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Acaso as humanidades criam conhecimento?

Marcelo Cabral|

12/04/2024

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Marcelo Cabral

Doutorando em filosofia pela Universidade Livre de Amsterdam e pela UNICAMP, estuda comunidades epistêmicas e sua relação com virtudes e vícios intelectuais. Possui mestrado em estudos teológicos pelo Calvin Theological Seminary. Possui graduação em filosofia e economia pela UNICAMP.

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Cabral, Marcelo. Acaso as humanidades criam conhecimento? Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

O nascimento e o objetivo das humanidades

No grande clássico de Humberto Eco, O Nome da Rosa, somos imersos na vida monástica e nas dinâmicas da abadia como locus fundamental da atividade intelectual durante a baixa Idade Média. Firmados no mote ora et labora, monges se dedicavam a traduzir, copiar e comentar manuscritos, em um movimento semidialético de preservar/impulsionar o conhecimento. A história também denuncia uma profunda transformação, já em curso, na economia do conhecimento, em que as nascentes universidades – como Oxford, Paris e Bolonha – começam a ocupar e transformar o papel intelectual que até então era dominado pelos monastérios.

Nas nascentes universidades, o conhecimento disciplinar era dividido em duas grandes áreas: o studium divinitatis, devotado ao estudo da teologia escolástica, focado na revelação divina e na capacidade humana de apreciá-la; e a studia humanitatis, devotada ao estudo das coisas humanas, incluindo as diversas artes contidas em textos antigos, da poesia à pintura até à filosofia natural e mineração.¹

O projeto intelectual universitário nascente, assim, não objetivava primeiramente a expansão rápida do conhecimento proposicional, como ocorre na universidade moderna, mas sim o cultivo de um certo tipo de erudição que prepararia o caráter moral e as capacidades intelectuais dos estudantes para uma vida de estudo, contemplação e autotransformação. Como afirmaria Erasmo de Roterdã, as formas humanistas de escrita e sociabilidade, assim como seus métodos – o ato de ler rigorosa, cuidadosa e metodicamente – produziria efeitos morais salutares.

Desde sua origem, entretanto, não era claro o que significavam as humanidades. Um conjunto de disciplinas acadêmicas? Uma forma de humanismo? Um conjunto único de habilidades e modos de conhecer? Um tipo de autocultivo do intelecto e do caráter? É certo que as humanidades desempenharam parcialmente todos esses papéis, de modo mais ou menos claro, mais ou menos efetivo, e mais ou menos harmonioso até a emergência da universidade moderna, no início do século 19, na Alemanha.

O nascimento da universidade moderna é marcado pelo papel cada vez mais proeminente que as ciências naturais assumem na economia do conhecimento e na divisão disciplinar, progressivamente mais centrada na expansão e produção do conhecimento. Qual, então, é o papel que sobraria às humanidades? As respostas foram (e ainda são) muitas e variadas. Curiosamente, entretanto, remontam aos temas medievais: devem as humanidades servir como repositório e ruminação das tradições humanísticas (ou, em algumas versões, dos “valores ocidentais”)? Devem inculcar habilidades específicas? Devem levar ao cultivo de virtudes intelectuais? Ou, assim como as ciências naturais, devem ser disciplinas que visam à expansão e produção de conhecimento?

No recente livro Do the Humanities Create Knowledge?, Chris Haufe se propõe a oferecer um panorama argumentando que sim, e de modo muito similar às ciências naturais, as disciplinas de humanidades também criam conhecimento. Como todo conhecimento acadêmico, o conhecimento humanístico é de difícil aquisição, requer anos a fio de treino guiado nas práticas disciplinares específicas, de imersão nas apropriadas tradições intelectuais e de um grande esforço coletivo. Em uma passagem que se torna um vetor para estruturação de todo seu argumento, Haufe cita Collini:

Publicação nas humanidades, portanto, nem sempre é uma questão de comunicar "novas descobertas" ou de propor uma "nova teoria". É, frequentemente, a expressão de um entendimento aprofundado que algum indivíduo adquiriu, por meio de muita leitura, discussão e reflexão, sobre um tópico que, em algum sentido, é "sabido" há muitas gerações.²

No restante deste artigo, seguirei em três seções. Na primeira, apresentarei as ideias centrais do livro, destacando o que Haufe quer dizer com “conhecimento disciplinar” e como ele se desenvolve. Na segunda seção, esboçarei três problemas do livro que, conforme apontarei, limitam a força dos argumentos e das conclusões do autor. Na terceira seção, por fim, apontarei duas questões que considero relevantes que, conquanto não sejam foco de Haufe, são suscitadas por suas análises conceituais e que merecem nossa atenção.

