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A alegoria da sabedoria no primeiro capítulo de Provérbios

Lucas R. N. Barbosa|

03/05/2024

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Lucas R. N. Barbosa

Graduado e Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Foi bolsista do PIBID na mesma universidade e possui Iniciação Científica (PIVIC) em C. S. Lewis. Atualmente, trabalha na Universidade Presbiteriana Mackenzie na Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PRPG), especificamente na secretaria da Coordenadoria de Programas de Pós-Graduação (CPG).

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Como citar

Barbosa, Lucas R. N. A alegoria da sabedoria no primeiro capítulo de provérbios. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

A alegoria da sabedoria no capítulo 1 de Provérbios nos mostra uma série de características literárias que a distingue do restante do livro, apresentando a sabedoria como uma mulher que busca seus ouvintes para transmitir seu conhecimento. Neste artigo, exploraremos os principais aspectos dessa alegoria, focando em suas construções literárias e nos efeitos de sentidos criados.

A linguagem utilizada em Provérbios é rica em recursos poéticos, como paralelismos, metáforas e símiles; o tom do texto varia de acordo com o contexto, passando da austeridade à amabilidade; e a escolha das palavras e expressões contribuem para a construção da imagem complexa e multifacetada da sabedoria. Por intermédio da alegorização da sabedoria e da construção de uma micronarrativa envolvente, o autor convida o leitor a refletir sobre a importância da sabedoria e as consequências da sua rejeição.

Por intermédio da alegorização da sabedoria e da construção de uma micronarrativa envolvente, o autor convida o leitor a refletir sobre a importância da sabedoria e as consequências da sua rejeição.

A alegoria¹ da sabedoria só se inicia no versículo 20 do capítulo 1 do livro de Provérbios, mas, antes disso, o conceito de sabedoria é apresentado e levemente articulado nos primeiros dezenove versículos, com pelo menos quatro grandes elementos: a atribuição de autoria à figura de Salomão, o propósito do livro, o público-alvo e o princípio geral. Mas o momento em que, de fato, a sabedoria é personificada como uma mulher² (gerando a alegoria) ocorre a partir do versículo 20.

No capítulo 1 de Provérbios, há menção à “figura de Salomão”, pois o versículo primeiro registra: “Provérbios de Salomão, filho de Davi, rei de Israel” (Pv 1.1 ARA). Essa referência é significativa, pois Salomão é o arquétipo de sábio na narrativa da Bíblia Hebraica.³ Colocá-lo como autor é dar ao texto um significado especial, pois é como se a sabedoria fosse salomônica e, portanto, divina, pois, na narrativa bíblica Salomão recebeu a sabedoria do próprio Deus (“Deu o Senhor sabedoria a Salomão, como lhe havia prometido. Havia paz entre Hirão e Salomão; e fizeram ambos entre si aliança”. 1 Rs 5.12 ARA).

Existe, também, a descrição do “propósito do livro”, pois do versículo 2 ao 6 ocorrem frases como “para aprender”, “para entender”, “para obter” (Pv 1.2-6 ARA). Essas palavras indicam o caráter didático do livro. Fica claro para o leitor que a obra tem ensinamentos para serem absorvidos, como expressa Samuel Balentine (tradução nossa):

Pepitas de sabedoria, enraizadas em histórias e experiências há muito esquecidas, fossilizam-se em verdades que são passadas de geração em geração. Elas podem ser ensinadas e aprendidas, como deixam claras as instruções de Provérbios 1 a 9, e, quando utilizadas como estratégias para lidar com situações típicas e recorrentes da vida, como as sugeridas em Provérbios 10 a 31, garantem integridade moral e prosperidade material.⁴

Ademais, há a indicação do “público-alvo”, pois nos versículos 4 e 5 indivíduos como “simples”, “jovens”, “sábio” e “instruído” são mencionadas. (Pv 1.4-5 ARA). Esses indivíduos vão aparecer recorrentemente no livro. É interessante notar que a obra não se dirige apenas aos “simples e jovens”, mas também aos “sábios e instruídos”. Esses trechos revelam facetas da cultura sapiencial israelita – todos precisam de sabedoria, não importa o quanto já tenham. Williams informa que “talvez Provérbios fosse ‘um livro fonte de material instrucional para o cultivo da moralidade pessoal e de sabedoria privada’”.⁵

E, por fim, existe a expressão do “princípio geral” do livro, pois no famoso versículo 7 está escrito: “O temor do Senhor é o princípio do saber, mas os loucos desprezam a sabedoria e o ensino” (Pv 1.7 ARA). Esse princípio geral, que é, também teológico, fundamenta o conteúdo de todo o livro: a sabedoria, segundo o livro de Provérbios, é construída em uma relação com o divino.

