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Finalidade e ordem natural

Uma reavaliação filosófica da biologia

Humberto Schubert Coelho|

18/04/2024

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Humberto Schubert Coelho

Professor de Filosofia moderna e metafísica da Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialista em filosofia da cultura, estética, filosofia da ciência e filosofia da religião, sempre sob a ótica metafísica. Historiador da cultura e do pensamento luso-brasileiro e alemão. É Membro de diversas sociedades científicas e grupos de estudo no Brasil e em Portugal, e membro titular da Academia Brasileira de Filosofia.

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Como citar

Coelho, Humberto Schubert. Finalidade e ordem natural: uma reavaliação filosófica da biologia. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

A palavra biologia expressa “conhecimento sobre a vida”, mas, como se sabe, o termo grego lógos guarda uma série de significados que podem também justificar outras traduções. Assim, bio-logia poderia também significar “ordenação da vida”, o que é até mais relevante para entendermos a concepção de seu fundador, Aristóteles. Quando pensamos, hoje, em questões como os impasses filosóficos da biologia, os atritos entre biologia e religião, ou a falta de definições fundamentais sobre o que é a vida e a diferença entre seres vivos e não vivos, seria frutífero e sábio retornarmos ao grande organizador da ciência da vida, que, como observado por Tomás de Aquino, comete bem menos erros que os outros homens.

De fato, Aristóteles foi perspicaz o bastante para notar que seres vivos existem em diferentes camadas da realidade. Têm (1) um corpo que é puramente material, (2) sensações, movimentos automáticos (respiração, pulsação, crescimento…) que já não são típicos de coisas mortas e não parecem ser fenômenos puramente materiais, e (3) sentimentos, vontade e intelecto, que são espirituais. Mais importante ainda, contudo, observou que a vida exprime exemplarmente sua teoria metafísica da primazia da finalidade e do propósito sobre os componentes materiais, que constituem os acidentes e as causas “passivas”. A tradição filosófica e científica resume como teleologia esse elemento finalístico na ordem das coisas.

Depois de Aristóteles, a biologia experimentou pouquíssimos avanços até o século 18, e a maior parte desses avanços se deu na esfera mais técnica da medicina – por exemplo: conhecimento específico sobre o corpo, os sistemas, os órgãos e suas funções. A alquimia só começava a dar lugar à química e à farmacologia em meados do século das luzes, apesar das consideráveis contribuições de Paracelso e outros.

O século 18 foi muito frutífero para a biologia, graças à filosofia poético-naturalista de Jean-Jacques Rousseau e da arrojada concepção de Lineu, o inspirador de toda a próxima geração de naturalistas. Quando a biologia efetivamente nasce como ciência moderna, entre as décadas de 1790 e 1810, ela ainda está explicitamente assentada sobre o conceito de teleologia de Aristóteles, apesar das intensas transformações do debate filosófico sobre a vida, impulsionadas pelo criticismo de Immanuel Kant, pela antropologia naturalista de J. Herder, pelos estudos de ciência natural de J. W. Goethe, pela filosofia da natureza de Friedrich Schelling e pelas obras de biólogos como Blumenbach, Cuvier e Lamarck.

O que todos esses autores perceberam é que a ordem da vida difere radicalmente da ordem mecânica – o mecanicismo não é uma teoria científica, e sim uma concepção filosófica que, entre Galileu e o começo do século 19, era usada como base conceitual para a física.¹  

O romantismo, o idealismo e o vitalismo deram impulso às novas pesquisas biológicas, médicas e psicológicas. Autores como Arthur Schopenhauer criaram grandes sistemas interpretativos da realidade com base em temas como pulsões, volições e desejos, pavimentando o caminho para que outros, como Sigmund Freud, falassem de maneira “semicientífica” do inconsciente, da libido e de outros elementos imponderáveis, não passíveis do escrutínio da ciência natural.

O romantismo, o idealismo e o vitalismo deram impulso às novas pesquisas biológicas, médicas e psicológicas.

