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ARTIGO

A mordomia ambiental cristã é suficiente?

Parte 2: Mais do que mordomos

Tiago Pereira|

31/05/2024

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Tiago Pereira

Biólogo, mestre e doutor em Botânica pela Universidade Federal de Viçosa. Atua como coordenador dos Grupos de Estudo da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²). É casado com Eliza e pai de Pedro e Maria Clara.

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Como citar

Pereira, Tiago. A mordomia ambiental cristã é suficiente? Parte 2: mais do que mordomos. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

No nosso último texto, discorremos sobre a ideia amplamente difundida da mordomia cristã e suas aplicações no trato das questões ambientais. Apesar de ser um conceito construído a partir de verdades bíblicas fundamentais, apontamos diversas dificuldades que podem surgir a partir das formas de se interpretar as funções e o trabalho do mordomo. Destacamos, especialmente, que a ideia de “mordomia” apresenta sérias limitações, e a figura do “mordomo” não está necessariamente implícita nos relatos de criação de Gênesis 1—2. Encerramos nosso argumento, então, com duas importantes perguntas, que retomamos como ponto de partida aqui: “e se Deus não colocou os humanos na terra para serem mordomos da criação, mas para serem outra coisa?” e “se não formos mordomos, então seremos o quê?”

Para responder a essas questões, precisamos tentar entender algumas figuras-chave apresentadas ao povo hebreu na revelação divina. A Bíblia constrói, ao longo de suas páginas, diversas imagens que representam o que Deus quer nos comunicar sobre o propósito para o qual fomos criados. O jardim, o templo, a nação escolhida e muitas outras figuras fazem parte desse imaginário, que se complementa na designação de funções específicas que os homens deveriam exercer, como o sacerdote, o rei e o profeta, por exemplo. Precisamos ter todas essas imagens em mente para entendermos o que Deus espera de suas criaturas e qual o nosso propósito diante da criação.

O domínio humano e a crise ecológica

As grandes controvérsias sobre o papel que o homem deve exercer diante da natureza surgem com as diversas interpretações da ordem dada por Deus no primeiro capítulo de Gênesis. A interpretação moderna do domínio humano como uma forma de “dominação” sobre a natureza pode ser rastreada até a ideia de progresso presente no pensamento de Francis Bacon no século 17. Considerado um dos fundadores do método científico, Bacon era um legítimo cristão de sua época, e seu pensamento filosófico estava embebido em teologia e estudos bíblicos. O teólogo anglicano Richard Bauckham destaca que Bacon, em sua obra, teria sido o primeiro a trazer um tratamento exegético de Gênesis 1.26-28, interpretando o domínio dado por Deus aos homens como um mandato para exploração progressiva dos recursos da criação em benefício da vida humana.¹

Com Bacon, a forma como o homem usa os recursos da natureza se torna um projeto a ser perseguido, como o grande propósito do empreendimento científico e tecnológico que estava nascendo.² O projeto baconiano buscava recuperar o potencial humano presente antes da queda através da ciência e da tecnologia, conforme ele escreveu em 1620 no Novum Organum, uma de suas obras mais importantes: “Pois com sua queda o homem perdeu seu estado de inocência e seu domínio sobre as coisas criadas. No entanto, ambas as perdas podem até certo ponto ser compensadas mesmo nesta vida, a primeira pela religião e a fé, a última pelas artes e ciências”.³ Se a religião era vista como o meio pelo qual revertemos os efeitos da Queda nas esferas moral e espiritual, o desenvolvimento científico permitiria a restauração do domínio humano sobre a terra. Em sua visão utópica, o homem deveria “recuperar o direito sobre a natureza que lhe pertencia por legado divino”.⁴

Pode-se argumentar que a visão de Bacon preserva algo de um idealismo cristão, visto que, para ele, o cientista (o filósofo natural) deveria trabalhar visando ao bem comum e o florescimento do mundo. O trabalho científico seria uma forma do cristão se engajar com o processo divino de redenção da natureza, aquilo que Francis Schaeffer chama de uma “cura substancial”.⁵ No entanto, é importante destacar que o projeto baconiano se fundamentava numa visão profundamente utilitarista do mundo natural. Em sua percepção, os elementos e as criaturas de Deus não tinham valor intrínseco, mas eram meros recursos à disposição humana para serem primeiramente conquistados e depois transformados para seu próprio benefício.