Esses quatro elementos citados compõem a introdução do livro e são apontamentos feitos antes da série de provérbios da figura paternal (do versículo 8 ao 19) e antes da apresentação da alegoria da sabedoria (dos versículos 20 ao 33) no capítulo 1.

Tal introdução estabelece pressupostos que fundamentam a leitura do livro, e esses fundamentos estão relacionados, também, com a alegoria da sabedoria com a qual o leitor irá se deparar. Por exemplo: a alegoria será construída debaixo da figura sábia de Salomão, o que acentua o caráter da tradição religiosa dela; a alegoria será representada como uma mulher que deseja ser ouvida (versículos 20, e 21), o que aponta para o caráter didático apresentado no propósito do livro; a alegoria será colocada em contato com diversos indivíduos (versículo 22), o que reforça o que foi comunicado sobre o público-alvo; e, por fim, a alegoria é posta no texto com características divinas (versículo 23) e há uma austeridade que se relaciona com o princípio geral apresentado na introdução (o temor do Senhor).

A alegoria da sabedoria no capítulo 1 de Provérbios carrega em si aspectos diferentes do que comumente se encontra na poesia sapiencial: há uma certa narratividade (ações de uma “personagem” no tempo e no espaço, como nos versículos 20 e 21) que contrasta com a estética lacônica da poesia proverbial na maior parte do livro (pois só encontramos essa narratividade em “três” dos “trinta e um” capítulos do livro de Provérbios). Portanto, a alegoria é construída segundo uma estética que contém elementos da prosa. Essas diferentes características dão contornos específicos à obra: a sabedoria aparece com duas faces, a face propositiva (normalmente encontrada na poesia) e a face narrativa (normalmente encontrada na prosa).

Acreditamos que a alegoria da sabedoria tem a função de tornar mais compreensível e significativa a mensagem do livro de Provérbios, e, por esse motivo, podemos pontuar que ela tem uma “função didática”. Ao mesmo tempo, a estética prosaica da alegoria se soma à estética poética proverbial, formando uma única obra literária – diante dessa construção, podemos notar a “função estética” da alegoria dentro do livro.

A junção das duas estéticas (poética e prosaica) em Provérbios auxilia na elaboração e transmissão do conteúdo (a sabedoria). Uma estética não exclui a outra; pelo contrário, as duas se alinham para um único fim. É possível encontrar mesclas de poesia com prosa na Bíblia Hebraica. Poemas prosaicos, como Jó,⁶ e prosas poéticas, como o trecho de Juízes,⁷ nos mostram esse tipo de criação.

A alegoria da sabedoria em Provérbios é um recurso linguístico chamativo, visto que a personificação de conceitos abstratos não é tão comum na Bíblia Hebraica.⁸ Podemos encontrar a personificação do divino (como no Salmos 78.65, onde Deus é comparado a um homem valente que desperta do sono) e a personificação de cidades e povos (como no livro de Ezequiel, capítulo 16, onde Jerusalém é personificada como uma mulher), mas a personificação de elementos abstratos como a “sabedoria” é rara de se encontrar.

A inserção da alegoria da sabedoria no início do livro é uma escolha significativa para a estrutura de todo o livro, pois a alegoria, enquanto elemento com características prosaicas (ações de um personagem no tempo e no espaço), gera uma ideia “viva” que acompanhará a imaginação do leitor do começo ao fim do livro. É como se uma figura humana povoasse a mente do leitor e o conduzisse ao longo da leitura. Ademais, a apresentação dessa “mulher” que incorpora o conceito de sabedoria hebraica logo no primeiro capítulo introduz na experiência do leitor uma imagem mental mais concreta sobre a ideia central do livro: a sabedoria. Essa concretude imagética complementa, didática e esteticamente, a densa abstração que há na maior parte da obra.

a apresentação dessa “mulher” que incorpora o conceito de sabedoria hebraica logo no primeiro capítulo introduz na experiência do leitor uma imagem mental mais concreta sobre a ideia central do livro: a sabedoria.

Este artigo teve como objetivo central a apresentação da alegoria da Sabedoria no primeiro capítulo do livro de Provérbios. Inicialmente, adotamos o pressuposto de que a sabedoria foi alegorizada no texto, e optamos por essa abordagem em virtude de sua adequação literária, mas não tivemos a pretensão de afirmar que apenas essa abordagem é possível.

