QUEM SOMOS

ARTIGO

Resgatando a meditação como prática de regulação emocional

Ester Utrilla de Figueiredo|

21/06/2024

Screenshot 2024-01-02 at 12.44.52

Ester Utrilla de Figueiredo

Formada em Psicologia pela UCM (Universidad Complutense de Madrid) e Mestre em Psicologia na linha de Avaliação e Reabilitação Neuropsicológica pela UFPR (com foco em espiritualidade e saúde). É psicóloga clínica e atua junto com seu marido na co-liderança do grupo local da ABC2-Curitiba, de Amigos de L'abri e do Ministério Cristianismo e Cultura da Igreja Presbiteriana Central da mesma cidade.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Utrilla, E.F. Resgatando a meditação como prática de regulação emocional. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

A necessária hibernação dos exaustos

As obrigações do mundo adulto tornam as pessoas seres que estão em constante vivência automática e em desconexão com o mundo à sua volta. No fim do dia, sentimos raiva, medo ou tristeza sem saber o porquê; estamos desintegrados das “nossas partes”. Viver no automático impossibilita que (a)percebamos aquilo que nos feriu, indignou ou preocupou ao longo do dia. A pausa necessária para pensar sobre si mesmo está em falta.

Viver no automático impossibilita que (a)percebamos aquilo que nos feriu, indignou ou preocupou ao longo do dia. A pausa necessária para pensar sobre si mesmo está em falta.

Na nossa cultura sobrecarregada, submeter-se à nossa criaturidade é uma parte necessária e negligenciada do nosso discipulado.¹ Mas como se acalmar em um mundo cheio de barulho? No mundo contemporâneo, o entendimento da vida como desempenho torna a inatividade apenas um tempo para se recuperar do trabalho, mas falta o tempo livre à contemplação.²

A inatividade contemplativa diferencia a figura do vigia da figura do pensador; enquanto o primeiro sempre persegue um objetivo concreto, o segundo não tem um propósito ou objetivo em mente.³ A segurança de quem contempla é o abandono de si e a renúncia humilde para caminhar na presença de Deus.⁴ Para a tradição cristã, a vida contemplativa parte de um olhar fixo e constante em Deus, exigindo de nós uma vigilância incessante.⁵ O fervente primeiro amor, o esvaziamento de si, a paz e a transformação são elementos que acompanham esse viver. A solitude, como afastamento físico e intencional dos outros, tem grandes efeitos em diminuir a pressa, a ansiedade e a raiva, porque afastamos a percepção de que o mundo está sob nossos ombros.⁶

Mas as pessoas que procuram isolamento em retiros espirituais percebem que, mesmo com a retirada de estímulos, elas se encontram, ainda que em um lugar silencioso, com os próprios pensamentos indo em todas direções.⁷ Apesar de o silêncio físico contribuir para o florescimento interior, quando não estamos acostumados com ele, pode acontecer de surgirem variados pensamentos mesmo que você tente afastá-los.⁸

A construção do silêncio é difícil, mas necessária para conhecer-se e crescer, porque a agitação vital nos impede de ver as coisas como elas realmente são.⁹ Na sociedade atual, o ruído da informação impede a escuta, pois todos estão produzindo, e estar inativo demanda tempo: um demorar contemplativo.¹⁰ Por precisar satisfazer nossas necessidades de forma imediata, não conseguimos ter acesso à realidade, pois isso só é possível a partir de uma atenção contemplativa. Além disso, o recolhimento pode ser entendido apenas como a sujeição da atenção ao controle da vontade.¹¹ Por isso, Dallas Willard indica que o primeiro passo para ser discípulo de Jesus seria interromper propositalmente os pensamentos, os sentimentos e os comportamentos automáticos, colocando o nosso corpo diante de Deus com práticas intencionais.¹²

O corpo é importante para a formação dos desejos, porque, assim como os hábitos, eles são corporais, e a temperança é a virtude que molda os desejos que constituem nossa vida.¹³ Mas controlar nossas paixões e nossos desejos não significa que podemos suprimi-los, e sim que podemos formá-los. Nesse sentido, a temperança nos ajuda a ter prazer naquilo que deveria nos dar prazer e a amar as coisas corretas de maneira correta.¹⁴ Precisamos aprender a nos sentir bem mesmo sem estarmos no controle, mesmo nas tormentas da vida. E a meditação nos auxilia a direcionar o nosso olhar e nosso estar para esse fim, uma vez que nos ajuda a estar mais temperados. Contudo, a meditação constante na lei guardada no coração não está separada do uso correto do corpo; existe uma transformação da vida por meio da simples meditação nas Escrituras, tornando quem medita “como a árvore plantada junto a correntes de águas” (Salmos 1.3, ARA).

