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ARTIGO

O indivíduo justifica o Estado

Aspectos teológicos implícitos nas teorias contratualistas

Alexander Stahlhoefer|

25/04/2024

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Alexander Stahlhoefer

Doutor em Teologia pela Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg, Alemanha. Professor de história da igreja e ética na Faculdade Luterana de Teologia em São Bento do Sul/SC.

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Stahlhoefer, Alexander B. O indivíduo justifica o Estado: aspectos teológicos implícitos nas teorias contratualistas. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

As teorias contratualistas, desenvolvidas por pensadores como Thomas Hobbes, John Locke, Immanuel Kant, Jean-Jacques Rousseau e John Rawls, têm sido fundamentais para a compreensão da sociedade e do governo. No entanto, por trás dessas teorias aparentemente seculares, existem aspectos teológicos implícitos. Ênfases morais como a liberdade, e conceitos antropológicos como o indivíduo, são frutos de um pensamento que surge na esteira das filosofias moldadas pelo protestantismo. Este artigo busca explorar os aspectos antropológicos implícitos que tenham fundamentos teológicos nas teorias de Hobbes, Locke e Rousseau.

Thomas Hobbes (1588-1679) foi o primeiro a abordar a questão da legitimação do poder. Segundo Hobbes, os indivíduos transferem seus direitos para uma assembleia de pessoas autorizadas e representativas, que incorporam o direito de todos e detêm um monopólio legítimo do poder. A transferência de direitos, que constitui a unidade social, cria a autoridade estatal e garante a soberania do governante.¹

A concepção de humanidade de Hobbes é fundamental para sua teoria do Estado. A sociedade não é uma realidade natural ou desejada por Deus, mas uma criação humana para sua própria preservação. Ao contrário da ideia aristotélica de estado, baseada na concepção de zoon politikon, Hobbes não vê a sociedade como uma necessidade inerente à natureza humana. Aristóteles deduz da estrutura teleológica da physis a ideia de que o ser humano busca um propósito supremo inerente à sua essência, ou seja, a cooperação social. Por outro lado, a antropologia de Hobbes não é teleológica. Ele rejeita a ideia de que o ser humano busca um summum bonum. Para ele, o ser humano busca apenas bens. Portanto, a preservação de si mesmo é apenas uma necessidade entre outras, e não um propósito de vida em si mesmo.

Portanto, a preservação de si mesmo é apenas uma necessidade entre outras, e não um propósito de vida em si mesmo.

O Estado é o resultado da vontade criadora do ser humano, pois este precisa do Estado para ser compelido a obedecer à lei. Por que Hobbes concebe o Estado como uma necessidade mesmo quando o ser humano é livre e autônomo? Hobbes nasceu na Inglaterra em 1588. Durante sua infância, a Europa foi abalada por guerras religiosas e sociais, portanto, é compreensível que ele tenha concluído que o ser humano se comportará violentamente com o próximo se não for contido por um governo. No entanto, não foram apenas os eventos históricos de sua época que moldaram seu pensamento. Filosoficamente, ele utilizou o mesmo método de Galileu Galilei e William Harvey: o método resolutivo-compositivo. Esse método desmembra as partes de um todo que se deseja estudar para entender separadamente as funções de cada parte. Em seguida, as explicações de cada parte são relacionadas por meio de uma teoria. Esse procedimento mecânico pode ser observado na antropologia de Hobbes.² Claus Dierksmeier argumenta que, segundo Hobbes, os indivíduos são componentes do Estado.³ Para compreender a natureza do Estado, é necessário examinar as partes – ou seja, os indivíduos – mais detalhadamente. Portanto, Hobbes assume que as forças unificadoras do Estado são a razão humana e suas emoções. Quando o ser humano age de acordo com sua razão, isso significa que ele age de forma autônoma. Sua liberdade é postulada porque ele age com base em seus próprios julgamentos. Hobbes argumenta que a motivação para agir de acordo com a razão está nos afetos, que são as paixões humanas, como o medo e o desejo.

