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Wittgenstein sobre a ciência e as crenças religiosas

Nicola Claudio Salvatore|

17/05/2024

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Nicola Claudio Salvatore

Graduado e mestre em Filosofia pela Università degli Studi di Bari na Itália, possui um segundo mestrado em Filosofia pela University of London, e doutorado em Filosofia pela University of Edinburgh, na Escócia. Atualmente trabalha como professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisador da Unicamp.

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Como citar

Salvatore, Nicola Claudio. Wittgenstein sobre a ciência e as crenças religiosas. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Apesar de ser mais conhecido pelos seus trabalhos acerca da Lógica e da Filosofia da Linguagem, como o Tractatus Logico Philosophicus¹ e as Investigações filosóficas,² Ludwig Wittgenstein escreveu uma série de reflexões extremamente instigantes, mesmo que escassas e assistemáticas, acerca das crenças religiosas que podem ser um bom ponto de partida para compreender a diferença e a complementaridade entre ciência e religião.³

Para elucidar as principais teses de Wittgenstein acerca da natureza peculiar das crenças religiosas,⁴ considere as seguintes passagens:

O que sei sobre Deus e o propósito da vida? Eu sei que este mundo existe... Esse algo é problemático, o que chamamos de significado. Que esse significado não está nele, mas fora dele... O sentido da vida, ou seja, o sentido do mundo, podemos chamar de Deus. [...] Rezar é pensar no sentido da vida.⁵

E também: “acreditar em um Deus significa compreender a questão sobre o sentido da vida. Acreditar em um Deus significa ver que os fatos do mundo não são o fim da questão. Acreditar em Deus significa ver que a vida tem um sentido”.⁶

De acordo com Wittgenstein, ter crenças religiosas não significa simplesmente acreditar na existência de uma divindade ou de algumas divindades; as crenças religiosas constituem uma visão de mundo por meio da qual o crente “dá sentido aos fatos do mundo” e atribui um significado específico à existência humana.

As implicações desse pensamento podem ser mais bem apreciadas à luz do que Wittgenstein escreve sobre as diferenças radicais entre ciência e religião. Em Observações sobre “O ramo de ouro” de Frazer,⁷ Wittgenstein critica fortemente as opiniões sobre a religião e a mitologia que o antropólogo social britânico James George Frazer apresentou no texto The Golden Bough.⁸

Conforme Frazer, todas as crenças mitológicas, mágicas e religiosas podem ser consideradas uma espécie de protociência, uma primeira e imperfeita tentativa da humanidade de dar sentido e controlar as forças da natureza; logo, essas crenças deveriam ser abandonadas como ultrapassadas à luz das descobertas de práticas epistêmicas mais confiáveis, como a ciência moderna. Por exemplo, em seu livro, Frazer considera a prática dos sacrifícios humanos como uma tentativa de melhorar e manter a produtividade do solo; portanto, como uma forma bárbara e totalmente ineficaz de ciência agrícola.

O veredicto de Wittgenstein acerca do trabalho do Frazer é extremamente crítico:

Frazer é muito mais selvagem (savage) que a maioria dos seus selvagens (savages), pois estes não estariam tão longe da compreensão de uma questão mental remota quanto um inglês do século XX. Suas explicações das práticas primitivas são muito mais toscas que o próprio sentido dessas práticas.⁹

Segundo Wittgenstein, tratar as religiões como uma espécie de protociência imperfeita, que pode ser criticada e considerada “falsa” à luz das explicações científicas modernas, apenas demonstra que o Frazer não entendeu o significado e o papel das crenças e práticas religiosas:

O absurdo consiste em que Frazer apresenta isso como se esses povos [os crentes religiosos] tivessem uma representação inteiramente falsa (ou até delirante) do curso da natureza, ao passo que eles só possuem uma interpretação peculiar dos fenômenos. Ou seja, se eles redigissem o seu conhecimento natural, não se diferenciaria fundamentalmente do nosso. Apenas a sua magia é diferente.¹⁰

Conforme Wittgenstein, as crenças religiosas visam enfrentar questões radicalmente diferentes daquelas investigadas pelos cientistas.  Enquanto as ciências da natureza pretendem descrever, compreender e prever fenômenos físicos utilizando evidências empíricas, fruto de experimentos e observação, as crenças religiosas expressam a visão do mundo, as expectativas e as necessidades espirituais de determinada comunidade religiosa que não podem ser adequadamente compreendidas, muito menos criticadas ou rejeitadas, quando reduzidas à expressão de um pensamento pré-científico e principalmente falacioso.