Contemplativos disfarçados na inércia do mundo

Muitos associam meditação com práticas de origem oriental, esquecendo-se de que o cristianismo tem uma longa tradição de práticas contemplativas. Por isso, muitas práticas, como o mindfulness, que serve para promover estados de autoconsciência e conexão com processos e estados cognitivos e corporais, de origem budista, são ajustadas (com terapias cognitivas) para o homem moderno ocidental em virtude também de sua eficácia cientificamente comprovada como técnica de relaxamento e aplicada a transtornos como depressão, ansiedade e estresse.¹⁵

O estresse e a ansiedade partem do medo como emoção básica; um medo que se torna crônico. Além disso, as frustrações do cotidiano podem gerar uma raiva que desemboca em explosões de amargura. Sendo assim, as técnicas de relaxamento auxiliam tanto em situações de medo quanto em momentos de raiva, fomentando a regulação emocional. Na vivência da experiência emocional, avaliamos primeiramente a experiência para depois conseguir gerenciar e mudar o estado emocional.¹⁶ Desse modo, podemos, sim, estar abertos aos sentimentos, regulá-los da maneira adequada e moderar aqueles desadaptativos. Dessa forma, as técnicas de relaxamento entram nos mecanismos de regulação exploratória, centrada em adquirir novas habilidades.¹⁷ Algumas técnicas específicas seriam diversos exercícios de respiração ou relaxamento, o mindfulness e, no geral, a meditação.¹⁸

Já no final dos anos 80, Dallas Willard, em O espírito das disciplinas, afirmava que cada vez mais estavam sendo amplamente (re)popularizadas práticas como a meditação para o crescimento espiritual.¹⁹ No século 20, houve um aumento do engajamento dos líderes religiosos nas práticas contemplativas e, no início do século 21, essa tradição foi se ampliando por intermédio de diferentes sociedades e ordens religiosas,²⁰ continuando o trabalho dos grandes mestres clássicos da história do cristianismo.

Todos nós temos mestres que nos ensinam como gerenciar sentimentos e pensamentos, mas nem sempre esses ensinamentos são adequados. Essa autoanálise sobre o que apreendemos (e de quem) pode ser angustiante, mas é necessária para nos direcionar até aquele que deve ser nosso verdadeiro mestre: Jesus,²¹ aquele que nos ensina a orar e que se comunica conosco em oração por meio da oração meditativa –  a parte receptiva da oração.

No livro Relatos de um peregrino russo, o guia lembra ao peregrino que a sabedoria não é suficiente, pois seriam também necessárias a humildade e a prática.²² A postura equilibrada (que nos permite ficar o maior tempo sentados), o silêncio (interior e exterior) e a imobilidade do corpo nos leva à quietude do espírito. Além disso, acompanhar a respiração, suavizando-a (sem dominá-la), para alguns já seria considerado um exercício espiritual.²³

Há quem acredite que as disciplinas seriam como exercícios físicos que nos ajudam a desenvolver certos músculos, mas, na verdade, elas são maneiras de apreender nossa dependência de Deus.²⁴ Nesse sentido, as diferentes necessidades fazem com que uma vida disciplinada seja diferente para cada uma delas. Todavia as disciplinas não são comportamentos de retidão para colocar em listas, e sim meios de graça destinados ao nosso bem-estar e à maturidade emocional e espiritual.²⁵

É verdade que sem tempo não existe oração, mas o principal não seria tanto o tempo empregado ou a técnica utilizada, e sim a atitude de orar,²⁶, visto que essa atitude permite manter um tônus meditativo sem esforço e sem preocupação com as possíveis distrações, tornando mais fácil passar um maior tempo orando. A meta seria “manter a memória de Deus viva em seu coração a todo momento do dia e da noite”.²⁷

Quando baseamos a espiritualidade em técnicas, estamos restringindo aquilo que deveria ser um modo de vida,²⁸ mas existem algumas diretrizes que podem ajudar. Por exemplo, na meditação pode ser usada uma frase em sintonia com a respiração, já que o ritmo ajuda a distanciar-se do barulho e seu uso repetido durante o dia ajuda a transformar a percepção, auxiliando-o a se preparar para falar com Deus e finalmente permitir que Deus fale com você.²⁹ As práticas podem ir desde apenas olhar para o Senhor, usar as Escrituras para aquietar a mente (como na lectio divina) ou mesmo  ficar quieto no reflexo da glória de Deus na criação.³⁰