A ideologia do progresso tecnológico-científico de Bacon encontrou ampla ressonância na visão mecanicista do universo que se desenvolve quase que concomitantemente nos primórdios da ciência moderna. O mecanicismo, de forma bastante reducionista, interpretava o cosmos como uma estrutura constituída de engrenagens perfeitamente projetadas e alinhadas, meras peças capazes de ser completamente decifradas pelas equações matemáticas. Associado ao utilitarismo, o mecanicismo fomentou as bases para uma visão de exploração cada vez mais prejudicial para a natureza. Como explica a teóloga Sallie McFague:

[...] durante os últimos séculos, tornou-se cada vez mais útil e lucrativo pensar no mundo mais como uma máquina do que como um corpo. Se o modelo de máquina for dominante, então pensaremos nas partes do mundo como apenas relacionadas externamente, capazes de serem reparadas como carros com peças novas substituindo as defeituosas, com poucas consequências para a Terra como um todo. Com um modelo tão básico em mente, é difícil para as pessoas verem a tragédia das práticas florestais de corte raso ou as implicações do aquecimento global.⁶

Associado ao utilitarismo, o mecanicismo fomentou as bases para uma visão de exploração cada vez mais prejudicial para a natureza.

Essa é a visão de domínio que foi denunciada pelo historiador Lynn White Jr., em seu clássico artigo de 1967, no qual discorreu sobre as raízes históricas da crise ambiental. O trabalho de White foi amplamente debatido nas últimas décadas, especialmente dentro dos círculos cristãos, uma vez que suas conclusões apontavam para o cristianismo como o grande responsável pela crise ecológica do planeta. Em suas palavras, “as matrizes de todos os problemas ambientais e ecológicos estão fundamentadas na concepção antropológica judaico-cristã.”⁷ White denunciou em seu trabalho como o cristianismo havia se tornado uma religião antropocêntrica, estabelecendo um profundo dualismo entre o homem e a natureza, e como sociedades cristãs modernas justificaram a exploração da natureza para benefício humano através da vontade divina.

Como muitos autores ressaltaram, a crítica de Lynn White, apesar de equívocos patentes, precisava ser recebida com humildade. Ainda que sua apresentação do cristianismo pudesse estar baseada em interpretações discutíveis dos fundamentos bíblicos, é preciso reconhecer que havia verdade em suas denúncias. Era inegável admitir que versões distorcidas do cristianismo, baseadas em leituras bíblicas equivocadas a respeito do domínio do homem sobre a criação, bem como em filosofias estranhas à fé cristã, eram responsáveis por muitos dos problemas ecológicos que vivenciamos nos últimos séculos.

Mas se essa ideia do domínio como uma dominação exploratória sobre a natureza não era o que o texto bíblico buscava nos ensinar, como podemos interpretar melhor os relatos de criação presentes nos primeiros capítulos de Gênesis?

A figura do Rei-Pastor

A ordem de dominar sobre a criação surge no primeiro relato da criação, onde encontramos a primeira função ordenada exclusivamente ao homem (Gn 1:26-28). Dois verbos são usados para explicar essa função no texto original em hebraico. O primeiro verbo é “radah”, que significa dominar, governar ou reinar. O segundo é “kabash”, com o sentido de subjugar, submeter, controlar ou conquistar. Ambos os verbos são utilizados em diversas outras passagens do Antigo Testamento se referindo a atitudes de domínio e governo do próprio Deus perante a terra (Nm 32.22; 1Cr 22.18-19).

