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ARTIGO

Racionalidade pública e discurso religioso

Justificação para além da atrofia da razão

Gabriel Ferreira|

14/06/2024

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Gabriel Ferreira

Graduado, mestre e doutor em Filosofia. Foi Visiting Researcher na Hong Kierkegaard Library, na Universidade de Copenhague, e fez estágio pós-doutoral na Universidade de Pittsburgh. Professor do PPG Filosofia e da Faculdade de Medicina na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.

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Como citar

Ferreira, Gabriel. Racionalidade Pública e discurso religioso: Justificação para além da ptrofia da Razão Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Em 1799, o filósofo e teólogo prussiano Friedrich Schleiermacher publicou uma obra cujo título se poderia traduzir como Sobre a religião: discursos aos educados entre os seus desprezadores (Über die Religion: Reden an die Gebildeten unter ihren Verächtern). O título expressa bem o espírito daqueles aos quais os cinco discursos são dirigidos. Como o próprio autor inicia dizendo no primeiro capítulo, pode parecer surpreendente que alguém ainda queira escrever sobre um assunto completamente negligenciado pelas pessoas “saturadas pela sabedoria do nosso século […] especialmente agora, que a vida das pessoas educadas está distante de qualquer coisa que possa vagamente lembrar a religião”.¹

Dirigindo-se claramente a um público impregnado do espírito iluminista – categoria esta que ainda causa confusões, mesmo nas melhores cabeças –, mas também para os céticos românticos para os quais, em termos gerais, uma apologia à religião soava fora de lugar, Schleiermacher está completamente consciente das objeções que deve enfrentar em seu tempo. No entanto, se é certo que ele se dirige a tal público não sem certa ironia – afinal, por serem desprezadores tão absolutos não podem ser assim tão intelectualmente bem formados –, é igualmente verdadeiro que Schleiermacher acaba por esposar uma concepção de religião que se obriga a se retrair para o domínio da experiência pessoal e interna do sentimento. Mesmo no seu esforço de explicitar a religião como possibilidade genuinamente humana e defensável, Schleiermacher acaba por ter de reduzir drasticamente seu escopo:

A religião não deseja determinar e explicar o universo de acordo com sua natureza, como faz a metafísica; ela não busca dar continuidade ao desenvolvimento do universo e aperfeiçoá-lo pelo poder da liberdade e da escolha livre divina de um ser humano, como faz a moral. A essência da religião não é nem o pensamento nem a ação, mas a intuição e o sentimento.²

Creio ser razoável dizer que hoje, mais de 200 anos depois da obra de Schleiermacher, a imensa maioria das pessoas, em especial ateus e agnósticos, concordariam integralmente com a definição dada acima pelo filósofo e teólogo do século 18. A religião não é – e nem deve ser – um discurso de primeira ordem sobre o mundo, isto é, não deve ter como seu objeto dizer como a realidade se comporta ou se estrutura, assim como também não deveria se imiscuir em questões de moralidade – sobretudo pública. Sua “essência” não está ligada propriamente ao pensamento e à justificativa racional. Ela teria de dizer respeito a elementos que, ao fim e ao cabo, são acessíveis apenas a um único portador, isto é, os sentimentos e intuições pessoais.

Ora, não é difícil ver como essa perspectiva acaba por adequar-se inteiramente a uma concepção de racionalidade que vem sendo gestada e desenvolvida nos últimos 400 anos, e que tem como principal consequência o fato de que uma imensa gama de aproximações à realidade – sendo a religião apenas uma delas – fica, por definição, dela apartada e excluída. A religião, mas também a reflexão filosófica, os aportes da sociologia e da historiografia, acabaram por progressivamente serem esvaziados de seu caráter de produções racionais intersubjetivas para, por fim, terem de se contentar com um espaço bastante diminuto no espaço público, a saber, o da opinião mais ou menos qualificada, a depender do contexto e dos ouvintes. Isso porque nossa noção acerca daquilo que é “racional” foi paulatinamente sendo identificada com um certo tipo de atividade da razão, num fenômeno que tenho chamado de “atrofia da razão”.

A religião, mas também a reflexão filosófica, os aportes da sociologia e da historiografia, acabaram por progressivamente serem esvaziados de seu caráter de produções racionais intersubjetivas para, por fim, terem de se contentar com um espaço bastante diminuto no espaço público [...].