O grande ponto de inflexão, portanto, a partir do qual começaram os ataques à teleologia, foi a recepção da teoria da seleção natural de Darwin-Wallace. Esse é, contudo, um capítulo muito complexo da história, pois a virulência do debate gerou intensas distorções nas concepções originais dos pais da evolução (principalmente Darwin). Além disso, a discussão sobre o conceito de teleologia na biologia era marcada por apropriações da teologia natural, que, vendo-se ameaçada pelo avanço da ciência sobre temas outrora religiosos, reagia academicamente com propostas de releitura teológica das novas ciências. Como seria de se esperar, algumas dessas propostas teológicas eram muito boas, outras nem tanto. Também seria de se esperar que, como sempre, as propostas muito boas fossem difíceis de entender, e as mais fracas caíssem rapidamente na boca do povo, gerando uma percepção cultural de que essas propostas mais fracas seriam as verdadeiras representantes da teologia natural ou da teologia em geral.

Apesar de Alfred R. Wallace ter razoável familiaridade com filosofia e teologia, esse absolutamente não era o caso de Charles Darwin, que em diversas ocasiões usa as piores versões possíveis dos conceitos de teleologia, propósito ou intervenção divina. Não entraremos no mérito dos argumentos de Darwin a respeito da religião ou do conceito de teleologia, mas basta dizer que, embora não tenha abandonado a religião, o autor de A origem das espécies estava embebido no ambiente cultural inglês de meados do século 19, e, consequentemente, acreditava ser fundamental para a ciência cortar qualquer vínculo possível com ideias religiosas. Apesar disso, Darwin nunca foi um antirreligioso, como muitos que se apropriaram de seu nome para construir e militar por um darwinismo materialista.²

A ideia de que fenômenos puramente materiais poderiam explicar um processo não material como a vida surgiu no final do século 19, aproximadamente na última década de vida de Darwin. Na Alemanha, o campeão do materialismo era o filósofo Friedrich Albert Lange, que chegou ao ponto de dizer que Sócrates e Platão operaram um retrocesso da filosofia, que teria sido melhor na fase pré-socrática, particularmente na filosofia atomista.³ Essa opinião absurdamente injustificável raramente é apoiada sequer pelos filósofos materialistas, mas recebeu bom apoio de um filólogo que não gostava muito de lógica e teorias abstratas: Friedrich Nietzsche.

Na sequência histórica, biólogos propuseram que a vida poderia ter emergido de uma sopa de moléculas orgânicas, o que nunca foi efetivamente provado, mas, apesar da ausência de sustentação empírica, a ideia ganhou popularidade no meio científico. O problema das explicações puramente materialistas é sua limitação filosófica, pois materialistas estão, de certo modo, impedidos de pensar em causalidade de cima para baixo, condicionados a supor (dogmaticamente) que apenas causalidade de baixo para cima é possível – isto é, do nível das partículas para o dos átomos, deste para o nível molecular, deste para o celular, e assim por diante. Essa suposição filosófica, contudo, contradiz as evidências, que fortemente sugerem e só podem começar a fazer sentido se acrescentarmos uma causalidade de cima para baixo, do sistema para suas partes, das necessidades do organismo para a regulação dos órgãos, das células, do material genético.⁴

A situação avançou pouco nos últimos cem anos. Cito como exemplo o seguinte trecho de um de meus trabalhos sobre teleologia:

A razão pela qual o DNA pode gerar embaraços para o mecanicismo (materialismo) é que sua função não é determinada apenas por reações químicas causais ou conexões mecânicas entre as partes, mas puramente por estruturas organizadas de informação nele decodificadas. Ao contrário (desse simplismo de mão única), ao passo que mudanças a nível molecular têm consequências diretas para o comportamento e para o nível adaptativo de todo o organismo, a transmissão das estruturas moleculares também dependem da adequação de todo o organismo ao ambiente, e a complexidade de toda a estrutura é ampliada por esses arranjos mutuamente causativos.⁵

Um aspecto chocante da alta pesquisa biológica é o quão radicalmente distintas são as percepções a respeito da relação entre o conhecimento atual e a totalidade dos processos biológicos. Enquanto alguns dos maiores autores são taxativos em afirmar que a biologia alcançou a maior parte, ou, ao menos, uma parte bem suficiente do conhecimento sobre os processos biológicos mais importantes, sendo capaz de explicar adequadamente os maiores mistérios da vida, outra parte, igual ou maior, da comunidade de pesquisadores afirma que o conhecimento biológico é primitivo e obviamente insuficiente para sequer começar a explicar os mistérios da vida. 

Um aspecto chocante da alta pesquisa biológica é o quão radicalmente distintas são as percepções a respeito da relação entre o conhecimento atual e a totalidade dos processos biológicos.

