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Tiago de Melo Novais

Pra que serve o conhecimento produzido pela teologia?

18/08/2023

Sem desvirtuar o propósito da coluna Fronteiras do Saber, peço licença para mudar um pouco de foco: tratarei do conhecimento não sob a perspectiva filosófica, mas sim teológica. Mais especificamente, meu objetivo é responder para que serve o conhecimento teológico. Penso que essa questão é importante para todos interessados no uso da teologia, seja para o âmbito acadêmico ou eclesial.

Do modo como formulei o título é fácil deduzir que, para ser válido, o conhecimento produzido por teólogos e teólogas deve servir para alguma coisa. Embora não possamos reduzir a teologia a seus fins, não podemos negar que o conhecimento teológico tem, de fato, de ser útil em algum nível. Mas para que, exatamente, ele é útil?

Intuitivamente, pode-se pensar que a principal utilidade da teologia é falar sobre Deus. Nessa lógica, da mesma forma como outros saberes e as outras ciências se ocupam de seus próprios objetos, servindo para descrever a natureza das coisas e fenômenos investigados, a teologia seria o saber responsável por discursar sobre a natureza e o ser de Deus. Antes de propor outro caminho, não antagônico, mas complementar, quero fazer algumas observações mais técnicas. 

Não é novidade que a teologia se utiliza de duas vias quando o assunto é o conhecimento sobre Deus: a via positiva e a via negativa. Ao longo do tempo, as duas ficaram conhecidas como a catafase teológica (positiva) e a apofase teológica (negativa). Na primeira, entende-se a Deus por meio de proposições, isto é, afirmações sobre quem Deus é. Na segunda, entende-se a Deus por meio da negação, isto é, identificando o que Deus não é e questionando a possibilidade de conhecimento propositivo sobre Deus. Com isso em mente, quero defender que caso a utilidade da teologia fosse principalmente falar sobre Deus, teríamos dois problemas, a saber, a superestimação da capacidade humana em compreender o ser de Deus (teologia positiva) e a subestimação da capacidade divina de se comunicar com o ser humano (teologia negativa). Vejamos como isso funciona.

caso a utilidade da teologia fosse principalmente falar sobre Deus, teríamos dois problemas, a saber, a superestimação da capacidade humana em compreender o ser de Deus (teologia positiva) e a subestimação da capacidade divina de se comunicar com o ser humano (teologia negativa).

Sob a perspectiva catafática, deduz-se que a teologia pode deter um conhecimento objetivo e, por vezes, inequívoco sobre Deus que, uma vez concebido, passa a representar com segurança o que Deus é. Um exemplo conhecido são as formulações cristológicas dos Concílios Ecumênicos (os sete primeiros concílios, como o 1º de Nicéia em 325 d.C., 1º Constantinopla em 381 d.C., Calcedônia em 451 d.C., e outros que vão até o 2º Nicéia em 787 d.C.), que incluem as doutrinas da união hipostática de Jesus e a Trindade.¹ 

Embora o conhecimento positivo (catafático) de Deus produzido pela teologia com base na noção de autorrevelação de Deus seja um conhecimento imprescindível, é inegavelmente limitado. Mesmo teólogos mais tradicionais reconhecem tal limitação: no século 16, João Calvino entendia que, para se revelar, Deus se acomoda à linguagem e ao entendimento humanos, manifestando-se com boas doses de antropomorfismos e antropopatismos, sobretudo no texto bíblico do Antigo Testamento. Desse modo, o que Deus diz sobre si mesmo não é, de forma definitiva, o que Ele é em si mesmo, mas um modo humanamente inteligível de oferecer certo conhecimento sobre o seu ser e caráter. O mesmo é dito por Herman Bavinck, que, reconhecendo a insuficiência dos esforços intelectuais humanos, explica que Deus não pode ser contido em nossas teologias, pois, por definição, Deus não pode estar sujeito à determinação conceitual, seja por parte da filosofia ou da teologia. E claro, não posso esquecer de Karl Barth, que propõe que a teologia é o único saber que não dispõe e não detém o seu objeto, mas apenas o indica. Para ele, Deus não se deixa captar por formulações proposicionais e se mantém um ser totalmente outro em relação ao ser humano (aqui, Barth lança mão da herança medieval teo-ontológica do totaliter aliter).