O ser humano age por medo – até mesmo medo de morte – e por seu próprio desejo de preservar os direitos dos outros. Isso significa que, quando duas pessoas têm reivindicações concorrentes, como a necessidade de compartilhar os frutos do trabalho conjunto, elas desejam maximizar seus próprios ganhos em virtude da busca pela autopreservação. No entanto, também temem que o parceiro possa usar violência contra eles, até mesmo matá-los, para obter todos os ganhos para si ou apenas para manter sua própria parte. Portanto, ambos veem-se capazes de fazer um acordo. Assim, a paz entre eles é mantida e a distribuição justa dos ganhos, regulamentada. Cada participante do contrato, pelo menos em pensamento, mantém essa concordância porque é razoável preservar a paz. No entanto, na prática, o contrato só é mantido enquanto a reciprocidade é observada, ou seja, quando os outros participantes também seguem as mesmas regras. Sendo assim, o contrato ou a lei requer uma instância de aplicação.

Estado serve, portanto, para fazer cumprir as leis, e, assim, a autoridade é legitimada pelo fato de que os indivíduos não lutam uns contra os outros, mas sim que a paz é garantida pela transferência do direito de uso da força ao Estado.

É importante mencionar que, na visão de Hobbes, as decisões não são tomadas com base em ponderações racionais, mas sim pelos diferentes afetos que motivam as pessoas a fazer isto ou aquilo. No entanto, como o medo da morte e o desejo de autopreservação são emoções de alto escalão, geralmente são esses sentimentos que guiam as pessoas. Isso não significa que a visão de Hobbes sobre a natureza humana seja a de um egoísta. Jean Hampton argumenta que Hobbes, na verdade, defende uma psicologia de sentimentos predominantemente (mas não exclusivamente) voltados para si mesmos.⁴ Isso significa que o ser humano geralmente é guiado por seus próprios sentimentos. No entanto, isso não implica que o ser humano esteja constantemente buscando apenas seus próprios interesses. A visão moderna de Hobbes sobre o ser humano postula que ele não é mais definido em termos de circunstâncias sociais, históricas ou morais, mas sim, de acordo com a reflexão psicológica moderna, como um indivíduo livre – ou seja, não obrigado por natureza a ninguém –, mas que age de acordo com seu estado interno. Portanto, ele formula reivindicações em relação aos seus semelhantes.

Por que, então, o Estado deve, em última instância, possuir o monopólio da força? Porque, tendo em vista que o ser humano age de acordo com seus afetos, ele precisa de uma instância que o force a obedecer a lei. Essa instância de aplicação da lei requer o uso da força pelo Estado, que empunha a espada para ser temido. “Alianças [covenants] sem a espada [sword] são somente palavras [words], sem nenhuma força para dar segurança a ninguém”.⁵ A questão da razão desempenha um papel secundário nesse contexto.

Alford interpreta a visão de Hobbes sobre a natureza humana e sua concepção do eu de maneira diferente. Para Alford, Hobbes utiliza a metafísica teológica e mecânica no “Leviatã” para convencer as pessoas de sua época de que o ser humano é uma máquina racional e não possui alma nem identidade própria. Isso se deve à descoberta de Hobbes da geometria e ao seu contato com Galileu. Ele, então, definiu o ser humano de forma mecânica ao perceber que o movimento, e não o repouso, é o estado natural. Assim, o ser humano não precisa de alma ou identidade para ser colocado em movimento, pois o movimento é o estado natural. A composição dos indivíduos mecânicos e atomizados forma o Estado, que também é uma entidade mecânica, ou seja, uma pessoa artificial, composto pelas várias partes (os cidadãos) que o governante unifica. O governante atua como a alma artificial que mantém essa pessoa artificial, ou seja, o Estado, em movimento. A fragilidade do Estado hobbesiano reside no fato de que ele é entendido como um poder sobre os indivíduos atomizados, e isso determina como as pessoas são definidas por ele.

