceria à medida que ele se expandisse e esfriasse? Ou seja, dado que, no início do universo, só haveria partículas elementares (os átomos não teriam ainda se formado), como teria sido o processo de formação dos elementos químicos?

Este é o ponto de partida para o que conhecemos como nucleossíntese primordial: as reações nucleares que teriam ocorrido nos primeiros 20 minutos após o nascimento do universo, levando à formação dos primeiros elementos químicos, como o hidrogênio, hélio e lítio, além dos seus isótopos. Na década de 1960, entram em cena outros grandes físicos, como o ganhador do prêmio Nobel de Física de 2019 (“por descobertas na cosmologia física”) James Peebles e Robert Wagoner, com importantes contribuições na determinação das abundâncias relativas dos elementos químicos primordiais.

O cerne da nucleossíntese primordial é a física nuclear e a física de altas energias, que descrevem a formação de matéria a partir de fótons, quarks, elétrons e outras partículas elementares. Devemos ter em mente que o tamanho desse universo primordial é muito pequeno comparado com o que temos hoje, e sua temperatura é inimaginavelmente alta. À medida que o universo vai se expandindo — estamos nos primeiros 20 minutos desde seu nascimento —, sua temperatura vai diminuindo, permitindo que quarks e glúons se juntem, formando prótons e nêutrons. Centenas de milhares de anos mais tarde, a junção de um próton e um elétron dará origem ao elemento químico mais simples, mais leve e mais abundante do universo: o hidrogênio.

A formação dos demais elementos químicos — hélio, lítio e seus isótopos — vai acontecendo ao longo do tempo. A explicação detalhada de todo esse processo físico foi descrita por trabalhos que começaram a ser publicados em 1948. Uma consequência importante do que ocorre nessa fase do universo é que a relação de proporcionalidade entre os átomos de hidrogênio e hélio é como que “congelada”, e deveria ser a mesma nas primeiras galáxias e que, hoje, seriam observadas como as mais distantes. Evidências observacionais dessa natureza para a teoria de nucleossíntese não faltam. Apenas para citar um caso: em 2021, foi publicada uma análise de 100 regiões do universo que continham galáxias muito antigas. A análise, que veio dos dados do Sloan Digital Sky Survey, uma colaboração internacional formada por centenas de cientistas com objetivo de mapear o universo, mostrou que a proporção de átomos de hélio nessas galáxias concorda com a previsão feita pela teoria do Big Bang.¹¹

A radiação cósmica de fundo

Outro indicador importante para analisar qual teoria melhor descreve a formação do universo é a radiação cósmica de fundo (RCF), um tipo de radiação eletromagnética na frequência de microondas que permeia o universo. Uma informação básica a respeito de qualquer forma de radiação é que, seja qual for, ela provém de uma fonte. Um dos aspectos mais surpreendentes da RCF é que ela se distribui por todo o universo, preenche todo o espaço e chega à Terra de todas as direções. Qual seria, então, a sua fonte, a sua origem?

A teoria do BB propõe que, até a idade de 380 mil anos, o universo era opaco: todos os fótons que viajavam no universo eram logo absorvidos pelos elétrons, prótons e núcleos primordiais existentes, que formavam uma espécie de plasma no qual ainda não existiam átomos devido à altíssima temperatura. Contudo, ao se expandir, o universo foi esfriando. Mais ou menos por essa idade, o universo já estava frio o suficiente para que os núcleos leves formados capturassem elétrons e os átomos neutros pudessem se formar. Nesse novo meio formado de átomos neutros, os fótons podiam viajar livremente pelo universo sem serem absorvidos. Essa inferência, que vem da teoria do BB, foi criticada por Hoyle e procurada por diversos cosmólogos até que, em 1965, Wilson e Penzias detectaram essa RCF residual do início do universo. Esta foi uma descoberta fundamental para o estabelecimento definitivo da teoria do Big Bang. A partir da década de 1990, alguns satélites mapearam a RCF com precisões cada vez maiores: os satélites COBE e WMAP, da NASA, e, por último, o satélite Planck, da ESA, Agência Espacial Europeia. Um mapa de um dos aspectos físicos dessa radiação, a anisotropia, colhido pelo satélite Planck, pode ser visto na figura 2.