O processo de deflação da nossa concepção de racionalidade é, certamente, devido a uma miríade de elementos teoréticos e históricos. Contudo, é possível visualizar o que estou afirmando de maneira condensada num ponto importante, perceptível em germe já na crítica endereçada por Leibniz às considerações metodológicas de Descartes. Em seus Pensamentos críticos sobre a parte geral dos Princípios de Descartes (de 1692), acerca do primeiro artigo, afirma Leibniz:

Sobre o Artigo 1. O ditame de Descartes de que tudo em que houver a menor incerteza deve ser posto em dúvida poderia ter sido formulado de maneira melhor e mais precisa no preceito de que devemos considerar o grau de assentimento ou discordância que um assunto merece ou, de forma mais simples, que devemos examinar as razões de toda doutrina. Isso acabaria com toda a argumentação sobre a dúvida cartesiana. Mas talvez o autor tenha preferido usar paradoxos para estimular o leitor indolente por meio da novidade. Eu desejaria, no entanto, que ele tivesse lembrado de seu próprio preceito ou, melhor ainda, que tivesse compreendido sua verdadeira força.³

A importância daquilo para o que Leibniz está apontando dificilmente pode ser exagerada. O princípio metodológico cartesiano, que consiste em apenas aceitar – como conhecimento racional digno desse nome – crenças que não se podem colocar em dúvida, despreza o que costumo chamar de “lembrete de Aristóteles”. Na Ética Nicomaqueia, Aristóteles chama atenção para um aspecto que, justamente a partir do movimento de Descartes, torna-se não apenas obsoleto, mas desprezado, a saber, que diferentes objetos demandam diferentes abordagens metodológicas. Não se pode pedir da deliberação ética demonstrações tais como encontramos na matemática. Disso não se segue, em absoluto, que o tipo de raciocínio envolvido na ética não seja, de fato, racional.⁴ Da mesma forma, grande parte das proposições oriundas das crenças religiosas, embora não possam ser demonstradas apoditicamente, não podem ser ditas igualmente como estando numa esfera para além de qualquer possibilidade de justificação racional. Ora, mas uma vez que Descartes identifica conhecimento (racional) e indubitabilidade, não há possibilidade de gradação de justificação, nem de conhecimento, tampouco gradação de verdade. No entanto, parte central da nossa concepção corrente de razão – e de “racional” – assimilou à racionalidade típica da metodologia das ciências naturais, em especial a partir da segunda metade do século 19, o impulso evidencialista cartesiano.

Uma faceta mais explícita do fenômeno que indico aqui se deixa ver naquela que se tornou a exposição paradigmática do que se convencionou chamar de “desafio evidencialista”. Ela pode ser sintetizada em uma das fórmulas presentes no texto clássico de William Kingdon Clifford, matemático e filósofo britânico do final do século 19, The Ethics of Belief [A ética da crença]. A tese principal do escrito é a de que só estaríamos eticamente justificados em manter aquelas crenças para as quais dispomos de evidências suficientes. Assim, conversamente, nas palavras de Clifford, “Em suma: é errado sempre, em todo lugar e para qualquer pessoa, acreditar em algo para o qual se tenha evidência insuficiente”.⁵

Da asserção de Clifford se segue, portanto, que a evidência é tanto a justificação epistêmica de qualquer espécie de crença, como também de seu valor positivo moral. Aqui poderíamos divergir para o longo debate acerca do próprio conceito de “evidência”, já que o seu sentido mesmo não goza de evidência; a resposta à pergunta sobre o que devemos tomar como evidente não é, ela mesmo, evidente. Mas não é isso o que me interessa fazer aqui. O raciocínio que usualmente se depreende daí não é muito sofisticado: em geral, crenças religiosas não são normalmente amparadas por evidências – ou, ao menos, não do tipo do qual dispomos segundo a noção de racionalidade moldada a partir do modelo das ciências naturais –, logo, a partir da premissa maior de Clifford exposta anteriormente, não apenas é uma falha epistêmica, mas é até mesmo uma falha moral sustentar crenças religiosas. E tal raciocínio é geralmente aplicado a crenças morais, filosóficas e quaisquer outras provenientes de outras matrizes de reflexão.