Conforme Wittgenstein, as crenças religiosas visam enfrentar questões radicalmente diferentes daquelas investigadas pelos cientistas.

Como foi apontado por Coliva,¹¹ aqui Wittgenstein faz uma distinção importante entre opiniões e teorias, por um lado, e elementos simbólicos e religiosos de um ritual, por outro. O pensamento religioso é mágico e possui elementos simbólicos e rituais que o diferencia do pensamento científico; portanto, comparar os “sistemas de representação” religiosos e as ciências naturais é profundamente equivocado, já que as ciências e as práticas religiosas têm objetivos e “áreas de investigação” radicalmente diferentes.

Já que as crenças religiosas constituem um sistema específico de referência por meio do qual o crente religioso dá sentido à realidade, segundo Wittgenstein não podem ser empiricamente fundamentadas com evidências ou razões. Pelo contrário, as crenças religiosas são os fundamentos sobre os quais um crente religioso forma e justifica as suas outras crenças. Porém, isso não significa que as crenças religiosas sejam epistemicamente irracionais ou as únicas a não ser “epistemicamente fundamentadas”. Considere a seguinte passagem de Sobre a certeza,¹² no qual Wittgenstein fala sobre a estrutura de práticas epistêmicas como as ciências naturais:

Todas as verificações, as confirmações e as invalidações de uma hipótese ocorrem já dentro de um sistema. E esse sistema não é um ponto de partida, mais ou menos arbitrário e duvidoso, para todos os nossos argumentos, não pertence à essência daquilo a que chamamos um argumento. O sistema não é tanto o ponto de partida, como o elemento onde vivem os argumentos.¹³

Já que as crenças religiosas constituem um sistema específico de referência por meio do qual o crente religioso dá sentido à realidade, segundo Wittgenstein não podem ser empiricamente fundamentadas com evidências ou razões.

Segundo Wittgenstein, fornecer evidências e razões em suporte de qualquer hipótese científica e, geralmente, de qualquer crença factual acerca do mundo só pode ser feito assumindo toda uma série de proposições, a saber, as dobradiças (hinges), que não podem nem precisam ser epistemicamente fundamentadas. Para entender esse ponto, considere as seguintes passagens de Da certeza : “[…] As perguntas que formulamos e as nossas dúvidas dependem do fato de certas proposições estarem isentas de dúvida, serem como que dobradiças em volta das quais as dúvidas giram”.¹⁴ Isto é, pertence à lógica das nossas investigações científicas que certas coisas de fato não sejam postas em dúvida: “[…] Não podemos investigar tudo, por isso somos forçados a nos contentarmos com suposições. Se queremos que a porta se abra, é preciso que as dobradiças lá estejam”.¹⁵

Segundo Wittgenstein, qualquer investigação científica pressupõe algumas “dobradiças”, tais como “há objetos físicos”, “seres humanos têm corpos”, “o  mundo existiu bem antes do nosso nascimento” etc., que não precisam e nem podem ser epistemicamente fundamentadas com evidências ou razões. Ele nos fala: “A dificuldade é compreender a falta de fundamento das nossas convicções”.¹⁶

Segundo Wittgenstein, qualquer investigação científica pressupõe algumas “dobradiças”, tais como “há objetos físicos”, “seres humanos têm corpos”, “o mundo existiu bem antes do nosso nascimento” etc., que não precisam e nem podem ser epistemicamente fundamentadas com evidências ou razões.

Isso não significa que acreditar nas “dobradiças” das ciências naturais seja epistemicamente irracional; pelo contrário, assim como afirma o influente epistemólogo contemporâneo Crispin Wright,¹⁷ temos o direito racional (rational entitlement) de  acreditar nas  “dobradiças” das nossas práticas epistêmicas, mesmo que elas não tenham suporte epistêmico, pois não fazê-lo levará a uma paralisia cognitiva completa, ou seja, à impossibilidade de formar crenças verdadeiras sobre o mundo.

Mas se acreditar nas “dobradiças” das ciências naturais é epistemicamente racional, apesar da impossibilidade de fundamentar essas crenças básicas em evidências e razões, por que acreditar nas “dobradiças” dos vários jogos de linguagem religiosos deveria ser considerado ilegítimo ou irracional?

