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O dilúvio aconteceu

Talvez não da forma como se imagine

Pamella Carneiro|

05/04/2024

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Pamella Carneiro

Química (UFPA) e Mestra em Físico-Química (UNICAMP). Pesquisa na área de Química Teórica e Dinâmica Molecular com estudos de Estrutura-Atividade, Dinâmica, Modelagem Molecular e Quimiometria.

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Como citar

Carneiro, Pamella. O dilúvio aconteceu: talvez não da forma como se imagine. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Quando se trata das visões cristãs acerca das origens na Terra, as discussões inevitavelmente passam pelo dilúvio bíblico em Gênesis 7. A compreensão da história de Noé se dá a partir das exegeses possíveis do texto de Gênesis 1-11 e as formas como os cristãos relacionam ciência e religião.

As leituras literalistas argumentam que Gênesis é um relato cronológico e histórico, e portanto, o dilúvio aconteceu exatamente nos termos em que é descrito. Nesse sentido, um evento global que extinguiu toda a vida na Terra.¹ No entanto, exegeses que compreendem o texto em seu estilo literário e contexto histórico-cultural discutem as possibilidades a partir do conceito de “História Teológica”, como argumentam John Walton e Tremper Longman III: A história do dilúvio é baseada em um acontecimento real em que o autor de Gênesis emprega recursos literários com fins teológicos. Nesse caso, o dilúvio teria sido mundial em relação às pessoas e aos animais associados ao mundo conhecido da época, o que não quer dizer global.

Cremos na existência do acontecimento que inspirou a história, afinal, Gênesis 6-9 é um histórica teológica. Entretanto, acreditamos que o melhor entendimento de Gênesis 1-11, o qual obviamente inclui o relato do dilúvio, é que a narrativa trata de acontecimentos passados reais pelo uso de linguagem figurada.²

Esta abordagem não é recente³ e pode ser conciliada com as evidências científicas de que a Terra é antiga, contudo, a ausência de evidências geológicas para um dilúvio global não deveria ser desprezada.⁴ Por isso, alguns autores indicam possibilidades para o evento que inspirou a história do dilúvio.

Hugh Ross,⁵ por exemplo, sugere que o dilúvio pode ter ocorrido na última era glacial, em que migrações pelo deserto Rub’ al-Khali seriam possíveis. Também um período em que uma área do golfo pérsico e mar vermelho era de terra firme e poderia haver migração constante de populações humanas do Oriente Médio e África para a Europa, Ásia ocidental, Austrália e América do Norte e Sul. Dessa forma, a inundação conseguiria atingir toda a população humana da época.

Há também alguma associação do dilúvio aos eventos de extinção e especiação em massa que ocorreram no planeta.⁶ Com 4,5 bilhões de anos, a Terra passou por cinco grandes extinções, sendo a mais recente há 65 milhões de anos; o chamado Cretáceo-Paleógeno. As demais se localizam no Ordoviciano-siluriano há 440 milhões de anos, Devoniano há 370-360 milhões de anos, Permiano-Triássico há 250 milhões de anos e Triássico-Jurássico há 200 milhões de anos.

Pensando nessas possibilidades, se considerarmos que o último máximo glacial pode ser localizado há 21 mil anos no Pleistoceno, e que há um consenso do surgimento do Homo sapiens há 195 mil anos na África (embora alguns autores sugerem até 300 mil anos), entre cerca de 120 mil e 90 mil anos atrás, essa espécie já teria migrado para o Oriente Médio e se espalhado por todo o planeta.⁷ Embora tenha havido uma extinção substancial de megafauna do Pleistoceno, não é possível afirmar que todas as espécies já existentes na Terra foram aniquiladas.⁸

Embora tenha havido uma extinção substancial de megafauna do Pleistoceno, não é possível afirmar que todas as espécies já existentes na Terra foram aniquiladas.

À semelhança de Israel, outros povos no antigo Oriente Próximo (~6.000 – 10.000 a.C.),⁹ mais especificamente a Suméria, Babilônia e Assíria, também possuem histórias diluvianas em suas narrativas de criação. Nestes casos, o dilúvio é descrito como uma narrativa de destruição da humanidade, e embora estas hipóteses possam ser levantadas, não faz sentido que as mitologias dessas sociedades estejam descrevendo um evento muito anterior à existência da espécie do ser humano moderno ou das civilizações do antigo Oriente Próximo.

Civilizações hidráulicas

E as águas prevaleceram excessivamente sobre a terra; e todos os altos montes que havia debaixo de todo o céu, foram cobertos (Gênesis 7.19).