O que significa dizer que as humanidades criam conhecimento? A proposta de Chris Haufe

Como já anunciei na seção anterior, Haufe defende que os modos de produção de conhecimento nas humanidades se assemelha muito aos das ciências naturais – uma tese que é, no mínimo, polêmica. Seu ponto de partida é alegar que em todos os campos acadêmicos o bem epistêmico fundamental não é o conhecimento proposicional, mas o entendimento, que depende não tanto de se descobrir verdades, mas de certos consensos de comunidades de especialistas, consensos estes que giram não primariamente em torno de conteúdos específicos, mas de normas de prática excelente. Ele diz: “o que temos tanto nas ciências naturais como na humanidades, assim, é uma abordagem à investigação e ao treino de futuros acadêmicos que é focada e delimitada pelo desenvolvimento de um consenso acadêmico”.³

Alegar consenso nas humanidades é entrar em um terreno espinhoso. Mas, para elucidar, do modo mais generoso possível, organizarei a tese em dois passos argumentativos fundamentais:

(I) Conhecimento disciplinar não é o acúmulo de verdades proposicionais, mas é o consenso de uma comunidade de experts em torno de certas ideias e estruturas teóricas que se mostram frutíferas.

(II) O consenso se dá não primariamente em torno de proposições declarativas, mas de normas e padrões que delineiam excelência intelectual.

(I) Conhecimento disciplinar

Haufe contrasta a noção de “conhecimento disciplinar” com o conceito de “conhecimento proposicional” tal qual empregado em filosofia analítica. Este último é normalmente retratado como alguma variação da fórmula “crença verdadeira justificada”. Já o conhecimento disciplinar, ele aponta, é uma ideia que foi aceita por uma comunidade acadêmica: “uma ideia se torna conhecimento quando é adotada pela relevante comunidade científica”,⁴ isto é, quando a ideia é usada pelos membros da comunidade como parte de um background mais ou menos incontestado para pesquisa e ensino na disciplina.

Tais ideias, ele defende, possuem a propriedade fundamental de serem “frutíferas”, isto é, capazes de levar a novos insights, conceitos, explicações e interpretações, seja do mundo natural ou dos objetos das humanidades. O conhecimento disciplinar, assim, parece aliado ao que Thomas Kuhn denominou “ciência normal”, que funciona a partir de modelos teóricos amplamente aceitos na comunidade e que estruturam a busca e resolução de problemas na disciplina.

Um problema evidente do paralelo entre ciências naturais e humanidades é que, enquanto naquelas a noção de consenso parece pouco problemática, nestas é altamente contestado. Tome a teoria política, ou filosofia, por exemplo, e para cada tese defendida haverá diversas objeções, e para cada posição teórica haverá muitas alternativas.

Diante desse problema, Haufe argumenta que o consenso é indispensável para qualquer área de investigação funcionar apropriadamente e que o consenso não se configura em torno de teses específicas ou de conteúdos propositivos. Ele é indispensável porque mesmo as práticas comuns de desacordo entre pares só são possíveis e frutíferas diante de certos valores epistêmicos compartilhados, que fornecem os parâmetros do que conta, dentro de uma disciplina, como “entendimento aprofundado” e contribuições genuínas:

Em cada área, o consenso é utilizado pelos membros da disciplina como o mais claro possível index do que deve guiar a pesquisa futura. Quão mais entrincheirado se torna, mais ele vem a funcionar como um tipo de linguagem de pensamento e comunicação acadêmica – menos como um corpo de compromissos conscientes e substantivos em relação a certas proposições e mais como uma estrutura e um espírito por meio dos quais é possível (e normativo) refletir, expressar e investigar questões disciplinarmente importantes.⁵

Isso nos leva ao segundo passo argumentativo.