Um estudo minucioso da tradição judaico-cristã irá revelar que o uso desses verbos com o sentido de uma exploração violenta, com a qual muitas vezes nos deparamos, é mais recente do que imaginamos. Ao longo dos séculos, a interpretação dessas palavras está sempre vinculada a uma ideia de cuidado e respeito pela criação, algo que precisa ser resgatado nos dias de hoje. A compreensão do verbo subjugar (kabash) está constantemente associada ao uso que se faz da terra para a própria sobrevivência, e que, em certo nível, também é compartilhado com outras criaturas. No caso dos seres humanos, essa compreensão está ligada à prática da agricultura e ao trabalho na terra, algo que será mais bem qualificado no segundo capítulo de Gênesis. Nesse caso, o uso de ferramentas e tecnologia é positivamente aplicado ao benefício humano, mas não como um projeto de conquista e transformação de recursos, conforme percebemos na visão baconiana descrita anteriormente.

O segundo verbo, dominar (radah), parece distinguir melhor a função exclusiva do homem diante da criação. Como bem observa o teólogo Christopher Wright, “Deus aqui transmite às mãos humanas uma forma delegada da autoridade real do próprio Deus sobre toda a sua criação.”⁸ Os humanos, estabelecidos como imagens de Deus na criação, são um sinal da extensão da autoridade desse Deus, que é Criador e dono de toda a terra (Sl 24.1, 115.16). Wright observa que “Gênesis descreve a obra de Deus em termos de realeza, mesmo sem usar a palavra “rei”. A obra criadora de Deus exala sabedoria no planejamento, poder na execução e bondade na conclusão.”⁹

O primeiro capítulo de Gênesis emprega uma linguagem que denota realeza, mas não uma realeza nos termos das monarquias europeias a que estamos acostumados. Por mais contraintuitivo que seja para o pensamento moderno, a descrição da realeza no contexto das sociedades agrícolas do Antigo Oriente Próximo baseava-se num governo simbolizado pela imagem de um pastor. O rei era visto como um pastor de seus súditos, o guardião de suas vidas e de seu conforto. A posição de domínio, nesse caso, existia para o benefício dos seus seguidores. É por isso que, para o hebreu, falar da realeza e do reino de Yahweh era como falar de um pastor. A palavra que o profeta Miquéias recebe do Senhor associa claramente as figuras de Deus como pastor e como rei: “Eu os ajuntarei como ovelhas em um aprisco, como um rebanho em uma pastagem; haverá ruído de grande multidão. Aquele que abre o caminho irá adiante deles; eles passarão pela porta e sairão. O seu Rei passará à frente; sim, o Senhor os guiará” (Mi 2.12-13).¹⁰

Diversos salmos ressaltam a realeza de Deus representando-o como um pastor. No Salmo 145, o salmista exalta os atributos de Deus como um Rei de imensa bondade, justo, misericordioso, compassivo, paciente e transbordante de amor. É assim que este rei exerce seu domínio, de geração em geração, sobre todas as suas criaturas. Ele é bondoso em tudo que faz e cuida de todos os que o amam. O Salmo 72, igualmente, fala do rei ideal como aquele que governa de forma justa.

Não é por acaso que a ordem de dominar aparece imediatamente após os seres humanos serem criados à imagem de Deus, algo único dentre todas criaturas. A “imagem”, conforme apresentada no relato da criação, segue o padrão cultural do antigo oriente próximo de representação da realeza divina. Com esse entendimento, Christopher Wright afirma que “o domínio humano sobre o restante da criação deve ser um exercício de realeza que reflete o caráter e os valores da realeza do próprio Deus”.¹¹

Quando Moisés descreve na Torá como deveria ser um futuro rei sobre Israel, fica claro na instrução divina que o rei deveria temer a Deus, cumprir a lei fielmente, e que isso faria com que ele não se considerasse superior aos seus irmãos (Dt 17.18-20). Portanto, se entendemos que ser imagem de Deus na criação é o que nos capacita para o domínio, precisamos entender também que é ela que nos limita para não sermos tiranos. A imagem de Deus em nós não pode ser uma licença para abuso, exploração ou negligência, e se agirmos assim, na verdade, estaremos negando o significado dessa imagem em nós.