Observe que citei três teólogos sistemáticos conhecidos por suas contribuições dogmáticas (no melhor sentido da palavra), que estão mais ao lado da dimensão catafática da teologia. Para o tema desta coluna, isso quer dizer que, mesmo em casos de reconhecidos teólogos sistemáticos, o conhecimento teológico não serve para oferecer um conhecimento inequívoco sobre Deus. Na melhor das hipóteses, a teologia positiva oferece possibilidades para o entendimento de Deus, tradicionalmente baseando-se nas Escrituras e na tradição, como resposta ao contexto em que o teólogo ou a teóloga estão inseridos. 

Pense, por exemplo, na afirmação “Deus é amor”. Dificilmente alguém duvidaria de que Deus é amor, afinal, é assim que afirmam a Bíblia (1Jo 4.8), a tradição e mesmo a religiosidade popular. Mas o que significa Deus ser amor? O que é o amor? Quais são as implicações desse atributo de Deus para a relação Deus-mundo? Quais as consequências de Deus ser amor nas relações interpessoais e sociais humanas? O que tal afirmação significava à maneira dos autores bíblicos do Antigo e do Novo Testamento? O que o amor de Deus significa em relação aos outros atributos de seu caráter? Quando respondidas propositivamente pela teologia, questões como essas não são exauridas como se a teologia detivesse um conhecimento final; as respostas representam apenas caminhos possíveis – uns melhores que os outros, é verdade, mas ainda assim respostas passíveis de revisão. 

Na melhor das hipóteses, a teologia positiva oferece possibilidades para o entendimento de Deus, tradicionalmente baseando-se nas Escrituras e na tradição, como resposta ao contexto em que o teólogo ou a teóloga estão inseridos.

Uma vez que se reconhece a insuficiência do conhecimento positivo de Deus, a teologia ainda pode abordar o conhecimento de seu ser através da via negativa (propriamente apofática) ou da experiência mística (onde apofase e ascese se encontram). O melhor exemplo do exercício negativo da teologia é Tomás de Aquino, para quem a definição do ser de Deus passa pela exclusão do que ele não é (via negationis). Esta, aliás, é precisamente a lógica apofática: para que uma coisa seja ela mesma, distinta de outras, precisa, primeiro, não ser outras, ou, ao menos, não possuir os predicados que definem tais outras.² 

Mas a teologia negativa também ganha outros contornos, além dessa forma filosófica-teológica que vemos em Tomás. Na Era Medieval, os denominados místicos e místicas se dedicaram a elaborar uma teologia negativa que enfatizava a experiência espiritual como meio privilegiado de conhecer a Deus. Esse tipo de teologia negativa ficou conhecida como teologia mística, pois se refere não ao conhecimento formulado de Deus, mas ao experimentado com Deus.

A história da teologia apofática é difusa entre tradições teológicas e é tortuosa em seu desenvolvimento. Tem origens na mística e escolástica medieval, passa por uma crise com o racionalismo moderno e é renovada com a fenomenologia da religião e a virada hermenêutica (ou linguística), como em Rudolf Otto e John Caputo, respectivamente. Embora possua um lugar importante na teologia por tornar o teólogo e a teóloga conscientes de que Deus não pode ser reduzido a seus conceitos, a teologia negativa, se vista como antagônica à teologia positiva, subestima a eficácia com que Deus se revela ao ser humano, pois supõe que não há meios confiáveis para que o conhecimento de Deus seja transmitido e recebido, exceto pela experiência subjetiva. Em sentido mais estrito, não só as teologias, mas também a Bíblia não seriam fontes especiais de conhecimento de Deus.

Em resumo, enquanto a teologia positiva superestima a capacidade humana de compreender a Deus e seus planos para a criação, a teologia negativa subestima a capacidade de Deus de se fazer entendido à humanidade. Portanto, quando entendemos a teologia como a ciência que serve primeiramente para gerar conhecimento sobre a natureza e o ser de Deus, seja pela perspectiva positiva ou negativa, encontramos sérias limitações que nos levam a questionar novamente para que serve o conhecimento teológico, e, mesmo quando juntas, como numa relação dialética, a teologia não suprime a insuficiência que é própria de cada uma dessas vias.

Penso que agora estamos preparados para a minha breve proposta nesta coluna: a utilidade da teologia é mais bem entendida como um conhecimento sobre a boa vida segundo a vida de Jesus Cristo. Dito isso, quero emprestar as palavras (e a ideia básica desta coluna) de Miroslav Volf e Matthew Croasmun em For the life of the world [Pela vida no mundo], para quem a teologia deve servir principalmente para discernir, articular e recomendar criticamente visões da vida frutífera à luz de Jesus Cristo.³ Assim, o conhecimento gerado pela teologia deve empenhar-se para auxiliar esse objetivo mais amplo.

a teologia deve servir principalmente para discernir, articular e recomendar criticamente visões da vida frutífera à luz de Jesus Cristo. Assim, o conhecimento gerado pela teologia deve empenhar-se para auxiliar esse objetivo mais amplo.