As águas subiram até quase sete metros acima das montanhas (Gênesis 7.20).

A Mesopotâmia é uma região onde, historicamente, muitas inundações destrutivas foram registradas. Por causa disso, as civilizações localizadas na região do antigo oriente (Oriente Médio e litoral do Mediterrâneo Oriental) são chamadas por alguns autores de “civilizações hidráulicas”. Estendendo-se em meio a terras áridas e extensos desertos, às margens dos grandes rios como o Nilo, o Tigre, o Eufrates e Jordão encontraram áreas férteis para se desenvolver. Para conter a violência dos rios, esses povos desenvolveram tecnologias de barragens, obras para controle alimentar e de irrigação, agricultura, redução de perdas e controle de inundações 6.000 anos a.C.¹⁰

Tigres e Eufrates (Gênesis 2.14) são indicados como rios violentos em períodos de cheias, com grande volume de água e que provocaram inundações e estouros catastróficos de barragens com frequência.¹¹ Registros falam de alagamentos que cobriam o solo “até onde os olhos não alcançam”, muitas vezes destruindo tudo ao redor e englobando também regiões do Egito e do rio Nilo, que envolviam inundações de vários rios e aldeias dessa região ao mesmo tempo.

Soma-se a isso o fato de que haviam intensas tempestades no mar mediterrâneo que tem suas águas transportadas pelos Tigres e Eufrates de regiões montanhosas de grandes altitudes até regiões mais baixas de planícies. Nesses locais planos, o gradiente dos rios diminui, mantendo água acumulada e favorecendo formação de diques naturais em decorrência da deposição de detritos sedimentares. A bacia hidrográfica dos rios Eufrates e Tigres estende-se por mais de 1.600 km desde o Golfo Pérsico até a Mesopotâmia, na Síria e na Turquia, e lateralmente por cerca de 1.000 km do leste da Arábia Saudita ao sudoeste do Irã – uma área de mais de 1,6 milhão de quilômetros quadrados, onde inundações a que se refere a história do dilúvio poderia ter acontecido. Assim, com tempestades abundantes, não só nas montanhas da Síria e da Turquia, mas também na Arábia Saudita e no Irã, os cursos de água desses países contribuíram todos com os seus volumes para as planícies aluviais dos rios Tigre e Eufrates.¹²

Lorence Collins¹³ ainda argumenta que a nordeste e a sudoeste da superfície quase plana que contém os dois rios, a topografia eleva-se a mais de 455 metros na Arábia Saudita e no Irã, uma elevação que justificaria observar que o “mundo inteiro” estaria coberto de água durante o dilúvio, aliada aos problemas de drenagem e ausência de canais dos rios.

Em Floods and Flood Protection in Mesopotamia,¹⁴ os autores demonstram que as inundações eram o fenômeno natural mais frequente da mesopotâmia. A possibilidade do dilúvio bíblico ter sido inspirado em uma dessas inundações catastróficas não deve ser descartada. Isso explicaria as diferentes narrativas diluvianas de diferentes povos à medida que as inundações na mesopotâmia eram uma realidade por eles conhecida e atingiam áreas de povos inteiros – o que poderia referir-se ao “mundo conhecido”.

Isso explicaria as diferentes narrativas diluvianas de diferentes povos à medida que as inundações na mesopotâmia eram uma realidade por eles conhecida e atingiam áreas de povos inteiros – o que poderia referir-se ao “mundo conhecido”.

O dilúvio bíblico

O dilúvio de Noé, o gênesis de Eridu, o Épico de Atrahasis e a Epopeia de Gilgamesh, as narrativas de Israel, Suméria, Babilônia e Assíria, respectivamente, podem ter sido inspiradas na mesma inundação ou em várias inundações diferentes, o que conduz às semelhanças e diferenças entre essas histórias. O fio condutor entre essas narrativas diluvianas é a decepção do divino com a humanidade, que decide destruí-la com uma inundação. Em todas elas, há um indivíduo escolhido para construir uma arca que protegerá animais e pessoas. Suas diferenças se dão na duração do dilúvio, tamanho da arca, nome dos herois e a ordem em que os pássaros são enviados para determinar a diminuição das águas.¹⁵

O que isso pode sugerir não é a invalidade dessas histórias, incluindo a de Noé, mas que os povos antigos presenciaram ou tinham conhecimento que uma ou mais catástrofes diluvianas aconteceram e cada qual descreveu esse fato à maneira de sua tradição, algo que não seria incomum dada a realidade em que se estabeleceram as civilizações hidráulicas.