E como Hobbes define o ser humano? Ele mistura a definição do ser humano em si com a personalidade do egoísta racional formatada pelo capitalismo inicial, que busca apenas seu próprio benefício. O comentário de Alford sobre a transferência do predicado pessoal do ser humano para o Estado é muito importante. Embora Hobbes ainda esteja preso à biologia clássico-aristotélica, a ideia de que se podem derivar consequências político-éticas de pressupostos metafísicos, a criação do Estado como pessoa artificial significa a transferência de motivos antropológicos para a justificação do Estado para a comunidade chamada Leviatã.

John Locke (1632–1704) foi um filósofo inglês cujas ideias tiveram um grande impacto na filosofia política e na teoria do contrato social. Diferentemente de Hobbes, Locke não baseou sua concepção contratualista em um contrato “de todos com todos” para pôr fim à “guerra de todos contra todos”. Em vez disso, ele se concentrou na transferência dos direitos de violência dos indivíduos atomizados para a sociedade.

Locke acreditava que o papel do Estado era proteger os direitos fundamentais, incluindo propriedade, liberdade e igualdade. Ao contrário de Hobbes, ele não defendia o absolutismo monárquico. O monopólio da violência não era transferido para instituições políticas; em vez disso, o contrato de Locke apenas delegava a aplicação prática desses direitos ao governo ou à justiça, sem estabelecer um monopólio de força.

Além disso, Locke estabeleceu uma limitação adicional ao exercício do poder: a autoridade política só era legítima com o consentimento da sociedade, o que garantia o respeito aos direitos de liberdade e autodeterminação, bem como o direito de discordar.

Embora o pensamento político de Locke não comece com um tratado antropológico, como no caso de Hobbes, fica claro que ele combinou conceitos de direito natural, racionalismo e teologia da criação, resultando em uma visão específica da natureza humana.

Segundo a opinião de Alexander Wiehart,⁶ o entendimento de John Locke sobre o conhecimento humano é fundamental para sua teoria, visto que esclarece se a capacidade de conhecimento humano é suficiente para resolver conflitos sociais e também se a mente humana está sendo usada corretamente. A definição de conhecimento é dada como “a percepção da conexão e concordância ou discordância entre quaisquer de nossas ideias”.⁷ É importante compreender que essa definição contrasta com o racionalismo, pois o conhecimento não pode conhecer as coisas em si, mas apenas as relações entre nossas ideias.

Locke desejava libertar sua “Teoria das Ideias” do racionalismo de Descartes. Ele considerava que os seres humanos nascem como uma “tábula rasa” e formam seu conhecimento a partir de duas fontes: (1) a experiência sensorial e (2) a reflexão sobre os processos internos da mente. Como as reflexões na mente surgem apenas por meio da experiência sensorial, podemos afirmar que a percepção é fundamentalmente constituída pela experiência.

As ideias são impressas na mente humana a posteriori, ou seja, após a experiência externa. Em seguida, as ideias simples na mente são sintetizadas em ideias mais complexas. Assim, a experiência sensorial e a reflexão geram ideias, e essas ideias complexas são então comparadas com outras semelhantes. O que as mantém unidas são as ideias abstratas. A partir da experiência sensorial de que os indivíduos são comparáveis, surge o entendimento mais complexo de que outros indivíduos pertencem à mesma espécie. Comparamos a natureza de diferentes indivíduos da mesma espécie. A suposição de que esses indivíduos são humanos surge da conexão com a natureza geral. Dessa forma, desenvolve-se a ideia abstrata de humanidade.

Assim, a experiência sensorial e a reflexão geram ideias, e essas ideias complexas são então comparadas com outras semelhantes. O que as mantém unidas são as ideias abstratas. [...] Dessa forma, desenvolve-se a ideia abstrata de humanidade.

empirismo lockeano sustenta a tese de que o conhecimento humano é formado a partir da experiência sensorial externa. Segundo Locke, não existem ideias inatas. No entanto, surge uma questão: até que ponto o ser humano pode ser descrito como uma “tábula rasa” (uma folha em branco), considerando que a capacidade de pensar é pressuposta?