Ao contrário, a definição de vida mais básica e mais aceita entre os biólogos é fortemente espiritualista e antimaterialista, embora muitos biólogos que usam essa mesma definição não consigam perceber esse traço de sua constituição filosófica – nem mesmo o fato de ser uma definição filosófica, e não científica:

Em primeiro lugar, ela mantém uma identidade ao longo do tempo ao localizar todos os seus componentes. Em segundo, usa energia livre do ambiente para digerir recursos ambientais com vistas à automanutenção, crescimento e, ultimamente, reprodução. Em terceiro, esses processos estão sob o controle de informações herdadas e que podem ser modificadas durante a reprodução.⁶

Questão igualmente espinhosa é a da discrepância abismal entre o “determinismo” genético e os traços fenotípicos efetivamente manifestados. Na análise do neurocientista John Eccles, um dos fundadores do campo:

Stent (1981) apontou para o fato de que o desenvolvimento fenotípico do cérebro está muito apartado das instruções genotípicas, por força do que Waddington (1969) chamou de “ruído do desenvolvimento”. Por exemplo, o genótipo está envolvido na construção do cérebro, mas ele atua em um ambiente que modula profundamente o processo constitutivo do fenótipo. Entre gêmeos idênticos, um genoma idêntico contribuiria para a formação de diferentes cérebros por causa da diversidade de ruídos de desenvolvimento. Waddington (1969) desenvolveu o conceito de creodos para acomodar o panorama epigenético, como ele chamou, no qual as instruções genotípicas iniciais construiriam o fenótipo, incluindo o cérebro. É importante perceber que as conectividades básicas do cérebro se formam antes mesmo do nascimento, dispostas às sutis mudanças nas conectividades sinápticas que se desenvolvem ao longo da vida durante o processo de aprendizagem. Há, portanto, imenso golfo formativo entre as instruções genéticas providas pelo zigoto e o cérebro de um recém-nascido.⁷

Contemplemos por um instante o fato de que a distância entre a instrução genética para a formação do cérebro e o cérebro realmente manifesto de um recém-nascido, e até mesmo de um feto meses antes de nascer, é incomensurável. Isso nos ajuda a ter ideia do quão distantes os demais processos de desenvolvimento, amadurecimento, traumas, esforços e aprendizagem exercem sobre nossa constituição, e o quão falaciosas são as pretensões de determinar o comportamento complexo, as ideias e o caráter das pessoas a partir de alguns genes.

Além de usar linguagem reconhecidamente “humanizada” ou antrópica para falar de praticamente todos os fenômenos biológicos, cientistas também usam com grande frequência conceitos que assumem o papel da teleologia sem se darem conta.  Um exemplo bastante fácil de entender é o do termo convergência, que expressa o fato de que as mutações não são de fato aleatórias, mas convergem para certos resultados relativamente previsíveis (ainda que nunca exatamente previsíveis nos detalhes). Esse conceito alude, portanto, não a uma biologia molecular ou processo evolutivo como produto do acaso, e sim para um jogo com infinitas possibilidades, mas no qual as regras do jogo estão muito bem e precisamente definidas antes de seu início. Embora não seja possível prever as jogadas individuais, é perfeitamente possível prever quais jogadas podem ou não ser feitas, quais têm mais ou menos chances de acontecer, mas, depois de ocorridas, não é possível encontrar uma explicação razoável por que aconteceram.⁸

Além de usar linguagem reconhecidamente “humanizada” ou antrópica para falar de praticamente todos os fenômenos biológicos, cientistas também usam com grande frequência conceitos que assumem o papel da teleologia sem se darem conta.

O grande biólogo evolucionista dedicado a “resolver” a questão teleológica, e que é referido como tendo executado a tarefa de uma forma definitiva, foi Ernst Mayr. Embora tenha aderido ao tradicional equívoco de que a missão da ciência seria a de extirpar de si a linguagem teleológica, admitiu ser isto impossível. A solução adotada, portanto, foi mudar os nomes. O que deveria pasmar qualquer leitor, no entanto, se confirmou como tendência, provando que a comunidade científica está bem longe de seus ideais de imparcialidade, abertura de mente e uso de critérios estritamente racionais nas tomadas de decisão. Assim, caiu a teleologia, o estudo das finalidades e dos propósitos, e entrou em cena a teleonomia, que propõe de maneira bastante inglória que os fenômenos biológicos apenas “parecem” orientados a fins, justificando a adoção dessa linguagem como ferramenta hermenêutica para a compreensão humana do que, no nível da natureza (das coisas em si, diria Immanuel Kant), não poderia haver finalidade alguma.⁹ Algumas décadas depois, contudo, outros biólogos, em crescente número, vêm advogando a impossibilidade de nos furtarmos a usar termos teleológicos como “para que servem os estômagos?”, “para que servem os dentes?” e “para que servem os corações?” em todo e qualquer discurso biológico.¹⁰