A postura de serviço presente no exercício de domínio e autoridade fica clara também no texto que relata os conselhos oferecidos pelos anciãos a Roboão, filho do rei Salomão, quando o reino de Israel é dividido: “Se hoje fores um servo deste povo e servires a ele, dando‑lhe uma resposta favorável, eles serão teus servos para sempre” (1 Rs 12.7). Nos relatos de criação em Gênesis 1 e 2, é possível perceber que relações de cooperação e mutualidade sempre foram o propósito estabelecido por Deus para suas criaturas. Um rei deveria existir para benefício de seu povo, e não o contrário. Da mesma maneira, o homem existe para o benefício da criação. As ações de um rei-pastor deveriam se pautar pelo serviço, cuidado e responsabilidade, não pela imposição de poder e a exigência de direitos. Nesse contexto é que podemos entender a palavra profética de Ezequiel contra os pastores de Israel que não cuidaram do rebanho, bem como a promessa do Senhor: “Eu mesmo buscarei as minhas ovelhas e delas cuidarei” (Ez 34.11).

Em O retorno do rei, J.R.R. Tolkien demonstra ter entendido esse conceito muito bem quando descreve que “as mãos do rei são as mãos de um curador, e assim o rei legítimo será conhecido”.¹² Mais do que uma mera mordomia que se encarrega da administração de recursos e nos coloca como alguém fora da criação, o domínio que Deus espera de nós se baseia no exercício de justiça e misericórdia, um governo que se estabelece a partir de relações de cuidado. No padrão bíblico, o rei é um servo, e se as escrituras são claras ao ensinar que a espécie humana é única, essa excepcionalidade também precisa ser entendida no sentido de que somos uma espécie que é serva. Isso nos coloca na mesma direção do senhorio de Cristo, que “esvaziou a si mesmo, assumindo a forma de servo” (Fp 2.7). Nesses termos, exercer o domínio pode até mesmo significar sofrer, se necessário, pelo bem do outro. Nas palavras de Jesus, “o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mt 20.25-28).

A figura do Sacerdote-Jardineiro

O relato complementar da criação que é apresentado em Gênesis 2 apresenta dois novos verbos que irão nos auxiliar no entendimento do propósito de Deus para nós diante da criação. A forma como a história é contada é belíssima e muito significativa. Não havia ainda nenhuma planta na terra, porque Deus não tinha feito chover, e também porque não havia ninguém para cultivar o solo (v. 5). Deus então planta um jardim no Éden (v. 8) e coloca o homem ali para cultivá-lo e guardá-lo (v. 15). O autor de Gênesis aqui parece ter o intuito de complementar e desenvolver melhor a ideia de domínio que o homem havia recebido anteriormente.

O primeiro verbo no hebraico é abad, que é traduzido muitas vezes como “cultivar”, mas também tem seu sentido relacionado à realização de trabalho ou algum tipo de serviço. No caso específico de Gn 2:15, o termo tem a ver com o trabalho agrícola, o cultivo da terra, e isso coloca em evidência a relação primordial do ser humano com o solo, de onde ele mesmo se origina (v. 7). O solo, aliás, é fundamental para a compreensão dessa narrativa no relato da criação. Como afirma o teólogo H. Paul Santmire, “a terra é um personagem por direito próprio neste drama teológico. A terra tem sua própria integridade, e, nesse sentido, seu próprio lugar, essencial no esquema maior das coisas. Não é apenas uma plataforma para apoiar a vida humana.”¹³ Para o ensaísta e autor consagrado Wendell Berry,

o solo é o grande conector de vidas, fonte e destino de todas. É o curador, restaurador e ressuscitador, pelo qual a doença passa para a saúde, a velhice para a juventude e a morte para a vida. Sem o devido cuidado por ele não podemos ter comunidade, porque sem o devido cuidado por ele não podemos ter vida.¹⁴

Enquanto o primeiro relato da criação apresenta um papel distinto e único para o ser humano diante das demais criaturas, o segundo relato parece ter o intuito de mostrar as semelhanças do homem dentro da criação. O texto é enfático em mostrar que não apenas o homem se origina do solo, mas também todas as plantas (v. 9) e todos os animais (v. 19). É interessante notar, inclusive, que o fôlego de vida que o homem recebe e o torna um ser vivente (v. 7) não é exclusividade sua, mas algo comum a todos os seres vivos.¹⁵ Os textos de Gênesis 1 e 2, dessa forma, se complementam ao construir no imaginário hebreu tanto a posição quanto a função do homem diante da criação.