Para entender melhor e finalizar minha participação por aqui, te convido a ver cada uma destas subfunções da teologia separadamente. Primeiro, o conhecimento teológico serve para fornecer discernimento sobre a vida que vale a pena ser vivida. Isto é, o conhecimento gerado pela teologia funciona como um indicador da boa vida, cuja referência básica é a vida de Jesus Cristo. Pense numa bússola: ela tem como função auxiliar o viajante a se localizar e, independente de seu presente local, e ajudá-lo a discernir o rumo de seu destino. O conhecimento produzido pela teologia pode servir para a mesma função. Assim, ela calibra nossos objetivos de vida, ensinando e relembrando aquilo que mais importa, desafiando a superficialidade de nossas ambições, nossas visões de sucesso e nossos objetivos que consomem todo nosso tempo de vida, para que a vida de Jesus se torne o Norte sob o qual construímos nossos desejos, nossos pensamentos e nossas ações cotidianas.

Segundo, o conhecimento teológico serve para articular os meios pelos quais a vida frutífera acontece. Se uma vida frutífera é aquela que está em consonância com a vida de Jesus Cristo, importa à teologia responder como a vida de Jesus pode ser vivida hoje – na América Latina ou na América do Norte, na cidade de São Paulo ou no interior de Minas Gerais, por um adulto ou por jovem, nas condições socioeconômicas favoráveis ou escassas – com base na revelação em Jesus testemunhada na Bíblia e na tradição cristã. Dessa forma, o conhecimento teológico tem a possibilidade de ser encarnado a fim de emular a vida frutífera de Jesus.

Terceiro, o conhecimento teológico serve para recomendar criticamente visões cristãs da vida frutífera. Perceba como as palavras “recomendar criticamente”, quando juntas, indicam que a função normativa do conhecimento teológico também é crítica, pois não pode recomendar uma visão da boa vida de forma tão rígida que exclua uma atitude crítica, a qual habilita a sua contínua renovação. Sem a atitude crítica a teologia produz novos fundamentalismos, mas sem a recomendação de uma visão normativa ela se torna infrutífera. 

Para concluir, devo sublinhar que aquilo que Volf e Croasmun chamam de vida frutífera à luz da vida de Jesus está diretamente relacionado à pregação de Jesus sobre o Reino de Deus, e o Reino de Deus é a metáfora usada por Jesus para ensinar o que Deus deseja para a sua criação: fazer dela seu lar. Como dizem os autores:

Os seres humanos e o mundo são plenos quando se tornam, na realidade, o que sempre foram na intenção: quando Deus governa o mundo de tal forma que Deus e o mundo estão “em casa” um com o outro – mais precisamente, quando Deus vem habitar no mundo e quando o mundo se torna e experimenta a si mesmo como o lar de Deus.⁴

Assim, o conhecimento produzido pela teologia serve para dar compreensão (discernindo, articulando e recomendando) dessa vida frutífera que caminha rumo à habitação de Deus no mundo. Somente assim a teologia pode dizer que seu objeto último é Deus: “Teologia é sobre o lar de Deus e, consequentemente, sobre Deus, o objeto de preocupação última, e sobre a verdadeira vida que define a direção de nossos esforços”.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Vale ressaltar que o ato de desvelamento de Deus ao ser humano não suspende a limitação da compreensão humana, e a resposta humana à revelação (a teologia) não está à altura da revelação. Veja as questões hermenêuticas que envolvem o tema da revelação de Deus no livro: James K. A. Smith, A queda da interpretação, 2021. Ademais, o que encontramos na revelação especial no texto bíblico do Antigo e do Novo Testamento está sujeito à toda sorte de adaptações e apropriações de nossa parte – a tradução para outras línguas, comentários exegéticos, o estudo da história dos contextos em que o texto foi concebido como forma de buscar entendimento sobre os símbolos ali registrados, e assim por diante.

2. Deixarei a tarefa de responder o quanto de Aristóteles há em Tomás quando o assunto é o ser de Deus para os especialistas em epistemologia e escolástica.

3. Miroslav Volf e Matthew Croasmun, For the life of the world: theology that makes a difference, 2019. 

4. Ibidem, p. 140-141.

5. Ibidem, p. 278.

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