Até o desenvolvimento da escrita humana, essas histórias eram passadas por gerações através da tradição oral. Algumas pistas dão evidência disso e indicam que os escritores não estavam narrando uma série de eventos histórico-científicos:

  • Uso de hipérbole, nesse caso, uma linguagem universalista para estabelecimento de importantes pontos teológicos: “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal”. (Gênesis 6.5)

  • Noé classificando os animais em puros e impuros antes mesmo das diretrizes dadas após Moisés: “De todos os animais limpos tomarás para ti sete e sete, o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois, o macho e sua fêmea”. (Gênesis 7.2)

  • A posição do dilúvio no livro de Gênesis entre as chamadas “narrativas primitivas” (Gênesis 1-11). Como já mencionado no conceito de História Teológica, essas narrativas são uma introdução poética à história do povo de Deus, incluindo a história cósmica em que os propósitos teológicos são mais importantes do que uma simples narração de fatos.¹⁶

O fato é que a natureza ou a data desse dilúvio não modifica o objetivo da história bíblica e sua mensagem. Trata-se do reconhecimento de que o texto, definitivamente, é parte integral do mundo antigo em que Israel estava inserido e que Deus não precisava fornecer dados científicos aos antigos israelitas para cumprir seus fins, mas escolheu comunicar a sua mensagem por intermédio de pessoas comuns pela ação do Espírito Santo. Dessa forma, Israel navegava no mesmo rio cultural das civilizações vizinhas interpretando os acontecimentos conforme sua tradição.¹⁷

Trata-se do reconhecimento de que o texto, definitivamente, é parte integral do mundo antigo em que Israel estava inserido e que Deus não precisava fornecer dados científicos aos antigos israelitas para cumprir seus fins, mas escolheu comunicar a sua mensagem por intermédio de pessoas comuns pela ação do Espírito Santo.

Por fim, o dilúvio no Gênesis bíblico está relacionado a uma aliança, a qual diz respeito ao caráter de Deus. O compromisso de que Deus nunca mais destruirá a Terra é plenamente concretizado na morte e ressurreição de Jesus Cristo, em que Deus toma o julgamento do pecado sobre si mesmo, e não mais sobre a humanidade.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

Agradecimento da autora:

Agradeço à amiga Beatriz Furtado, mestranda em paleontologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pela ajuda com as datas geológicas para que este texto pudesse discutir ciência e fé de uma forma coerente com as evidências científicas.

1. Michael Belknap and Tim Chaffey, How Could All the Animals Fit on the Ark?, 2019. Clique aqui para acessar; Luiz Neme, Teria sido a Arca de Noé um banco de DNA?, 2018. Clique aqui para acessar.

2. John Walton e Tremper Longman III, O mundo perdido do dilúvio, 2019, p. 167.

3. Biologos Blog, Common questions, How was the Genesis Account of Creation Interpreted Before Darwin?, 2023. Clique aqui para acessar.

4. Carol A. Hill, “The Noachian Flood: Universal or Local?”, Perspectives on Science and Christian Faith, v. 54, n. 3, 2002.

5. Deborah B. Haarsma, Hugh Ross, Stephen C. Meyer, Ken Ham, A origem: quatro visões cristãs sobre criação, evolução e design inteligente, 2019, p. 109.

6. Ibidem, p. 6. Ver também: Nancy Menning,. “A Myth for the Sixth Mass Extinction: Telling Noah’s Story during a Climate Crisis”, Religions, v. 13, n. 3, 2022.

7. Ricardo Zorzetto, Pelo Mundo Afora, 2007. Clique aqui para acessar.

8. Serena Veloso, De volta à era do gelo, 2015. Clique aqui para acessar.

9. Andreas N. Angelakis et al., “Evolution of Floods: From Ancient Times to the Present Times (ca 7600 BC to the Present) and the Future”, Land, v. 12n. 6, 2023.

10. Ibidem.

11. Mukhalad Abdullah et al., “Floods and Flood Protection in Mesopotamia”, Journal of Earth Sciences and Geotechnical Engineering, v.10, n..4, 2020.

12. Lorence G Collins, “Yes, Noah’s Flood May Have Happened, But Not Over the Whole Earth”, Reports, V. 29, n. 5,  2009.

13. Ibidem.             

14. Ibidem, p. 13.  

15. Ibidem, p. 3.

16. Biologos Blog, Common Questions, How Should we Interpret the Genesis Flood Account?, 2023. Clique aqui para acessar.

17. André Daniel Reinke, Os outros da Bíblia:História, fé e cultura dos povos antigos e sua atuação no plano divino, 2019.

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