E aqui chegamos a dois pontos fulcrais sobre os quais desejo jogar luz:

  1. Se, por um lado, temos evidência direta de que temos algo como uma vida mental, não temos qualquer evidência de que haja outras mentes – e não robôs ou autômatos emulando algo como mentes – nas outras pessoas. Não há nenhuma justificativa direta para a existência de outras mentes a não ser a similaridade com a nossa própria vida mental; as outras pessoas parecem estar performando a mesma coisa que nós, que temos mente, fazemos. Disso obviamente não se segue que elas possuam mente como nós. O mesmo ocorre quanto ao passado. Como nos lembra Bertrand Russell, em The Analysis of Mind, não é uma impossibilidade lógica que o mundo tenha sido criado há cinco minutos com pessoas que têm, em si, memórias totalmente irreais sobre um passado que nunca aconteceu. Dito de outro modo, não temos evidência alguma sobre o passado para além de indícios. O que acabei de dizer é importante não pela querela em si acerca daquilo para o qual temos ou não evidência, mas sobretudo por mostrar que a vida humana cotidiana, prática, o que inclui o debate público de posições e decisões sociais e políticas, está assentada essencialmente sobre uma série de pressupostos sobre os quais não temos evidência (sobretudo nos moldes, novamente, das ciências naturais), mas que são incontornáveis, inclusive para as grandes decisões moralmente relevantes, seja na esfera individual, seja na dimensão coletiva;
  2. Ora, se o que disse anteriormente é verdadeiro, segue-se que tanto as nossas articulações e ações mais fundamentais quanto qualquer movimento feito na esfera pública dos debates e das discussões dependem de um conjunto de axiomas e pressupostos que não são passíveis, eles mesmos, de serem demonstrados. Eles são aceitos de maneira tácita como pontos de partida para outras demonstrações e outras justificativas. Note-se, no entanto, que ainda que o leitor mais perspicaz possa perceber aqui certa relação para com as posições de Alvin Plantinga e de Nicholas Wolterstorff, não estou especialmente preocupado com o problema da justificação de certas verdades teológicas. O problema para o qual desejo chamar atenção não é o problema da verdade da religião, senão que é a questão acerca da legitimidade racional, para o debate público intersubjetivo, de teses, posições, argumentos e perspectivas provenientes de uma visão de mundo religiosa, mas também advindas da reflexão filosófica, sociológica, historiográfica etc.⁶

Ora, de que certos raciocínios partam de pressupostos e axiomas que se impõem por si ou que não podem ser eles mesmos derivados de outros não se segue que a cadeia de justificação não seja racional. Isso significa duas coisas. A primeira é que é preciso combater aquela atrofia do conceito de racionalidade e restabelecer uma concepção – válida e operante por mais de 2000 anos – que compreende que diferentes tipos de objetos demandam e moldam diferentes formas de ação da nossa faculdade racional.⁷ Aqui, na afirmação pública de teses e no debate daí decorrente, a racionalidade da justificativa encontra-se precisamente na explicitação da cadeia de inferências que permite que outros acessem precisa e claramente o percurso que se está desenvolvendo. A segunda é que, com isso, estou afirmando que uma concepção inferencialista de racionalidade nos ajuda aqui a compreender melhor o que acontece todas as vezes que nos engajamos numa discussão intersubjetiva. Ser racional é, antes de tudo, tomar parte num jogo de pedir e dar razões e ser capaz de compreender e mapear as conexões inferenciais de cada tese ou ideia, isto é, ser proficiente na identificação de quais consequências se seguem logicamente de determinada asserção, quais lhe são logicamente incompatíveis e, por fim, de quais outras tal afirmação é logicamente derivada.⁸

Ser racional é, antes de tudo, tomar parte num jogo de pedir e dar razões e ser capaz de compreender e mapear as conexões inferenciais de cada tese ou ideia [...].

Do ponto de vista da discussão pública sobre quaisquer temas de interesse geral, isso significa que o acento da justificação deve recair no sopesamento das razões, em suas consequências e em quais outras razões ela interdita, e, principalmente, que essa dinâmica não pode ser sempre dirimida no âmbito das evidências em sentido estrito. A irredutibilidade da racionalidade pública à simples apresentação de evidências deixa-se ver facilmente quando um cientista propõe – direta ou por meio de agentes institucionais – alguma medida na esfera pública.⁹ Se do ponto de vista interno da justificação científica a evidência desempenha papel preponderante na decisão sobre a eficiência ou não de um fármaco ou de um tratamento, por exemplo, mesmo quando é um cientista que propõe o uso ou a adoção na esfera pública, a justificação evidencialista tem agora seu poder limitado. De que tenhamos evidência sobre a eficácia de X não se segue diretamente, sem nenhuma outra determinação auxiliar, que X deve ser, por exemplo, tomado como política institucional. O corpo de evidências para X desempenha agora um papel auxiliar na discussão sobre, por exemplo, a adoção de X para toda a população. Isso porque a afirmação “X deve ser adotado (pelo governo)” não depende apenas da eficácia de X, mas também da aferição da validade e da justificação de uma série de outras inferências, como se a adoção de X é possível economicamente, se a adoção de X não conflita com Y, já adotado previamente, se a adoção de X levanta problemas de tipo moral etc. A própria questão sobre se evidências científicas devem se sobrepor a justificações morais é, ela mesma, uma pergunta que não pode ser respondida por evidências.