(II) Consenso normativo

Esta etapa argumentativa pode ser explicitada nas seguintes alegações:

    1. O consenso disciplinar ocorre em torno das normas e padrões (valores epistêmicos) que resistem representação proposicional.
    2. Esses valores são incorporados nos trabalhos exemplares, os grandes feitos intelectuais da disciplina, normalmente organizados em um tipo de cânon.
    3. Esses exemplares tornam salientes características e propriedades estimadas pela comunidade em valores epistêmicos que a disciplina considera fundamentais.
    4. Tais valores são ensinados por meio de uma sistemática, curada e contínua exposição e engajamento com o cânon, e não por meio de ensino formal das normas.
    5. Parte do que anima o progresso intelectual de uma disciplina é tentar fornecer conteúdo proposicional para as normas e os valores epistêmicos que a subjazem.

 

O consenso é mais sobre os valores epistêmicos do que sobre conteúdos proposicionais (1). Assim, Haufe exemplifica, os filósofos e cientistas políticos não concordam, ou não precisam concordar, a respeito das alegações de verdade dos autores centrais de sua tradição. Eles não concordam com Hobbes que todos devem se submeter ao governo de um autocrata, nem precisam concordar com o tipo de liberalismo proposto por John Rawls. Mas eles geralmente concordam que Hobbes inaugura um novo modo de se pensar sobre política, e que Rawls modela de algum modo as normas que devem ser usadas como guias para estruturar problemas em filosofia política.

os filósofos e cientistas políticos não concordam, ou não precisam concordar, a respeito das alegações de verdade dos autores centrais de sua tradição.

Como compreender essas normas? Como explicitar tais valores epistêmicos? Por sua própria natureza, tais propriedades são de difícil externalização, aproximando-se do que Michael Polanyi entendia como conhecimento tácito, de impossível ou difícil articulação teórica. Tais valores e normas são incorporados nos textos-chave, nas grandes obras e feitos intelectuais de uma disciplina (2). Isto é o cânon para Haufe: não um repositório dos valores ocidentais, nem uma lista imutável de livros clássicos, e menos ainda um conjunto de verdades a serem aceitas, mas a coleção de trabalhos que uma certa disciplina ou tradição intelectual compreende como manifestando os mais importantes atributos que apontam o que significa excelência:

Dominar o cânon de uma disciplina não é um mero feito para acadêmicos que querem se mostrar para impressionar os outros ou para alavancar suas causas sociais, nem um alvo arbitrário que eles devem conquistar para conseguir seus diplomas. É um pré-requisito para a inclusão em uma comunidade acadêmica, porque conhecer o cânon leva as pessoas a pensarem do modo que os acadêmicos dessa disciplina pensam.⁶

Por que tais valores e normas são de difícil externalização proposicional ou conteudista? Pense, por exemplo, na tradição da filosofia analítica contemporânea, que estima valores epistêmicos tais como clareza, rigor argumentativo e precisão conceitual. O que é clareza? O que é rigor argumentativo? E precisão conceitual? Para compreender, é preciso ler, reler e imergir nos textos que a comunidade de filósofos analíticos considera exemplares na manifestação desses valores. Ler um texto sobre “o que é a clareza” será, no mínimo, insuficiente. Assim, as normas que regulam definições e uso de experimentos mentais também é aprendida ao se devotar aos textos exemplares – o cânon – que exibem como tais normas podem ser bem-empregadas (3).

Assim, os iniciantes de uma disciplina precisam passar por um longo processo de imersão no cânon, guiado e curado por especialistas, para absorverem tais valores e normas (4). Ademais, os alunos são incentivados a serem capazes de reproduzir, seja em textos, experimentos ou outras atividades intelectuais, as qualidades prezadas pela disciplina. Nisso, Haufe aponta, as humanidades são muito semelhantes às ciências naturais, nas quais o aprendizado também envolve esse tipo de exposição curada e sistemática aos modos de enxergar, pensar e solucionar problemas. Não à toa, Kuhn cunhou em sua obra seminal o termo “paradigma”, que são os exemplares que guiam o modo de uma comunidade enxergar e atuar sobre seus problemas relevantes.