Sem um parar em si, não conseguimos visualizar o caminho que já percorremos ou enxergar para onde queremos ir. Assim, o autoconhecimento fica nebuloso, e sem autoconhecimento não há autorregulação (nem temperança, nem domínio próprio), porque, para poder gerenciar as emoções, preciso primeiro entender como elas me moldam e até onde me levam, visto que ninguém pode gerenciar o desconhecido. Uma vez nesse ponto, podemos conduzi-las de maneira adequada, expressar os sentimentos na sua justa medida, conseguir relaxar quando necessário, liberar a ansiedade ou a raiva, etc.³¹ Dessa forma, assumimos a responsabilidade pelos próprios atos, reconhecemos os impulsos internos e mantemos a flexibilidade necessária para realizar as mudanças quando for preciso.³²

A oração meditativa nos ajuda a transformar os sentimentos para o objetivo final: a semelhança com Cristo. Nesse sentido, todos nós somos chamados a ser contemplativos.³³ Mesmo no meio da agitação mental, podemos aprender sobre nosso caos, orar pelo nosso coração barulhento e seguir em nossa jornada. Pedimos a mudança de coração e ouvimos a voz calma de Deus: estamos desenvolvendo um hábito;³⁴ um hábito que visa desenvolver um novo caráter com novas reações (de paz, paciência, mansidão e domínio próprio). Também podemos considerar a distração, fazendo uma pausa, colocando-a de lado e examiná-la mais tarde.³⁵

As práticas meditativas não seriam apenas para os monges, porque “aqueles que são colocados no mundo e são feridos diariamente têm mais necessidade de remédio”.³⁶ Por isso, para Santa Teresa de Ávila (que diferencia meditação como nosso trabalho e contemplação como trabalho de Deus), a chave dos contemplativos não está em eles serem santos, mas na santidade da vida diária, pois a verdadeira vida contemplativa seria manter o espírito generoso, encontrando “Deus entre panelas e frigideiras”.³⁷ O alvo da meditação é estar pronto para receber o que Deus tem a oferecer. E, para alguns, Ele oferece a contemplação.³⁸ A maioria dos cristãos não se tornarão contemplativos puros, mas isso não quer dizer que não tenham uma profunda vida interior na atividade, encontrando Deus na prece simples que os conduz ao limiar da contemplação.³⁹ Seriam eles os contemplativos ocultos, desfrutando, inconscientemente, de uma contemplação disfarçada, mas estando mais próximos de Deus do que poderiam perceber.

O alvo da meditação é estar pronto para receber o que Deus tem a oferecer. E, para alguns, Ele oferece a contemplação.

A busca da felicidade fora de si afasta o homem da própria realidade, de Deus e dele mesmo.⁴⁰ Assim, para Thomas Merton, a vida cristã permanece adormecida até ser despertada pela contemplação ao entrar em contato com Deus. A vida de contemplação então não consistiria em uma técnica ou disciplina, mas na vida do Espírito Santo em nós, que fala para nós desde dentro do nosso ser. A atitude sagrada não se afasta do nosso vazio interior, mas entra nele com reverência. Por causa disso, a atitude sagrada é essencialmente contemplativa: “esse delicado instinto de ceder ao mais leve movimento do amor de Deus é que faz o verdadeiro contemplativo”.⁴¹

Na raiva sentida pela injustiça no trabalho, na tristeza pela dor da tragédia, no medo paralisador pelo futuro incerto, Deus nos lembra: “Aquietai-vos, e sabei que Eu Sou Deus” (Salmos 46.10, ARA). Se o mundo não para, somos nós que devemos parar, pois só as máquinas são desenhadas exclusivamente para trabalhar. A desaceleração se tornou necessária, entretanto, de que forma e a que ritmo é algo que só Deus pode definir. Todavia, para escutar a orientação, precisamos parar e abrir os ouvidos. A pergunta que fica é: estamos dispostos a isso?

Se o mundo não para, somos nós que devemos parar, pois só as máquinas são desenhadas exclusivamente para trabalhar. A desaceleração se tornou necessária, entretanto, de que forma e a que ritmo é algo que só Deus pode definir.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Tish Warren, Liturgia do ordinário, 2019.