Na conjunção das duas narrativas, a excepcionalidade humana é afirmada tanto quanto sua criaturidade, demonstrando uma visão que não é antropocêntrica nem biocêntrica, mas profundamente teocêntrica, ao apontar para Deus como o criador que é digno de toda glória. Com esse entendimento, o papel de domínio humano deve ser compreendido não fora, mas dentro da criação, onde se constroem as relações de interdependência e cooperação entre todos os seres criados e também deles com o solo. O teólogo Richard Bauckham insiste que

o domínio humano de Gênesis 1 precisa ser trazido para a terra, onde pertence – dentro da comunidade da criação. É um papel de colaboração com Deus, não de tomar o seu lugar, e é um papel de colaboração também com as outras criaturas, que têm relações próprias com o seu Criador, diferentes das nossas, mas adequadas a elas em cada caso.¹⁶

A relação do homem com o solo também é fundamental para compreender o papel do cultivo como uma forma de serviço que precisa ser sensível às necessidades alheias. E mais uma vez a imagem de Deus precisa ser resgatada para que se entenda o que está sendo apresentado. Antes de Deus criar o homem como um jardineiro, o próprio Deus plantou um jardim (Gn 2.8), e vemos a relação do próprio Criador com o solo ao soprar o fôlego de vida sobre ele, um indicativo de uma relação de movimento e proximidade. É Deus, o jardineiro, que desce ao solo para cultivá-lo. Em um famoso poema de 1911 intitulado A glória do jardim, Rudyard Kipling expõe sua percepção desse tema com grande sensibilidade: “Oh, Adão era jardineiro, e o Deus que o fez vê que metade do trabalho adequado de um jardineiro é feito de joelhos”.¹⁷ Se devemos ser jardineiros, essa função só será exercida adequadamente ao olharmos para o exemplo do Criador e nos reconhecermos como imagens dele na terra.

Se devemos ser jardineiros, essa função só será exercida adequadamente ao olharmos para o exemplo do Criador e nos reconhecermos como imagens dele na terra

Ao olhar para o contexto mais amplo, podemos ver nos relatos da criação que o estabelecimento do jardim é o ponto culminante do que muitos teólogos têm entendido e descrito como o processo de organização de um templo; o lugar da habitação de Deus.¹⁸ Nesse sentido, o trabalho de Adão como um jardineiro precisa ser complementado com uma outra imagem, que é claramente introduzida pelo segundo verbo presente em Gênesis 2.15. No hebraico original, o verbo é shamar, traduzido geralmente como “guardar”, com o sentido de proteger, cuidar e manter (sejam pessoas, animais ou lugares). Também é o termo usado para se referir a “guardar” os mandamentos divinos, e aqui já vemos sua ligação com a Torá e com o ambiente cultural em que Deus estabelece sua aliança com o povo de Israel por meio de Moisés.

É muito interessante perceber que estes dois verbos, abad e shamar, com o sentido de serviço e cuidado, respectivamente, são os mesmos presentes no livro de Números na instrução sobre a função sacerdotal: “Eles cuidarão das obrigações próprias da Tenda do Encontro, fazendo o serviço do tabernáculo para Arão e para toda a comunidade” (Nm 3.7). O verbo shamar também é o que aparece na bênção sacerdotal: “O Senhor te abençoe e te guarde; o Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te conceda graça; o Senhor volte para ti o seu rosto e te dê paz” (Nm 6.24).

Na visão do jardim como o templo de Deus, Adão e Eva deveriam ser representantes sacerdotais de Deus, responsáveis por cuidar daquele espaço sagrado e servirem como mediadores entre o Criador e as demais criaturas, relacionando-se com ele em nome delas e refletindo o caráter divino através do amor, da justiça, da generosidade e do serviço. Nesse ponto, fica claro que a figura da realeza se funde com a representação sacerdotal, e é isso que o apóstolo Pedro enfatiza em sua carta quando afirma que o povo de Deus constitui um “reino de sacerdotes” ou um “sacerdócio real” (1Pe 2.9). A humanidade, no plano da criação, é encarregada de dominar por intermédio do serviço e, com seu próprio poder criativo, espalhar a ordem e a beleza do jardim para o resto da criação.