Por fim, é claro que tais valores e normas são fonte de um esforço constante de entendimento por parte das comunidades acadêmicas (5). Enquanto esse entendimento é vital para o progresso da disciplina, ele será sempre incompleto e disputado.

As humanidades produzem conhecimento? Sim, produzem conhecimento disciplinar, que são as ideias que uma comunidade acadêmica identifica como frutíferas e podem ser assumidas para as investigações da comunidade. Elas se baseiam em certos consensos fundamentais ao redor de normas e valores epistêmicos que sinalizam o tipo de trabalho intelectual que é valorizado e que conta como conquista cognitiva (cognitive achievement) para a comunidade. Tais valores são incorporados em cânones e transmitidos por meio de uma exposição prolongada, sistematizada, guiada e curada pelos especialistas, que ensinam como identificar as características salientes do paradigma da disciplina. Assim, o conhecimento gerado parece menos com a descoberta de novos fatos e mais com um aprofundamento do entendimento.

As humanidades produzem conhecimento? Sim, produzem conhecimento disciplinar, que são as ideias que uma comunidade acadêmica identifica como frutíferas e podem ser assumidas para as investigações da comunidade.

Limitações da proposta de Haufe

Nesta seção, irei apontar brevemente o que considero três limitações relevantes na proposta de Haufe. A primeira limitação diz respeito a sua posição radicalmente antirrealista da natureza da ciência e das humanidades. Isto é, para ele, o conhecimento gerado não precisa ter nenhuma conexão direta com a verdade; basta que as ideias sejam frutíferas e endossadas pela comunidade. Essa é uma posição polêmica, e ele oferece poucos subsídios para aceitá-la. Haufe também faz pouca referência ao debate a esse respeito em filosofia da ciência. Além disso, será que sua tese depende de tal posição antirrealista?

Ao dizer que ideias frutíferas não devem ser identificadas com proposições verdadeiras, isso não implica que a verdade não ocupa nenhum papel epistêmico relevante nos feitos disciplinares. Nas ciências naturais, por exemplo, mesmo que muitos modelos teóricos e objetos inobservados sejam instrumentos idealizados, é relevante que eles se aproximem, em alguma medida, do que ocorre de fato na natureza. Nas humanidades, a despeito de certo senso comum antirrealista, as verdades factuais têm um papel importante, por exemplo, na afirmação de fatos históricos; mas, além disso, a verdade tem um papel regulador: dizemos que uma interpretação é melhor do que outra, que tal argumento é mais sólido que outro e que certa posição tem mais evidências que outra. Embora isso não equivalha a verdades absolutas, aponta para uma dimensão epistêmica normativa do conhecimento disciplinar.

A segunda limitação é a descrição fraca que Haufe oferece do conceito de entendimento. Afinal, seu ponto de partida é que todas as disciplinas acadêmicas têm por objetivo intelectual não o conhecimento proposicional, mas o aprofundamento do entendimento. O que, exatamente, entretanto, ele quer dizer por entendimento? Novamente, ele não oferece muita coisa para além de algumas frases genéricas. Ele faz pouca referência à abundante literatura em epistemologia do entendimento⁷ que poderia, acredito eu, fornecer-lhe elementos teóricos para deixar sua tese ainda mais robusta. A proposta de Wayne Riggs, por exemplo, que conecta entendimento com a noção de perspectivas, o ajudaria na sua proposta de conectar conhecimento disciplinar com as noções de conhecimento tácito de Polanyi e de paradigma de Kuhn. A proposta de Stephen Grimm, relacionando entendimento com controle do espaço cognitivo modal, poderia ser uma boa saída para superar a dicotomia de sua proposta entre conhecimento disciplinar e conhecimento proposicional. Mas esses são apenas alguns exemplos.