Se agora transpusermos o exemplo meramente formal apresentado anteriormente para a dinâmica do debate acerca de temas concretos moralmente salientes como, aborto, eutanásia, manipulação genética ou clonagem, vemos que o costume usual de dissolver a razoabilidade de outras posições que não a estritamente científica – em especial a religiosa e a filosófica – é, ela mesma, injustificável. Agora, do ponto de vista da sustentação da justificação na esfera da discussão pública, todas as posições devem ser capazes de fornecer razões e devem confrontá-las com outras em suas consequências e incompatibilidades com outras categorias de razões e, no caso de dúvidas ou impasses, estas devem ser dirimidas no interior desta mesma rede de interpretação e sopesamento inferencial.

Neste ponto, deveria ficar claro, portanto, que, se é verdade que o discurso de tipo religioso não pode prescindir de elementos subjetivos, como afirmava Schleiermacher, é igualmente verdadeiro que a religião, como visão de mundo omniabrangente, não pode se furtar a determinar certas posições no debate público de ideias, em especial aquelas moralmente relevantes. Não se pode aceitar sem mais que, pelo fato de que a religião contenha certos princípios e axiomas para os quais não tenhamos evidência (em sentido estrito), logo ela deveria se recolher à esfera subjetiva da “sensibilidade” por estar a priori impedida de fornecer justificativas intersubjetivas. Tal inferência só foi aceita porque tacitamente aceitamos também um atrofiamento da nossa faculdade racional que, hoje, apresenta-se como um dos mais prementes desafios da nossa atual concepção de mundo.¹⁰

Não se pode aceitar sem mais que, pelo fato de que a religião contenha certos princípios e axiomas para os quais não tenhamos evidência (em sentido estrito), logo ela deveria se recolher à esfera subjetiva da “sensibilidade” por estar a priori impedida de fornecer justificativas intersubjetivas.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Friedrich Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers, 1996, p. 3. Todas as traduções são de minha responsabilidade.

2. Ibidem, p. 22.

3. Gottfried Wilhelm Leibniz, Philosophical Papers and Letters: A Selection, 1976, p. 383.

4. Sobre os impactos disso na reflexão política, veja-se Gabriel Ferreira, “Oakeshott e a Gênese Do Racionalismo Moderno: Algumas Considerações Sobre a Seção III de Rationalism in Politics”, Veritas (Porto Alegre), v. 68, n. 1, 2023. Clique aqui para acessar.

5. William Clifford, “The Ethics of Belief,” in William K. Clifford – Lectures and Essays, 1886, p. 186.

6. Como o leitor também pode notar, o problema aqui é consequência da querela de fins do século 19 entre as Naturwissenschaften (Ciências da natureza) e as Geisteswissenschaften (Ciências do espírito), assim como de sua reformulação – fundamentalmente neokantiana – em termos de um problema da cultura.

7. Como se sabe, isso é evidente inclusive nas matemáticas e na lógica. Contudo, deixo o recurso a esses exemplos de lado em prol do enfoque mais geral.

8. Em linhas gerais, esse é o expressivismo lógico tal qual articulado por Robert Brandom em diversas obras. Veja-se, em especial, Robert Brandom, Making It Explicit: Reasoning, Representing, and Discursive Commitment, 2001.

9. Para a origem da ideia contemporânea de racionalidade pública, veja: John Rawls, “The Idea of Public Reason Revisited,” The University of Chicago Law Review, v. 64, n. 3, 1997, p. 765. Clique aqui para acessar.

10. Desenvolvo de maneira mais aprofundada uma defesa inferencialista da racionalidade do discurso religioso, em conjunto com Alex Ribolli, em: Gabriel Ferreira e Alex Ribolli, “O Espaço Lógico Das Razões de Wilfrid Sellars e a Racionalidade Do Discurso Religioso: Uma Vindicação”, Síntese: Revista de Filosofia, v. 50, n. 158, 2023, p. 447. Clique aqui para acessar.

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