Desenvolvendo as teses de Wittgenstein acerca da estrutura da razão e da natureza das nossas práticas epistêmicas, podemos concluir que um crente religioso também têm o direito racional de acreditar nas “dobradiças” do seu sistema de referência, mesmo que essas “dobradiças” não sejam baseadas em evidências ou razões.

Essa posição pode parecer tanto apressada quanto liberal demais, já que permitiria a proliferação de uma vasta gama de sistemas de referência, ao mesmo tempo epistemicamente infundados, porém todos igualmente legítimos, nos quais um agente teria o direito racional de acreditar mesmo quando esses jogos de linguagem autorizam qualquer tipo de crenças irracionais.

Considerem o caso de um proponente do Criacionismo da Terra jovem que defende, com base numa exegese literalista da Bíblia, várias crenças em desacordo direto com toda uma série de teorias científicas amplamente aceitas; por exemplo, ele acredita que a Terra não tem mais de 10.000 anos e que os fósseis nada mais são do que armadilhas demoníacas bem elaboradas destinadas a testar e confundir a sua fé. Já que o sistema de referência desse agente é, afinal de contas, tão epistemicamente “infundado” quanto todas as nossas práticas epistêmicas, as opiniões do nosso criacionista seriam tão racionalmente justificadas quanto aquelas de qualquer outro agente epistêmico.

Porém, lembre-se de que, segundo Wittgenstein, as crenças religiosas enfrentam questões como o significado da vida e da existência humana, que não podem ser abordadas por qualquer outro jogo de linguagem epistêmico.

Isso significa que seria impossível criticar os jogos de linguagem religiosos utilizando os critérios de outras práticas epistêmicas, como as da ciência empírica, mas também significa que seria impróprio criticar ou rejeitar os jogos de linguagem epistêmicos como os das ciências naturais utilizando critérios de um sistema de referência religioso.

Logo, as opiniões do criacionista da Terra jovem do nosso exemplo e, geralmente, de quem considera as suas crenças religiosas como hipóteses científicas alternativas tão válidas quanto aquelas da “ciência oficial”, são intrinsecamente equivocadas, já que não conseguem entender nem o papel e nem os limites dos sistemas de referências religiosos, e tampouco entendem a legitimidade e a importância de jogos de linguagem epistêmicos, como as ciências naturais.

Em Da certeza, Wittgenstein imagina comunidades com crenças religiosas em contraste total com os nossos conhecimentos científicos e tecnológicos; por exemplo, grupos que acreditam nos oráculos em vez de acreditar nas leis da física, ou que acham que seja possível alguns seres humanos voarem até a Lua sem precisar de algum tipo de tecnologia etc.

Mesmo reconhecendo as dificuldades práticas que poderiam surgir tentando instaurar um diálogo ou, pelo menos, tentando achar algum ponto em comum com essas comunidades, e apesar das suas teses acerca da falta de evidências ou razões “fortes” em suporte das “dobradiças” das nossas práticas epistêmicas, o veredicto de Wittgenstein acerca dessas comunidades é o seguinte: “Essas pessoas não sabem muito do que nós sabemos. E, por mais que acreditem, estão enganadas, e nós sabemos disso. Se compararmos o nosso sistema de conhecimentos com o delas, este é, evidentemente, de longe o mais pobre”.¹⁸

Seguindo e desenvolvendo essas passagens de Wittgenstein, entendemos que a racionalidade de um sistema de referência religioso pode ser estabelecida a partir da sua compatibilidade com as conclusões das nossas práticas epistêmicas. Por exemplo:

O dogma [católico] é expresso em forma de asserção, e é inabalável, mas ao mesmo tempo qualquer opinião prática é harmonizável com ele, em alguns casos mais do que em outros. Não se trata de um muro que impõe limites ao que se pode acreditar, mas sim de um freio que, no entanto, serve praticamente o mesmo propósito […].¹⁹

Enquanto alguns sistemas religiosos estão totalmente em contraste com qualquer opinião prática e com os resultados das nossas investigações científicas, e, portanto, podem ser considerados epistemicamente problemáticos, se não totalmente irracionais, outros são completamente compatíveis com os nossos jogos de linguagem epistêmicos. Um bom exemplo da possibilidade de uma relação harmônica entre um sistema de representação religioso e as nossas práticas epistêmicas é a compatibilidade entre as crenças das principais denominações cristãs e as ciências naturais, também quando o contraste entre elas parece aparentemente insolúvel. Considere a seguinte passagem: “Pessoas muito inteligentes e cultas acreditam na história da criação tal como veem na Bíblia, enquanto outras consideram que está provado ser falsa, e as razões destes últimos são do conhecimento dos primeiros”.²⁰

Segundo Wittgenstein, os agentes em questão pertencem a dois sistemas de referência opostos, nos quais as mesmas noções de “evidência”, “razão “e “justificação” são radicalmente diferentes. Aparentemente, esse tipo de desacordo epistêmico seria insolúvel.