Por fim, embora a grande questão que Haufe se propõe a responder seja sobre o conhecimento gerado nas disciplinas de humanidades, a maioria dos exemplos oferecidos são das ciências naturais. Isso serve ao seu objetivo de mostrar como sua proposta de conhecimento disciplinar é válida tanto para ciências como para as humanidades, e os exemplos das ciências são bons. Entretanto, há poucos exemplos do conhecimento disciplinar em humanidades; quase sempre sua referência é à filosofia política, especialmente a Hobbes e Rawls. As humanidades, entretanto, são um vasto campo disciplinar, com pouca unidade metodológica, com diversos problemas para a ideia de consenso. Seria de se esperar que ele fornecesse mais exemplos, e de uma variedade de disciplinas, para dar substância a sua alegação de que sua tese é apta para descrever as conquistas intelectuais e a produção acadêmica das humanidades.

Duas grandes questões 

As duas questões finais de que tratarei nesta seção são interessantes e de alta relevância, e, mesmo não sendo tratadas por Haufe, quero ao menos sugeri-las. A primeira diz respeito à conexão entre valores epistêmicos e valores não epistêmicos; mais especificamente, como a aquisição dos valores epistêmicos exigidos para ser um participante de uma comunidade acadêmica interfere na rede total de valores da pessoa, com implicações para além dos cercos da academia. A segunda – mais polêmica, assumo – diz respeito à relação entre o intelectual acadêmico e o intelectual orgânico, e a maior importância do primeiro em relação ao segundo. (Visto que o óbvio cada vez mais precisa ser repetido, não defendo que o intelectual orgânico não é confiável ou importante. Também não afirmo que o intelectual acadêmico é livre de vícios institucionais, limitações cognitivas, vieses e falhas de vários gêneros).

Valores epistêmicos e visão de mundo

Valores epistêmicos são, não obstante, valores, e por isso afetam o modo que seu possuidor valoriza objetos e experiências, seus padrões de atribuição de saliência, suas disposições atencionais e, assim, o modo como percebe a realidade. Como diz Haufe, “o engajamento tutoriado com o cânon é essencial para transformar a percepção do praticante em modos que permitem que propriedades disciplinares significantes penetrem em sua consciência”.⁸ Valores epistêmicos assim, e por serem produtos de uma longa, sistemática e direcionada imersão, afetam o modo como percebemos e interpretamos a realidade.

Valores epistêmicos, ademais, estão intimamente conectados com o entendimento e, portanto, com o modo como seu possuidor conecta diversos aspectos de um certo campo do saber, como estabelece relações de dependência e quais propriedades são elevadas ao nível de princípios. Isso também afeta a maneira como enxerga e compreende a realidade.

Dito isso, valores epistêmicos, se não criam demandas imediatas para seu possuidor em termos morais, talvez o faça por vias indiretas, e  disso pode decorrer uma crise entre seus valores morais e espirituais, por um lado, e seus valores epistêmicos, por outro. Não penso ser uma crise fundamental, isto é, uma crise que não tem solução à parte de uma mudança em seu conjunto de valores. Mas pode se configurar como uma dificuldade por conduzir a atitudes ao menos parcialmente díspares diante de certas experiências, ocasiões, eventos ou objetos.

Intelectual acadêmico e intelectual orgânico

Por intelectual acadêmico entendo o intelectual que teve sua formação, titulação e reconhecimento por meio de instituições acadêmicas oficiais e reconhecidas. Por intelectual orgânico me refiro à noção – parcialmente baseada em Gramsci – do intelectual que tem sua publicação, atuação e reconhecimento por meios não institucionalmente acadêmicos, como no caso de intelectuais que se promovem via cursos pessoais, via plataformas não acadêmicas ou por perfis meramente digitais. A diferença entre eles está, creio, no modo distinto de como se relacionam com os valores epistêmicos conectados ao conhecimento disciplinar.

Os valores acadêmicos são um tipo de valor epistêmico difícil de adquirir e manifestar. Requerem longos anos de treino específico, de práticas repetidas, cuidadosas, minuciosas de absorver os exemplares canônicos e aprender a reconhecer e reproduzir os valores epistêmicos em trabalhos originais. Para cada disciplina, existe uma comunidade acadêmica que, por meio de vários mecanismos institucionais, garante a verificação e avaliação de se certa obra ou trabalho demonstra os valores acadêmicos relevantes. As exigências de tal comunidade são altas, altíssimas até. As melhores revistas científicas de uma disciplina, por exemplo, são aquelas nas quais apenas trabalhos que se sobressaem em termos de incorporar os valores acadêmicos são aceitos e publicados.