2. Byung-Chul Han, Vita contemplativa, 2023.

3. Ibidem.                 

4. Thomas Merton, A experiência interior, 2007.

5. Richard Foster, Rios de Água Viva, 2008, p. 81.

6. Jim Wilder, Renovated: God, Dallas Willard, and the Church that Transforms, 2020.

7. Abade Christopher Jamison, Encontre seu santuário, 2013.

8. Perceba que as distrações não têm sempre a forma de pensamentos ruins, mas também de coisas prazerosas (como a leitura de livros!) que podem ser uma distração no silêncio.

9. Ibidem. É importante entender que não se chega preparado para o silêncio; você precisa dedicar um tempo prévio (ex: 10 minutos) para conseguir se silenciar (ex: 5 minutos) com vistas a alcançar, assim, verdadeiramente um lugar de quietude. Uma vez que você consegue ficar um tempo em silêncio, aí, sim, você consegue expandi-lo.

10. Byung-Chul Han, 2023.

11. Evelyn Underhill, Practical Mysticism, 2023.

12. Dallas Willard, “The Divine Conspiracy”, apud Rebecca Konyndyk DeYoung, Vícios Esplêndidos: um novo olhar sobre os sete pecados capitais, 2023, p. 322.

13. Stanley Hauerwas, The character of virtue: letters to a godson, 2018, p. 163.

14. Ibidem.            

15. Brendan D. Kelly, “Psychology, Meditation, and the Brain Across Contemplative Traditions”, In The Oxford Handbook of Psychology and Spirituality, 2012, p. 451; Tim Stead, Mindfulness and Christian Spirituality: Making Space for God, 2017.

16. Nathalie P. Lizeretti, Terapia basada en Inteligencia Emocional, 2012.

17. Ibidem.            

18. No seu livro Mindfulness and Christian Spirituality: making space for God [Mindfulness e espiritualidade cristã: fazendo espaço para Deus], Tim Stead, pastor anglicano e instrutor de mindfulness em Oxford, oferece uma introdução à prática, conectando-a com a teologia e prática cristã, explicando como ela pode ajudar no crescimento da fé e como pode facilitar a melhor compreensão da oração contemplativa.

19. Dallas Willard, O Espírito das Disciplinas, 2021 (publicação original em 1988).

20. Brendan D. Kelly, 2012.

21. Dallas Willard, A conspiração divina: redescobrindo nossa vida oculta em Deus, 2021.

22. Anônimo do século 19, Relatos de um peregrino russo, 2013, p. 12.

23. Ibidem.     

24. Jim Wilder, 2020.

25. Ibidem.           

26. Abade Christopher Jamison, 2013.     

27. São Bento apud Abade Christopher Jamison, Encontre seu santuário, 2013, p. 52.

28. Ibidem.     

29. Richard Foster, 2011. Além disso, Richard Foster, em seu clássico Celebração da disciplina, no capítulo sobre meditação, oferece uma série de sugestões de exercícios que podem ser feitos por qualquer pessoa com adaptações individuais. Por exemplo, você pode usar respiração, deixando ir com a expiração alguma preocupação específica que esteja lhe causando ansiedade ou mal estar, e inspirando enquanto pensa o que Deus pode te proporcionar para resolver essa preocupação (ex: deixo ir a minha preocupação pela prova de amanhã – soltando o ar pela boca / recebo tua calma e segurança de que o Senhor tem tudo sob controle – inspirando o ar pelo nariz).

30. Ibidem.         

31. Manuel Muñoz Heras, Inteligencia Emocional: emociones, estrés y salud, 2010. 

32. Ibidem. 

33. Richard Foster, 2011.

34. Ibidem.      

35. Abade Christopher Jamison, 2013.

36. São João Crisóstomo apud Abade Abade Christopher Jamison, 2013, p. 61. 

37. Ibidem.

38. Neste sentido, a meditação seria nosso trabalho e a contemplação seria o trabalho de Deus em nós.

39. Thomas Merton, 2007.

40. Ibidem.                   

41. Ibidem, p. 80.   

Outros artigos [n. 3]

WhatsApp Image 2024-06-14 at 10.29
foto unusmundos
pexels-cottonbro-4921197
3-ludwig-wittgenstein-1-dreizehn
pexels-tima-miroshnichenko-8327876
lilartsy-8xjk7Rjpvko-unsplash
pexels-mikhail-nilov-8846404
O indivíduo justifica o Estado
petar-avramoski-JTVmS0yFKoU-unsplash
Finalidade e ordem natural
joshua-coleman-FYev7eaTcRE-unsplash
Screenshot 2024-04-05 at 10.05
O dilúvio aconteceu

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!