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ARTIGO

A conversa mais antiga do mundo

A Bíblia e a intertextualidade

Viktorya Zalewski Baracy|

08/03/2024

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Viktorya Zalewski Baracy

É licenciada em Letras – Português e Alemão pela UFRGS, mestre em Letras (Alemão como língua estrangeira) pela UFPR e graduanda em Teologia na Faculdade Luterana de Teologia.

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Como citar

Baracy, Viktorya Zalewski. A conversa mais antiga do mundo: a Bíblia e a intertextualidade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Há alguns anos, um gráfico repleto de cores que formava diversos arcos tornou-se popular na internet. Ele foi criado por Chris Harrison (na época, estudante de doutorado na Escola de Ciência da Computação da Carnegie Mellon University) e pelo pastor Christoph Römhild. O objetivo da dupla era renderizar 63.779 referências cruzadas bíblicas e apresentá-las em um gráfico. Seu resultado foi a seguinte imagem:

Créditos: Chris Harrison “Bible Cross-References”. Clique aqui para acessar a imagem original.

No gráfico, cada arco representa uma referência cruzada,¹ e a cor utilizada em cada arco indica a distância entre os dois capítulos nos quais se encontram os textos que estão em relação. A imagem nos apresenta a complexa rede de relações entre os textos bíblicos de forma fascinante, ilustrando um importante fato: os livros da Bíblia estão todos em um permanente diálogo.

De fato, a Bíblia é uma obra cujos textos podem ser exemplares para apresentar o conceito de intertextualidade; um tema importante das abordagens teóricas que trabalham com a linguagem.

A imagem nos apresenta a complexa rede de relações entre os textos bíblicos de forma fascinante, ilustrando um importante fato: os livros da Bíblia estão todos em um permanente diálogo.

Intertextualidade

De forma introdutória, podemos definir intertextualidade como o “diálogo” entre dois ou mais textos. Termo surgido nos anos 60 na área de Teoria Literária, intertextualidade foi fundamentado na noção de dialogismo de Mikhail Bakhtin. Ingedore Villaça Koch, Anna Bentes e Mônica Cavalcante explicam essa noção da seguinte maneira:

um texto (enunciado) não existe nem pode ser avaliado e/ou compreendido isoladamente: ele está sempre em diálogo com outros textos. Assim, todo texto revela uma relação radical de seu interior com o exterior. Dele fazem parte outros textos que lhe dão origem, que o predeterminam, com os quais dialoga, que ele retoma, a que alude ou aos quais se opõe.²

A ideia de que um texto está sempre em diálogo com outros textos é chamada por Koch, Bentes e Cavalcante de intertextualidade em sentido amplo:³ todo o texto é um intertexto; é uma “comunhão de discursos, e não como algo isolado”.⁴

Uso na Teologia

Intertextualidade tornou-se um termo tão amplo que, para além da Teoria Literária, passou a despertar discussões nas análises do discurso e na linguística do texto. Em sua tese, Kennedy Cabral Nobre questiona se tal multiplicidade se refere ao mesmo fenômeno sob diferentes abordagens ou se, na verdade, elas compreendem fenômenos distintos.⁵

A Teologia se depara com o mesmo dilema. No mundo acadêmico-teológico, intertextualidade se refere a uma variedade de abordagens, talvez funcionando como um termo guarda-chuva,⁶ de forma que um estudo intertextual deve, obrigatoriamente, esclarecer qual linha teórica se está adotando.⁷ A amplitude do termo fez Stanley Porter indagar se seu uso seria adequado, uma vez que teólogos que o utilizam geralmente não desejam se referir às noções pós-estruturalistas que o termo pode significar. Nos estudos paulinos, intertextualidade acabou por substituir o que antes era chamado simplesmente de “uso do Antigo Testamento no Novo Testamento”,⁸ área no qual acadêmicos verificam como Paulo fez uso de trechos veterotestamentários em seus escritos. A conhecida asserção de Paulo, “o justo viverá pela fé” (Rm 1:17; Gl 3:11), por exemplo, provém de Habacuque 2:4, trecho do AT que também é utilizado pelo autor de Hebreus em 3:8. 

De qualquer forma, acredito que o termo não deva ser abandonado. Linguistas brasileiros estão cientes da multiplicidade do termo, de forma que também recorrem a subcategorizações. Talvez interesse a teólogos aquilo que que as linguistas Koch, Bentes e Cavalcante chamam de intertextualidade em sentido estrito, ou intertextualidade stricto sensu, que “ocorre quando, em um texto, está inserido outro texto […] anteriormente produzido, que faz parte da memória social de uma coletividade ou da memória discursiva”.⁹ No estudo do uso do Antigo Testamento do Novo, nomenclaturas como citação, paráfrase, alusão e eco¹⁰ estão relacionados a essa ideia de intertextualidade estrita.