Ao examinarmos a construção poética da alegoria no primeiro capítulo, percebemos que a Sabedoria é uma “face” entre os versos do livro de Provérbios. Sua presença, voz e construção são inconfundíveis, funcionando como um ícone dentro da obra. Utilizando a abordagem literária de Robert Alter (conhecida como “Bíblia como literatura”), apresentamos as características da Poesia Hebraica Bíblica na criação da alegoria da sabedoria no capítulo 1 de Provérbios.

Ao examinarmos a construção poética da alegoria no primeiro capítulo, percebemos que a Sabedoria é uma “face” entre os versos do livro de Provérbios.

Assim, este artigo preenche uma lacuna ao abordar a Poesia Hebraica Bíblica em língua portuguesa, especialmente sobre a alegoria da Sabedoria em Provérbios. É importante que futuros pesquisadores explorem essa área para que esses estudos avancem no campo acadêmico.

Apresentamos, brevemente, a atribuição da autoria a Salomão, o gênero e a estrutura do livro, proporcionando um panorama que suaviza o estranhamento do leitor moderno com o texto antigo. Nesse sentido, a alegoria da Sabedoria desempenha uma função didática, facilitando a memorização e compreensão do conteúdo, além de tornar a mensagem mais acessível ao público geral.

Ademais, a Sabedoria, ao ser personificada, transcende a estética predominante de provérbios concisos, oferecendo uma narrativa mais extensa e complementando a composição literária do livro. A transição da imagem não humana para a figura de uma mulher israelita ao longo dos versos destaca a complexidade e a beleza da alegoria, transmitindo a mensagem de que a sabedoria busca uma manifestação na vida real, ou seja, ela deve ser tangível ao ser humano.

Portanto, concluímos que a alegoria da Sabedoria no primeiro capítulo de Provérbios desempenha um papel crucial na compreensão da mensagem sapiencial, uma vez que combina elementos didáticos e estéticos para enriquecer a experiência do leitor.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Alegoria é “aquilo que representa uma coisa para dar a ideia de outra”, segundo Carlos Ceia. Ver: Carlos Ceia, E-Dicionário de Termos Literários, 2009. Clique aqui para acessar.

2. Partimos do pressuposto de que é uma mulher, pois, no fim da primeira unidade do livro de Provérbios, isto é, capítulo 9, a Sabedoria é claramente descrita como uma figura feminina, logo, decidimos que em toda a unidade a alegoria da Sabedoria será tratada com esse gênero.

3. James G. Williams, “Provérbios e Eclesiastes”, in Robert Alter e Frank Kermode, Guia Literário da Bíblia, 1997.

4. Samuel Balentine. E, “Proverbs”, In Will Kynes (ed.), The Oxford Handbook of Wisdom and the Bible, 2021, pp. 495-514.

5. James G. Williams, “Provérbios e Eclesiastes”, in Robert Alter e Frank Kermode, Guia Literário da Bíblia, 1997, p. 289

6. O livro de Jó alterna descrições narrativas da história do personagem e falas poéticas dos personagens. Por  exemplo (Jó 3.1-4 ARA):

“Depois disto, passou Jó a falar e amaldiçoou o seu dia natalício. Disse Jó:
Pereça o dia em que nasci
e a noite em que se disse:
Foi concebido um homem!
Converta-se aquele dia em trevas;
e Deus, lá de cima, não tenha cuidado dele,
nem resplandeça sobre ele a luz.”

7. O livro de Juízes intercala a construção narrativa da história da vitória militar de Israel com o canto de alguns  personagens. Por exemplo (Juízes 5:1-5 ARA):

“Naquele dia, cantaram Débora e Baraque, filho de Abinoão, dizendo: Desde que os chefes se puseram à frente de Israel, e o povo se ofereceu voluntariamente, bendizei ao Senhor.

Ouvi, reis, dai ouvidos, príncipes: eu, eu mesma cantarei ao Senhor; salmodiarei ao Senhor, Deus de Israel.

Saindo tu, ó Senhor, de Seir, marchando desde o campo de Edom, a terra estremeceu; os céus gotejaram, sim, até as nuvens gotejaram águas.

Os montes vacilaram diante do Senhor, e até o Sinai, diante do Senhor, Deus de Israel.”

8. Robert Alter, The Wisdom Books: Job, Proverbs, and Ecclesiastes, 2010.

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