Porém, seguindo e desenvolvendo os escritos de Wittgenstein acerca das diferenças entre os sistemas de representação religiosos e as nossas práticas científicas, é possível concluir que esse desacordo, mais do que insolúvel, é apenas aparente. Isso se dá porque as crenças teístas cristãs sobre a Criação ex nihilo não pretendem ser uma explicação científica ou competir com as visões científicas contemporâneas acerca da origem do mundo,²¹ já que as ciências naturais e as crenças religiosas pretendem enfrentar interrogativos radicalmente diferentes: “Sentimos que, mesmo que todas as questões científicas possíveis tenham obtido resposta, nossos problemas de vida não terão sido sequer tocados. É certo que não restará, nesse caso, mais nenhuma questão; e a resposta é precisamente essa”.²²

Diferentemente das ciências naturais, os jogos de linguagem religiosos abordam uma série de questões acerca do sentido dos “fatos do mundo”, da existência humana e do destino último da humanidade, que estão fora do alcance da ciência. Consequentemente, os casos de aparente “desacordo insolúvel” entre sistemas de referência religiosos, por exemplo, as principais denominações cristãs e os sistemas de referência científicos, são apenas o resultado de uma comparação equivocada entre jogos de linguagem ao mesmo tempo diferentes e mutuamente compatíveis.

Diferentemente das ciências naturais, os jogos de linguagem religiosos abordam uma série de questões acerca do sentido dos “fatos do mundo”, da existência humana e do destino último da humanidade, que estão fora do alcance da ciência.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, 2001.

2. Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, 1975.

3. Vale a pena sublinhar que neste trabalho estou apenas utilizando e desenvolvendo algumas das ideias de Wittgenstein sobre a religião, sem afirmar que as opiniões aqui expostas refletiriam as do filósofo austríaco. Para uma introdução à filosofia da religião de Wittgenstein, ver: Brian Clack, An Introduction to Wittgenstein’s Philosophy of Religion, 1999.

4. Ver: Ludwig Wittgenstein, Culture and Value, 1980; Da certeza, 2000; “Observações sobre ‘O Ramo de Ouro’ de Frazer”, Suplemento da Revista Digital Ad Verbum, v. 2, n. 2, jul-dez 2007, pp. 186-231; Tractatus logico-philosophicus, 2001; Crispin Wright, “Warrant for nothing (and foundation for free)?”, Aristotelian Society Supplement, v. 78, n. 1, 2004a, pp. 167-212; Crispin Wright, “Wittgensteinian Certainties,” in Denis McManus (ed), Wittgenstein and Scepticism, 2004b, pp. 22-55.

5. Ludwig Wittgenstein, Notebooks 1914–16, 1961, pp. 72-73 (4 de julho de 1916).

6. Ibidem, p. 74 (8 de julho de 1916).

7. Wittgenstein, 2007.

8. James George Frazer, The Golden Bough, 1906-15, 1936.

9. Wittgenstein, 2007, p. 131.

10. Ibidem, p. 141.

11. Annalisa Coliva,Was Wittgenstein an Epistemic Relativist?”, Philosophical Investigations, v. 33, n. 1, 2010, pp. 12-13.

12. Wittgenstein, 2000.

13. Ibidem, p. 105.

14. Ibidem.       

15. Ibidem, pp. 341-343.

16. Ibidem, p. 166.

17. Wright, 2004a; 2004b.

18. Wittgenstein, 2000, p. 286.

19. Wittgenstein, 1980, p. 28, ênfase e tradução nossa.

20. Wittgenstein, 2000, p. 336.

21. Esta visão, defendida pela maioria das denominações cristãs tradicionais, tem sido criticada pelos proponentes do chamado Design Inteligente, segundo os quais o Criacionismo é uma teoria científica viável para explicar a origem do mundo. Ver: William Dembski, The Design Inference, 1998; Erkki Vesa Rope Kojonen, The Intelligent Design Debate and the Temptation of Scientism, 2016. Essa posição é extremamente controversa e deu origem a um debate que seria impossível reconstruir aqui.

22. Wittgenstein, 2001, seção 6.5.2.

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