Fig. 2 – Imagem da anisotropia da radiação cósmica de fundo.¹²

As evidências do BB

Neste ponto, podemos fazer um breve resumo das evidências do BB. A lista poderia ser muito grande, mas vamos sintetizar em apenas quatro pontos:

  • Lei de Hubble-Lemaître. Esta lei, que foi rebatizada em 2018 para homenagear Georges Lemaître, demonstra que o universo está se expandindo desde o seu nascimento. Em parte, ela advém dos trabalhos observacionais de Hubble, de 1929, mas também resultam dos modelos teóricos de Lemaître, de 1927. Abaixo temos um diagrama demonstrando, hoje, que os objetos astronômicos obedecem essa lei. O que ela essencialmente reflete é a expansão do universo revelado pela recessão (afastamento) das galáxias. Em 1998, três grupos internacionais de pesquisadores que competiam entre si no estudo de supernovas chegaram a uma conclusão assombrosa: que o universo se expande de forma acelerada. Por essa descoberta, os líderes desses três grupos receberam o prêmio Nobel de Física de 2011. As razões para essa aceleração na expansão do universo continuam sendo investigadas, mas dos resultados dessas pesquisas resta um fato inquestionável: a expansão do universo, agora medida de forma extremamente precisa. Veja a figura 3 abaixo.

Fig. 3 – Diagrama da lei de Hubble-Lemaître com diversos objetos astronômicos. O eixo vertical expressa distância e o horizontal, a velocidade de recessão.¹³

  • Abundância relativa de elementos químicos leves: a relação aproximada de 75% de hidrogênio para 24% de hélio, além de outras proporções, é observada em galáxias e até mesmo em aglomerados ou berçário de estrelas;
  • Radiação cósmica de fundo: uma das mais fortes evidências observacionais da teoria do BB: a temperatura média do universo é de cerca de 2,7 K para qualquer ângulo de observação. As primeiras medidas realmente precisas da RCF realizadas pelo satélite COBE levaram os líderes desse projeto, George Smoot e John Mather, a ganhar o prêmio Nobel de Física de 2006;
  • Nuvens de gás primordial: em 2011, foi publicada uma observação de hidrogênio puro em nuvens de gás de dois bilhões de anos após o BB. A importância desse achado advém do fato de que apenas os três primeiros elementos químicos foram formados no universo primordial; todos os demais elementos mais pesados foram forjados no núcleo de estrelas e em explosões de supernovas. A detecção de deutério, um isótopo do hidrogênio, no nível previsto pela nucleossíntese primordial foi entendida como “confirmação direta do modelo cosmológico padrão”, ou seja, do BB.¹⁴

Teorias, simulação e o modelo ΛCDM

Diferentemente de outras áreas da ciência em que as observações são realizadas em experimentos laboratoriais de curta duração, a cosmologia lida com fenômenos que podem ter-se dado a milhões ou mesmo bilhões de anos e em que o laboratório é o próprio cosmos.

Atualmente, uma parte importante de seus métodos envolvem simulações computacionais. Uma definição que precisa estar cristalina é a diferença entre a teoria do BB e as simulações. Em outras palavras: o que descrevemos, até aqui, é a teoria do BB. Ela está apoiada na Relatividade Geral (matemática, observações e experimentos), nas soluções das equações da RG (métrica de FLRW), na termodinâmica, na nucleossíntese primordial, nas evidências que temos até agora e nas previsões sobre matéria escura e energia escura. O nome de todo esse conjunto de teorias científicas, equações matemáticas, diversas áreas da física tratando de períodos anteriores ao universo primordial, juntando evidências e previsões é ΛCDM.

A sigla ΛCDM vem de algumas junções físicas. O Λ vem da constante cosmológica colocada ad hoc por Einstein em suas equações para que resultassem em um universo estático. Em 1998, foi descoberto que o universo se expande de forma acelerada e o responsável por esse fenômeno é algo ainda desconhecido, denominado energia escura: é o Λ atual. Já o CDM vem de cold dark matter, um outro componente desconhecido (matéria escura) do universo que produz efeitos gravitacionais, mas que não é composto ou não interage com a matéria que conhecemos. A matéria escura e a energia escura, juntas, são responsáveis por aproximadamente 95% de todo o conteúdo do universo. O restante é tudo aquilo que conhecemos como matéria detectável: fótons, prótons, elétrons, átomos, galáxias, estrelas, planetas etc.