A citação é bem conhecida. Para Gregory K. Beale (et al.), uma citação ocorre quando o autor “escolhe uma seleção de texto de um autor anterior e a incorpora ao seu próprio texto em uma tentativa explícita e direta de fazer com que o leitor reconheça o material incorporado […]”.¹¹ De acordo com a edição 28 da obra Nestle-Aland Greek New Testament (NA28), o Novo Testamento possui 355 citações, que podem conter – ou não – uma fórmula de citação. Em João 1:23, lemos: “Eu sou ‘a voz que clama no deserto: Endireitem o caminho do Senhor’, como disse o profeta Isaías” (NVI). A frase “como disse o profeta Isaías” é uma fórmula de citação – que, no caso, refere-se a Isaías 40:3. As aspas inseridas por nossa tradução em português do Brasil reforçam a ideia de citação.

Quanto a citações sem fórmula, discute-se se elas seriam, de fato, citações, ou se não seria mais adequado classificá-las como alusões ou ecos. Aqui entramos no que Koch, Bentes e Cavalcante chamam de intertextualidade implícita, na qual não há menção explícita da fonte, mas que se espera que o interlocutor reconheça a presença de intertexto, senão a compreensão será prejudicada ou empobrecida. Jesus, em Mateus 12:7 – e depois o próprio evangelista Mateus, ao escrever o evangelho – certamente sabia que seus interlocutores se lembrariam do texto Oseias:

Mateus 12:7: “Mas, se vocês soubessem o que significa: ‘Quero misericórdia, e não sacrifício’, não teriam condenado inocentes”.

Oseias 6:6: Pois quero misericórdia, e não sacrifícios; conhecimento de Deus, mais do que holocaustos. [...]

Para além do uso do Antigo no Novo Testamento, a ideia de intertextualidade em sentido estrito também trabalha com a relação de textos canônicos com textos aos quais não temos acesso – por exemplo, textos litúrgicos citados nas cartas paulinas – ou com textos extrabíblicos –sabemos que Tito 1:12 faz referência a Epimênides, um poeta.

Diálogo no Cânon

Em adição às ideias esboçadas acima, acredito que o próprio cânon – as Escrituras Sagradas – mantém seus livros e textos em um constante diálogo. É fascinante a ideia de que temos livros que, lado a lado, compõem uma grande narrativa. Isso acontece porque esses textos foram inspirados pelo mesmo Espírito (2 Tm 3:16). O Espírito e as Escrituras testemunham a respeito de Cristo (Jo 5:39; 15:26).

Como intérpretes da Bíblia, é importante que tenhamos sempre em mente tanto o significado de cada texto bíblico em seu propósito particular quanto seu lugar e diálogo no cânon. O evangelho segundo Lucas, por exemplo, embora faça parte de um trabalho em dois volumes (Lucas-Atos), é colocado em nosso cânon de tal forma que ele entre em diálogo direto com os outros evangelhos, como nos sugerem as abundantes referências cruzadas em nossas bíblias nessa parte do Novo Testamento. A tentativa de combinação e harmonização dos quatro evangelhos em um só texto – uma tentativa de Taciano, no séc. 2 – foi rejeitada. Os quatro evangelhos são canônicos.

Ler textos neotestamentários também é saber que seus autores eram leitores da Septuaginta, e que, para além de citações e alusões, suas mentes estavam embebidas pelo Antigo Testamento, com suas histórias, metáforas e símbolos. Nesse caminho, a relação entre textos pode percorrer os dois sentidos. Em um estudo sobre um texto de Paulo, por exemplo, a teóloga Cynthia Westfall explica que Paulo interpreta Gênesis, mas Gênesis também interpreta Paulo.

A Bíblia é dialógica.¹² Ela não tem dificuldade com diferentes vozes e autores que dialogam entre si, pois por trás dessas vozes ressoa a voz do Autor divino.

A Bíblia é dialógica. Ela não tem dificuldade com diferentes vozes e autores que dialogam entre si, pois por trás dessas vozes ressoa a voz do Autor divino.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Em nossas bíblias, as referências cruzadas estão geralmente nas laterais das páginas ou em notas de rodapé.

2. Ingedore Villaça Koch, Anna Bentes e Mônica Cavalcante, Intertextualidade: diálogos possíveis, 2008, p. 9.

3. Ibidem, p. 10.

4. Marchuschi, p. 132.

5. Kennedy Cabral Nobre, Critérios classificatórios para processos intertextuais (Tese de Doutorado – UFC), Fortaleza, 2014, p. 8.

6. Steve Moyise (ed.), The Old Testament in the New Testamentessays in honour of J. L. North, 2000, p. 17.

7. G. K Beale, D. A. Carson, Benjamin L. Gladd e Andrew Naselli, Dictionary of the News Testament Use of the Old Testament, 2023, sem paginação (conteúdo digital). Tradução livre.

8. Stanley Porter, “Pauline Techniques of Interweaving Scripture into His Letters”, in Paulinische Schriftrezeption, 2017, p. 28.

9. Koch, Bentes e Cavalcante, 2008, p. 17.

10. Porter, 2017, p. 29.

11. Beale,Carson, Gladd e Naselli, 2023.

12. Discussão levantada em: Stefen Alkier, “Positionierung – Transpositionierung – Dialogizität”,  in Paulinische Schriftrezeption,  2017, p. 28, 293.

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