Locke utiliza o argumento da “tábula rasa” para justificar que as autoridades não possuem um direito inato ao poder, pois não são privilegiadas por uma revelação divina. Seu questionamento à reivindicação monárquica de autoridade é fundamentado em um trecho bíblico que afirma que a dominação sobre o mundo não foi concedida apenas a Adão, mas também a Eva. Com isso, Locke sugere que o poder foi igualmente distribuído a todos os seres humanos.⁸ Nesse contexto, não se trata de uma visão do Antigo Testamento, mas sim de argumentos teológicos a favor e contra a teoria do direito divino.

Além disso, a ideia de que o ser humano é uma “tábula rasa” implica que o pecado original não deve ser entendido como uma culpa herdada, mas sim como a impossibilidade de acesso à vida eterna. Portanto, após a queda, os seres humanos são mortais, mas isso não significa que sejam punidos pelo pecado de Adão e Eva.⁹ O conceito de igualdade está presente na visão de Locke, embora seja uma igualdade na esfera pública em relação à autoridade, não uma igualdade absoluta entre todas as pessoas. Quanto à família, Locke não questiona o papel tradicional da mulher, mantendo a figura masculina como chefe do lar. Para compreender o conceito de igualdade em Locke, é necessário examinar sua concepção de entendimento.

entendimento não é uma instância capaz de reconhecer a substância das coisas. Na verdade, o ser humano pode compreender ideias gerais, mas não a sua substância real. O ser humano foi criado e dotado por Deus de tal forma que sua mente possui apenas a capacidade de perceber o que se alinha com as tarefas desejadas por Deus. Portanto, não é necessário que o ser humano compreenda a essência das coisas, mas apenas aquilo que Deus valoriza e que é necessário para a vida.¹⁰

teoria do conhecimento de John Locke busca esclarecer como o ser humano é capacitado por Deus para cumprir a tarefa que lhe foi dada: manter a ordem do mundo. Em sua obra Segundo tratado sobre o governo, Locke demonstra como o ser humano pode agir de acordo com a lei natural de Deus. Como Locke não entende a lei natural como algo inscrito na mente humana, mas sim como uma ordem da natureza, o ser humano deve ser capaz de reconhecer e agir de acordo com essa lei por meio da experiência sensorial e do raciocínio. Para isso, o ser humano precisa apenas da habilidade de refletir racionalmente sobre suas experiências no mundo. Assim, podemos entender que a liberdade do ser humano está condicionada à lei e não é uma liberdade absoluta; em outras palavras, existe uma ordem natural à qual as pessoas estão sujeitas, e somente sob essa ordem as pessoas são verdadeiramente livres. Como todos os seres humanos também estão sujeitos a essa mesma ordem, todos são iguais. Portanto, a liberdade e a igualdade não são concebidas de maneira estritamente racionalista, mas sim como algo que é impresso na mente por meio da experiência e que tem origem no direito natural e na teologia da criação.

Portanto, a liberdade e a igualdade não são concebidas de maneira estritamente racionalista, mas sim como algo que é impresso na mente por meio da experiência e que tem origem no direito natural e na teologia da criação.

ser humano como tábula rasa é aquele que, por meio de sua mente, reconhece e age de acordo com a lei natural dada por Deus. No entanto, porque, por natureza, ele não segue essa lei – e aqui reside uma fraqueza na teoria de Locke, pois ele não fornece uma explicação precisa para a não conformidade com a lei –, precisa de uma instância judicial que garanta a aplicação da lei.

Para o propósito da minha exposição, não é necessário aprofundar a discussão sobre os conceitos de proteção mútua da vida, liberdade e propriedade. É importante mencionar que a visão de Locke sobre a natureza humana implica que o ser humano não possui uma liberdade e igualdade absolutas, mas sim uma liberdade limitada pelo direito natural para moldar sua vida e possuir propriedade privada, protegida por essa lei. A igualdade se refere apenas ao tratamento igualitário e aos mesmos direitos perante a instância da lei natural. Portanto, a questão do papel da mulher, mencionada anteriormente, pode ser respondida da seguinte forma: as formulações de Locke nos “Dois Tratados” sobre a igualdade entre homens e mulheres levam à conclusão de que a família não deve mais ser considerada o locus primário do político, mas sim o indivíduo.¹¹ As consequências esperadas da modernidade liberal exigiriam a participação igualitária das mulheres na política, mas Locke não defendeu essa ideia, pois considerava que as mulheres possuíam habilidades inferiores.