Podemos concluir que a linguagem teleológica e a própria noção de finalidade implícita nos processos biológicos não estão extintas. É possível que as conotações obviamente metafísicas e até teológicas do conceito tenham sido varridas para debaixo do tapete, mas o tapete ficou tão irregular que não é preciso mais que uma formação filosófica razoável para perceber que a eliminação da teleologia não foi completa. Ademais, resíduos menos claramente metafísicos desse conceito, sob véus e disfarces como o do conceito de convergência, acabam por revelar que os cientistas reintroduzem a teleologia pela porta dos fundos sempre que ela é necessária. O que essa convidada indesejada não pode fazer é lembrar os cientistas do vínculo direto e inevitável entre a ideia de finalidade na natureza e a de uma inteligência cósmica que dispôs a natureza a ter sentido, finalidade e propósito. Isso seria um golpe de morte na filosofia materialista, amplamente aceita como compatível com a ciência, e é apenas por esse motivo que o conceito de teleologia permanecerá por algum tempo sob o tapete, e, ainda que todos tropecem nele, ainda que a ciência idealmente exija uma discussão franca, imparcial e não enviesada sobre todos os assuntos, este continuará a ser um dos embaraçosos tabus dos cientistas.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Contudo, é preciso lembrar que diversos cientistas, como o próprio Isaac Newton, já tinham consciência de que a visão mecanicista poderia não passar de uma analogia simplificadora para que os fenômenos naturais nos parecessem mais compreensíveis. Essa concepção veio a ser plenamente explorada por Immanuel Kant, que faz do mecanicismo uma forma de operação da mente, já que, em respeito ao ceticismo, não podemos nutrir a pretensão de conhecer a essência da realidade em si mesma. Ver: Immanuel Kant, Kant‘s Gesammelte Schriften, 1902.

2. A controvérsia surgiu já desde a publicação de A origem das espécies, e em seu segundo grande livro, A descendência do homem, e a seleção em relação ao sexo, Darwin rebaterá as acusações de ateísmo dizendo que a teoria da seleção natural nada tem de antirreligiosa, pois as causas naturais das doenças ou o processo material de herdar traços físicos dos pais são conhecidos desde que existe a espécie humana, e a ninguém jamais ocorreu que herdar a cor dos olhos dos pais fosse uma prova de que o ser humano não passa de um agregado de matéria. Ver: Charles Darwin, The Descent of Man, and Selection in Relation to Sex, 1981, p. 396.

3. Friedrich A. Lange, Geschichte des Materialismus und Kritik seiner Bedeutung in der Gegenwart, 1866.

4. Carlos Sonnenschein e Ana M. Soto, “The Vestigial Remains of a Fallen Theory”, In Sheldon Krimsky e Jeremy Gruber, Genetic Explanations: Sense and Nonsense, 2013, p. 85.

5. Humberto Schubert Coelho, “The Rationality of Beauty: Aesthetics and the Renaissance of Teleology”, Zygon, v. 57, 2022, p. 53. Comentários entre parênteses foram acrescentados com vistas a maior clareza.

6. Steen Rasmussen, Mark A. Bedau, Liaohai Chen, David Deamer, David C. Krakauer, Norman H. Packard e Peter F. Stadler (ed.), Protocells: Bridging Nonliving and Living Matter, 2009, p. xiii.

7. John Eccles, Evolution of the Brain: Creation of the Self, 1996, p. 248.

8. Peter Ulmschneider, Intelligent Life in the Universe: Principles and Requirements Behind Its Emergence, 2006, p. 198.

9. Ernst Mayr, “Teleological and Teleonomic, a New Analysis”, In Robert Cohen e Marx W. Wartofsky (Ed), Methodological and Historical Essays in the Natural and Social Sciences, 1974.

10. Justin Garson, A Critical Overview of Biological Functions, 2016.

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