Para ficar mais claro: o ΛCDM é o que chamamos de modelo cosmológico padrão. É uma grande compilação do conhecimento científico que se tem das diversas teorias envolvidas, como inflação (que não abordaremos em detalhes aqui) e a própria teoria do BB. Nele também estão inclusas as teorias de formação das primeiras estrelas e galáxias. Essas teorias, que têm seu início com as ideias de nucleossíntese primordial, estão em pleno desenvolvimento teórico. Afinal, o conhecimento científico precisa de um bom arcabouço teórico mas, principalmente, da contrapartida observacional.

Atrelado ao ΛCDM, temos outra grande área de desenvolvimento científico: os modelos e as simulações. Aqui estamos nos referindo a esses termos (modelo e simulação) como um conjunto de técnicas para criação de cenários, desenvolvimento e resolução (numérica e analítica) de equações. Observe que isso não é a teoria do BB ou o ΛCDM; são “apenas” tentativas (que podem ter ou não sucesso) de entendimento de como o universo funciona.

Acoplado a tudo isso (teoria, modelo, simulação, resolução de equações), o grande juiz, que determina se as coisas estão funcionando ou não, é a observação cosmológica. Em outras palavras, os telescópios e os laboratórios coletam dados, e esses dados, depois de tratados e interpretados, nos dão o quadro geral do universo. Do outro lado, o ΛCDM e os modelos acoplados também produzem um quadro geral do universo, mas em uma perspectiva de “como seria”. Se os dados e os modelos concordarem, isso significa que o ΛCDM e suas simulações estão no caminho certo de explicar como o universo funciona. Caso contrário, são feitas modificações nas simulações, nos modelos, nas teorias ou até mesmo no ΛCDM, buscando um aprimoramento da compreensão do todo à luz das informações experimentais e observacionais. É assim que a cosmologia funciona.

Se os dados e os modelos concordarem, isso significa que o ΛCDM e suas simulações estão no caminho certo de explicar como o universo funciona. Caso contrário, são feitas modificações nas simulações, nos modelos, nas teorias ou até mesmo no ΛCDM, buscando um aprimoramento da compreensão do todo à luz das informações experimentais e observacionais.

Conclusão

O que vimos até aqui permite concluir que o modelo cosmológico padrão não é meramente um “Big Bang”, uma grande explosão, conforme popularmente se pensa. Essa expressão inevitavelmente leva à imagem distorcida de que, no início, tinha-se uma “infinita” concentração de matéria e energia, que explodiu, espalhando-se por todo o espaço, e que as estrelas e galáxias seriam escombros que continuam distanciando-se entre si em razão da “infinita” potência dessa explosão. Nada mais equivocado. A começar pelo fato de que, no início, não havia sequer o espaço em que uma explosão pudesse se dar.

A teoria do BB, como a descrevemos até aqui, é capaz de recuar no tempo até muito próximo do início de tudo, mas não consegue abarcar este início. Para isso, precisamos de uma cosmologia quântica: uma teoria que dê conta dos processos físicos que deram origem  ao universo e que se acople, teórica e observacionalmente, à teoria do BB.

O que a cosmologia quântica preconiza é que o surgimento do espaço-tempo se dá a partir de uma singularidade inicial e o que expande é o próprio espaço-tempo: a partir desse ponto é que temos operando a teoria do BB. A formação das partículas primordiais se dá à medida que o universo se expande, a partir de campos de matéria e de forças fundamentais, que se acredita teriam se originado de uma única força primordial. Isto sugere muito a criação, como disse Einstein? Pode ser, mas este é o quadro consensual que a ciência nos oferece hoje.

O que a cosmologia quântica preconiza é que o surgimento do espaço-tempo se dá a partir de uma singularidade inicial e o que expande é o próprio espaço-tempo: a partir desse ponto é que temos operando a teoria do BB.