Jean-Jacques Rousseau (1712–1778) rompe com a linha de argumentação de seus predecessores ao rejeitar as tentativas de legitimação. Em vez disso, ele desenvolve uma teoria do contrato social em sua obra Do contrato social ou Princípios do direito político, tendo a liberdade como sua base fundamental. Rousseau não concebe a liberdade de forma totalmente nova, mas sim introduz novas ideias sobre as condições sociais e psicológicas da liberdade. Ele distingue entre três tipos de liberdade:

  • Liberdade natural: existe apenas no estado de natureza, quando o indivíduo não conhece as leis sociais. Significa que o ser humano é independente dos outros, desde que não esteja ciente das regras sociais.
  • Liberdade civil: refere-se à liberdade dentro das condições das leis estatais.
  • Liberdade moral: é entendida como “obediência à lei que o próprio indivíduo estabeleceu”.¹²
 

A conexão entre o contrato social de Rousseau e suas ideias sobre liberdade reside na compreensão das condições da liberdade natural e moral, e na formulação consistente dessas condições para a sociedade. Essa correlação é esclarecida pelas premissas antropológicas de Rousseau, o qual discorda da ideia de que o ser humano é escravizado por suas paixões e que a disciplina pessoal leva à liberdade. Em vez disso, Rousseau afirma que as pessoas são naturalmente livres no estado de natureza. Esse estado é um experimento mental pré-histórico, não se referindo a um estágio primitivo da cultura, mas sim à reflexão sobre como o ser humano se comportaria sem quaisquer restrições, paixões ou conhecimentos prévios. Como não possui necessidades ou paixões, Rousseau descreve o ser humano como alguém verdadeiramente livre.

A natureza do ser humano no estado natural é composta por cinco elementos: compaixão, amor próprio, perfectibilidade, livre arbítrio e consciência. Em contraste com os animais, o ser humano é um ser que ama a si mesmo. A expressão “amour de soi meme” refere-se a si mesmo e busca satisfazer suas próprias necessidades. No entanto, isso não deve ser confundido com uma inclinação egoísta; pelo contrário, é positivo porque também implica compaixão. Essa autoestima no estado natural serve para a autorrealização, pois o ser humano possui a capacidade de se aperfeiçoar. Observa-se aqui que o entendimento da natureza é marcado pela simplicidade e moderação. As pessoas viveriam harmoniosamente umas com as outras no estado natural e apenas aprimorariam suas decisões. No entanto, quando se abandona o estado natural, surge uma imagem diferente do ser humano.

Com a socialização do ser humano, o amor próprio (amour de soi meme) se transforma em egoísmo (amour propre), e a compaixão (pitié) se torna indiferença. Conflitos surgem entre os atores sociais a partir da ordem harmônica da natureza, visto que não se busca apenas mais bens para aperfeiçoamento pessoal; ao contrário, deseja-se possuí-los como propriedade privada, pois isso aumenta o prestígio na sociedade. Segundo Rousseau, mesmo após essa transformação do amor próprio em egoísmo, ainda resta um resquício de autoestima no ser humano, o que explica por que o ser humano tem um caráter contraditório. Por intermédio do amor próprio, ele realiza o bem, mas o egoísmo pode levar ao mal. Peter Rohls interpreta a visão de Rousseau sobre o ser humano da seguinte forma: “O ser humano nasce livre e vive acorrentado”.