Os valores acadêmicos são um tipo de valor epistêmico difícil de adquirir e manifestar. Requerem longos anos de treino específico, de práticas repetidas, cuidadosas, minuciosas de absorver os exemplares canônicos e aprender a reconhecer e reproduzir os valores epistêmicos em trabalhos originais.

No caso do intelectual orgânico, mesmo quando o trabalho demonstra certos valores epistêmicos, os critérios e padrões são muito menores para sua validação, visto que não há uma comunidade acadêmica ou mecanismos institucionais que devem, por assim dizer, ser convencidos do valor do trabalho. Basta que ele seja aceito pela comunidade de não especialistas, em que outros valores não epistêmicos podem facilmente ter um peso maior (como o carisma, retórica etc.). Isso acarreta ao menos duas limitações do trabalho do intelectual orgânico em comparação ao acadêmico.

Em primeiro lugar, não especialistas não possuem o treino, habilidades cognitivas e informações suficientes para avaliar se certo trabalho intelectual é ou não representativo no assunto que se propõe a tratar; pode ser que o trabalho seja uma opinião que já foi refutada; pode ser que seja uma ideia marginal vendida como importante; pode ser que falhe em outros aspectos que só os especialistas seriam capazes de detectar. Assim, o trabalho do intelectual orgânico não passa por um filtro suficientemente seletivo e rigoroso para garantir sua qualidade epistêmica.

Em segundo lugar, os não especialistas são incapazes de averiguar se o trabalho possui realmente virtudes epistêmicas ou se só aparenta possuir. Avaliar a qualidade de argumentos, a qualidade das fontes utilizadas, por exemplo, são trabalhos árduos que requerem competências apropriadas.

Esse ponto se conecta com a conclusão do livro de Haufe. As humanidades precisam ser reconhecidas e admiradas, ele aponta, porque elas, assim como as ciências naturais, produzem um conhecimento muito difícil de ser adquirido. Embora não especialistas gostem de aprender e comentar sobre filosofia, história, literatura e política, isso não deve ser confundido com o conhecimento gerado e validado dentro das comunidades disciplinares. Banalizar a dificuldade desse conhecimento é, portanto, colocar em risco a sanção social e o apelo cultural de todas as áreas acadêmicas. Ao passo que intelectuais orgânicos possuem importância para disseminação e contextualização de ideias, sua importância epistêmica é relativamente menor do que a do intelectual acadêmico.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Paul Reitter and Chad Wellmon, Permanent Crisis: The Humanities in a Disenchanted Age, 2021, p. 11.

2. Chris Haufe, Do the Humanities Create Knowledge?, 2023, p. 20-1, apud Collini, 1999, p. 243.

3. Haufe, 2023, p. 48.

4. Ibidem, p. 28.

5. Ibidem, p. 48. 

6. Ibidem, p. 52.

7. Catherine Z. Elgin, “Epistemic Virtues in Understanding,” in The Routledge Handbook of Virtue Epistemology, ed. Heather Battaly, 2018; Jeroen de Ridder, “Online Illusions of Understanding”, Social Epistemology, v. 0, n. 0, 2022; Michael Hannon, “Recent Work in the Epistemology of Understanding”, American Philosophical Quarterly, no prelo; Jonathan L. Kvanvig, “Understanding,” in The Oxford Handbook of the Epistemology of Theology, ed. William J. Abraham e Frederick D. Aquino, pp. 175-89, 2017; Wayne D. Riggs, “Understanding ‘Virtue’ and the Virtue of Understanding”, in Intellectual Virtue: Perspectives From Ethics and Epistemology, ed. Michael DePaul e Linda Zagzebski, pp. 203-26, 2003; Stephen Grimm, ed., “The Routledge Handbook of Virtue Epistemology,” in Understanding as an Intellectual Virtue, p. 340-51, 2019.

8. Haufe, 2023, p. 60.

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