A maneira como a ciência trata desse assunto não é em termos de criação; fala-se em origem do universo. Sobre esse ponto específico, há o chamado teorema da singularidade, de Borde, Guth e Vilenkin, três físicos célebres, que afirma que: “Qualquer universo que se expande de forma constante ao longo de sua história deve possuir um começo real em tempo finito que inclui o início do espaço e do tempo”.¹⁵ Trata-se de um teorema! E a respeito dele, Alexander Vilenkin, um de seus autores, fez o seguinte comentário: “Com a prova agora instaurada, os cosmologistas não podem mais se esconder atrás da possibilidade de um universo eterno passado. Não há escapatória, eles têm que enfrentar o problema de um começo cósmico”.¹⁶

Embora tenhamos tratado até aqui de ciência, não há como escapar ao fato de que um tema dessa natureza sugere indagações que extrapolam o âmbito científico. Contudo, devemos ser capazes de respeitar as diferentes esferas de conhecimento e as suas especificidades. Em uma entrevista, John Polkinghorne, que era físico e teólogo com maestria em ambas as áreas, resume bem o nosso pensamento:

A ciência não pode dizer à teologia como construir uma doutrina da criação, mas não se pode construir uma doutrina da criação sem levar em conta a idade do universo e o caráter evolutivo da história cósmica. Também acho que devemos manter [certas] distinções — a doutrina da criação é diferente de uma cosmologia científica, e devemos resistir à tentação, à qual os cientistas às vezes cedem, de tentar assimilar os conceitos da teologia aos conceitos da ciência. Há uma distinção [entre elas] que precisa ser mantida.¹⁷

Tendo estabelecido os fundamentos do modelo cosmológico padrão, estamos prontos para, no próximo artigo, abordar diretamente a nossa principal questão: afinal, o telescópio James Webb refutou mesmo a teoria do Big Bang?

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Thomas Torrance, Divine and Contingent Order, 1981, p. 1.

2. Robert Jastrow, God and the Astronomers, 1978, p. 14.

3. Um dos principais pontos de observação desse eclipse foi a cidade de Sobral, no Ceará. Foram os registros realizados em Sobral que contaram efetivamente como evidências favoráveis à Relatividade Geral, de Einstein. Para mais informações sobre essa história, clique aqui.

4. Edwin Hubble, Extra-galactic nebulae, acesse aqui.

5. O artigo original de Lemaître pode ser encontrado aqui e sua versão para o inglês pode ser acessada aqui.

6. O artigo original de Hubble pode ser acessado aqui.

7. Jean-Pierre Luminet, Editorial note to “The beginning of the world from the point of view of quantum theory”, 2018. Clique aqui para acessar.

8. John Farrell, The day without yesterday – Lemaître, Einstein, and the birth of modern cosmology, New York, NY: Thunder’s Mouth Press, 2005, p. 10.

9. Idem, p. 100.

10. A esse respeito, veja excelente artigo de Marcio Campos na Unus Mundus clicando aqui.

11. A Kurichin et al., A new determination of the primordial helium abundance using the analyses of H II region spectra from SDSS, Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, Volume 502, Issue 2, April 2021, Pages 3045–3056. DOI: https://doi.org/10.1093/mnras/stab215.

12. Imagem tratada na Iniciação Científica de Petrus Davi/IDP sob orientação do prof. Dr. Alexandre Fernandes a partir dos dados da missão Planck. Esta pesquisa utilizou o NASA/IPAC Infrared Science Archive, que é financiado pela NASA e operado pelo California Institute of Technology.

13. M. Betoule et al., Improved cosmological constraints from a joint analysis of the SDSS-II and SNLS supernova samples, Astronomy & Astrophysics, Vol. 568, August 2014.

14. Michele Fumagalli, John M. O’Meara, J. Xavier Prochaska, Detection of Pristine Gas Two Billion Years after the Big Bang, Science, Vol. 334, Issue 6060, 2011.

15. Hugh Ross, Teorema da Singularidade de Borde-Guth-Vilenkin, in Dicionário de Cristianismo e Ciência, Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2018, p. 698.

16. Ibidem.

17. Lyndon F. Harris, Ação Divina: Uma Entrevista com John Polkinghorne, CrossCurrents, Vol. 48, No. 1, (1998), p. 3-14.

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