Agora, volto à correlação entre liberdade e contrato social. Para não precisar sacrificar a liberdade e, ao mesmo tempo, manter os laços sociais, Rousseau argumenta que cada indivíduo deve voluntariamente se submeter à sociedade. Por outro lado, o Estado deve acolher cada pessoa como um membro inseparável.¹³ Em essência, a transferência de direitos pelos participantes do contrato em Rousseau é semelhante à de Hobbes. A diferença reside no fato de que a autoridade não é personificada pelo rei, mas sim pela sociedade como uma “unidade de vontade coletiva geral”,¹⁴ que Rousseau também chama de “corpo”. Essa entidade moral e coletiva é uma “pessoa pública”, constituída com base no princípio de “um membro, um voto”. Assim, o antigo ditado hobbesiano “o rei é o povo, o povo é o rei” se aplica aqui, o que revela uma compreensão diferente da natureza humana.

Já mencionei que o contrato social de Rousseau se baseia na decisão voluntária de cada indivíduo de se submeter ao outro. Essa decisão é voluntária porque não se baseia em uma escolha racional de custos e benefícios, mas sim na vontade de cada um, que coincide com a “vontade geral”. O contrato social visa conceber um Estado em que cada indivíduo se submeta às leis porque essas leis refletem a vontade geral, que, por sua vez, corresponde à vontade própria. A obediência ao Estado é garantida pelo fato de que o ser humano, como pessoa livre e igual, aprovou essas leis. A liberdade e a igualdade, nesse contexto, são fundamentadas no princípio da liberdade de vontade do ser humano no estado natural e se tornam o princípio central da formação do Estado.

As contradições entre a natureza do ser humano no estado natural e na sociedade são eliminadas pelo contrato social, pois “[o] contrato cultiva, civiliza e moraliza as pessoas; na sociedade contratual, as capacidades humanas podem se desenvolver de acordo com sua finalidade; ela é uma agência de aperfeiçoamento para os seres humanos”.¹⁵

É evidente como Hobbes incorpora em sua teoria o conflito dentro da sociedade agrária da Inglaterra, em meio à primeira fase da industrialização, e como ele argumenta que um Estado forte é necessário para estabelecer a paz social. Locke, por outro lado, desenvolve os fundamentos de sua teoria com base em suas convicções teológicas, que se alinham ao deísmo. Rousseau representa uma nova fase, em que a investigação das capacidades e habilidades humanas, com um claro objetivo antropológico, tornou-se fundamental para suas teorias subsequentes. É possível que Rousseau tenha inconscientemente incorporado suas crenças de suas respectivas criações. Seus ancestrais paternos eram huguenotes, perseguidos na França e lutando por sua liberdade, o que pode explicar por que ele formulou ideias republicanas, como o conceito de contrato e vontade comum.

Uma observação sobre o contratualismo e a concepção do ser humano deve ser acrescentada aqui. Charles Taylor argumenta que a ideia do indivíduo atomizado – ele evita conscientemente o termo “individualista” – desempenha um papel importante nas teorias do contrato desde Hobbes. Em contraste com a concepção do homo politicus, em que o ser humano é naturalmente um ser social e dependente de interações sociais, temos a figura do indivíduo atomizado, a qual é definida em relação aos seus direitos fundamentais: liberdade e igualdade, direitos estes inalienáveis. Isso significa que cada pessoa tem o mesmo direito de determinar como deseja viver, desde que não viole os direitos dos outros. Taylor observa que a mudança de uma teoria social para uma teoria baseada em direitos fundamentais faz parte da maneira como concebemos nossa sociedade moderna. Após Hobbes e Locke, não é mais possível postular uma ligação social incondicional. O ser humano se compromete com a sociedade apenas por causa de sua obrigação perante a lei com a qual ele próprio concordou. Essa lei deve claramente estabelecer os direitos e deveres de cada pessoa na sociedade, pois somente assim o ser humano moderno pode se vincular a uma sociedade como uma pessoa livre e igual. Os diferentes modelos de justificação dos direitos fundamentais mostram que tentamos derivar esses direitos da animalidade, das emoções ou da racionalidade.