A humanidade, no plano da criação, é encarregada de dominar por intermédio do serviço e, com seu próprio poder criativo, espalhar a ordem e a beleza do jardim para o resto da criação.

Douglas e Jonathan Moo, em seu excelente trabalho de teologia bíblica sobre o cuidado com a criação, concluem que:

Nossa vocação humana é trabalhar e cuidar do lugar onde Deus nos plantou, servi-lo ao governar a criação como sacerdotes em seu templo. Cuidar da terra não é, dessa maneira, um tema bíblico periférico; é central para nossa identidade como portadores da imagem de Deus. O propósito do domínio que nos é dado sobre outras criaturas é a paz e a bênção que Deus pretende para nós e toda a sua criação.¹⁹

Toda a criação tem como propósito último a glória de Deus, e se o ser humano é criado para dominar sobre a criação, ele glorificará a Deus exercendo esse domínio de forma adequada. Para isso, ele precisará se apresentar como um verdadeiro sacerdote e um verdadeiro rei diante da criação. Na nova criação, a nova humanidade revelada em Jesus governará e servirá definitivamente como portadores da imagem e sacerdotes de Deus no seu templo-jardim. Esse domínio eterno, em parceria com o Criador, será a marca definitiva da shalom, o florescimento glorioso de toda a criação.

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Richard Bauckham, “Being Human in the Community of Creation: A Biblical Perspective”, in: Ecotheology: A Christian Conversation, 2020 (Edição do Kindle sem paginação).

2. Richard Bauckham, Living with Other Creatures: Green Exegesis and Theology, 2011, p. 47-55.

3. Francis Bacon, Novum Organum ou Verdadeiras interpretações acerca da natureza, 1999.

4. Ibidem.     

5. Francis Schaeffer, Poluição e a morte do homem, 2003.

6. Sallie McFague, Cities, Climate Change, and Christianity, 2010. Clique aqui para acessar.

7. Lynn White Jr., “The Historical Roots of Our Ecologic Crisis”, Science v. 155, n. 3767, 1967, pp. 1203-1207.

8. Christopher J.H. Wright, Old Testament Ethics for the People of God, 2004 (Edição Kindle sem paginação).

9. Ibidem.           

10. Para uma análise sobre esse texto, ver: Blessing Boloje, “Micah’s shepherd-king (Mi 2:12–13): An ethical model for reversing oppression in leadership praxis”, Verbum et Ecclesia, v. 41, n. 1, 2020

11. Wright, 2004.    

12. J.R.R. Tolkien, O Senhor dos anéis, terceira parte: O retorno do rei, 2000, p. 130.

13. H. Paul Santmire, Celebrating Nature by Faith: Studies in Reformation Theology in an Era of Global Emergency, 2020, p. 31.

14. Wendell Berry, The Unsettling of America: Culture & Agriculture, 1977.  

15. O termo usado em hebraico para “ser vivente” ou “ser vivo” é nephesh hayyah, que também está presente em vários outros textos, referindo-se não só aos homens, mas a todos os animais como Gn 1.20, 24, 30.9:15, entre outros.

16. Bauckham, 2020.

17. Rudyard Kipling, A glória do jardim, 1911.

18. A narrativa da criação em Gênesis tem sido entendida por diversos teólogos como a descrição de Deus estruturando seu templo, tanto em nível cósmico (Gn 1) quanto como um jardim (Gn 2). No sétimo dia, a presença de Deus preenche a criação enquanto ele descansa e governa em seu templo. Essa estrutura funcional da criação pode ser conferida, por exemplo, nas obras de John Walton (O Mundo perdido de Adão e Eva) e Greg Beale (O Templo e a missão da Igreja).

19. Douglas Moo e Jonathan Moo, Creation Care: A Biblical Theology of the Natural World, 2018, p. 78.

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