O ser humano se compromete com a sociedade apenas por causa de sua obrigação perante a lei com a qual ele próprio concordou. Essa lei deve claramente estabelecer os direitos e deveres de cada pessoa na sociedade, pois somente assim o ser humano moderno pode se vincular a uma sociedade como uma pessoa livre e igual.

Se os argumentos são mais convincentes dessa maneira ou de outra é um assunto para discussão, no entanto, a essência é que “o indivíduo livre ou agente moral autônomo só pode alcançar e manter sua identidade em um certo tipo de cultura”.¹⁶ Charles Taylor explica ainda mais: “Estou argumentando que o indivíduo livre do Ocidente é apenas o que é em virtude de toda a sociedade e civilização que o trouxe à existência e o nutre”.¹⁷ Ele acredita que o ser humano pode viver em liberdade e igualdade somente na medida em que também defende esses direitos, o que significa que cada pessoa deve se preocupar com a sociedade ou cultura que moldou sua identidade.

Ao examinar as teorias contratualistas de Hobbes, Locke e Rousseau, fica claro que há aspectos teológicos implícitos que moldam a ideia de liberdade e de indivíduo, naturalmente modificando esses conceitos a partir das premissas deístas e à luz do método cartesiano. Esses aspectos revelam uma busca pela redenção e pela ordem moral, que são fundamentais para a compreensão da natureza humana e da busca por uma justificação das ações morais na sociedade.

 

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1. Wolfgang Kersting, “Vertrag, Gesellschaftsvertrag, Herrschaftsvertrag”, in Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Kosellek (Org.): Geschichtliche Grundbegriffe. Lexikon zur politisch-sozialen Sprache in Deutschland1990p. 918-922; Wolfgang Kersting, “Kontraktualismus”, in Marcus Düwel, Christoph Hübenthal, e Micha Werner (Org.), Handbuch Ethik2011 p. 169-170.

2. Jean Hampton, Hobbes and the social contract tradition1995, p. 7.

3. Rolf Gröschner Rolf et al., Rechts- und Staatsphilosophie. Ein dogmenphilosophischer Dialog, 2000, p. 159.

4. Hampton, 1995, p. 24.

5. Thomas Hobbes, Leviathan (ed. Alexander Dunlop Lindsay), 1914, p. 87.

6. Gröschner et al., 2000, p. 174.

7. John Locke, Essay, IV, 1, §1.

8. Segundo Tetlow, John Locke extraiu sua concepção teológica da teologia do pacto de Hammond e do arminianismo. Ver: Joanne Tetlow, “John Locke’s Covenant Theology”, in Locke Studies 9, 2009, p. 197. Também Jeremy Waldron concorda que a concepção política de Locke nasceu a partir de ideias teológicas. Ver: Jeremy Waldron, God, Locke and Equality: Christian Foundations of Locke’s Political Thought, 2002.

9. John Locke, Two Treatises of Government and a Letter Concerning Toleration2003, I, §29.

10. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, 1979,  II, 23, §12.

11. John Locke, 2003, II, §6.

12. Jean-Jacques Rousseau, Vom Gesellschaftsvertrag oder Grundsätze des Staatsrechts, 1983, p. 23

13. Jean-Jacques Rousseau, “Du contrat social, ou principes du droit politique”, in Pierre-Alexandre Du Peyrou e Paul Moultou et al., 1780-1789 (org.), Collection complète des œuvres de Jean Jacques Rousseau Citoyen de Geneve, 1782.

14. Rousseau, 1782.

15. Wolfgang Kersting, “Die Vertragsidee des Contrat social und die Tradition des neuzeitlichen Kontraktualismus” in Reinhard Brandt e Karlfriedrich Herb(org..), Jean-Jacques Rousseau, Vom Gesellschaftsvertrag oder Prinzipien des Staatsrechts2000, p. 60.

16. Charles Taylor, “Atomism”, in Charles Taylor, Philosophy and the Human Science. Philosophical Papers, vol 2, 1985, p. 205.

17. Taylor, 1985, p. 206.

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