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ARTIGO

Das pedras para as telas

Os dez mandamentos e a nossa era hiperconectada

Luiz Adriano Borges|

23/02/2024

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Luiz Adriano Borges

Professor de história na UTFPR-Toledo, lecionando sobre história da técnica, tecnologia e sociedade, filosofia, sociedade e política. Sua área de pesquisa centra-se na História e Filosofia da Tecnologia e da Ciência.

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Como citar

Borges, Luiz Adriano. Das pedras para as telas. Os dez mandamentos e a nossa era hiperconectada. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 3, jan-jun, 2024.

Vivemos uma era extremamente conectada. A onipresença das novas tecnologias, especialmente dos celulares, aparentemente trouxe novos dilemas éticos. Pelo menos é o que o senso comum aponta. Mas será que a natureza humana mudou tanto ao longo desses milênios desde que Moisés recebeu de Deus os mandamentos gravados em pedra?¹ Façamos um exame para refletir se nossos dilemas humanos permanecem parecidos ao longo da história.

Se as novas tecnologias trouxeram novos impasses éticos, não encontraríamos esses mesmos dilemas já postos em outras épocas. Talvez, o que se verifica é que, em vez de elementos essencialmente novos, os novos aparelhos trouxeram estímulos de algumas tendências já antigas. Não é porque vivemos em uma sociedade secular que esta época não seja profundamente idólatra; não é porque pregamos o liberalismo sexual que isso não imponha profunda carga emocional nas pessoas; a sociedade sobrecarregada de hoje nos faz ansiar pelo sabbath, por uma “vita contemplativa”; mentir e roubar continuam sendo proibições que transcendem espaço e tempo. O que as novas tecnologias trazem são novas maneiras de fazer emergir ainda mais as falhas presentes na natureza humana caída. Por causa do pecado, nossa vontade é cativa de falsos deuses, que edificamos como elementos centrais em nossa vida, como dinheiro, sexo ou poder.² Portanto, os Dez Mandamentos se erigem como uma rocha sólida na vida cristã atual e continuam a servir de guia para a nossa era hiperconectada. Em cada mandamento podemos refletir: como nossas tecnologias atuais nos ajudam ou nos atrapalham nisso?

Este artigo tratará, na medida em que a brevidade nos permite, dos Dez Mandamentos de maneira teológica, filosófica e prática. Esboçaremos cada mandamento procurando relacioná-lo com questões tecnológicas atuais, detidamente os celulares e a internet, construindo pontes com as percepções da filosofia, para finalmente traçarmos aplicações práticas.

1 – Não terás outros deuses

Os mandamentos começam com uma introdução que normalmente é deixada de lado: “Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão.” (Êxodo 20:2).³ Primeiramente, Deus se coloca como um ser pessoal, indicado no pronome “teu”; Ele não é uma figura impessoal e distante. Logo na sequência, rememora-se um fato que deveria ser sempre trazido à mente do povo israelita: Deus os libertou. Como diz Kevin DeYoung, “os dez mandamentos não são instruções de como sair do Egito. Eles são regras para pessoas livres permanecerem livres”.⁴ O que isso significa? Dada a tendência humana de procurar respostas fáceis para seus problemas, o Senhor sabia que os humanos recairiam com frequência na idolatria e que esses falsos deuses os tornariam escravos. O primeiro mandamento, “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20:3), declara que há somente um ser supremo no universo, e Ele exige adoração exclusiva.⁵ Mas o perigo da adoração de outros deuses permanece na atualidade.

Em nossa sociedade hiperconectada e individualizada, muitas pessoas elevam a si mesmas como deuses. Os ideiais de liberdade e de autonomia de escolha individual são os motes da sociedade liberal, e o smartphone se torna um instrumento dessa idolatria. Quem hoje conseguiria viver sem um smartphone? O escritor Neil Gaiman foi genial ao traduzir em ficção os novos “Deuses americanos”: “deuses da internet e do telefone”⁶ corporificados em novas entidades. Philip Ryken nos desafia a fazer testes para identificação de idolatria: O que amamos? O que desejamos? Quando a mente está livre para vagar, sobre o que pensamos? Como gastamos dinheiro? Com o que ficamos animados?”⁷

Os celulares roubam nossa atenção,⁸ nos tornando solitários⁹ e extremamente viciados¹⁰ e tudo isso arquitetado de maneira intencional por parte das grandes corporações.¹¹ As consequências são problemas mentais¹² e sociais¹³. Somos escravos voluntários do capitalismo de vigilância, fornecendo nossos dados em troca de minutos de diversão.¹⁴ Os celulares reeducaram a maneira como conversamos, estudamos e temos comunhão.¹⁵ James K. A. Smith fala da “iPhonização” da vida, em que nossa interação com os aparelhos constituem uma pedagogia sutil, um microtreinamento, com o objetivo de passarmos mais tempo nas telas.¹⁶ Grande é o poder de tais ídolos. E a pergunta que não quer calar é: essa tecnologia tem nos ajudado ou atrapalhado a adorar o único Deus? Como essa idolatria tem nos feito reféns de uma lógica que nos escraviza e nos desumaniza?

A tecnologia do homem hipermoderno tem a pretensão de lhe salvar, de lhe dar autonomia, de lhe dar poder, exemplificado pela história de Babel (Gênesis 11); mas este é um projeto falho.¹⁷ As falsas promessas dos ídolos tecnológicos de hoje são as mesmas da serpente em Gênesis 3: “é certo que não morrereis” e “sereis como Deus”. Talvez de maneira não intencional, o livro de um grande otimista tecnológico se chama “Homo deus”, indicando que os seres humanos serão capazes de, através da ciência e da tecnologia, transcenderem suas limitações e tornarem-se imortais.¹⁸ David Noble, em A religião da tecnologia, demonstra que o encantamento do homem moderno pela tecnologia foi inspirado e fundamentado nas expectativas religiosas e na busca pela transcendência e pela salvação. É uma substituição.¹⁹ Depositamos fé demais em nossas ferramentas, e isso tem nos escravizado, causando a abolição de tudo o que é sagrado para a vida humana.²⁰

Depositamos fé demais em nossas ferramentas, e isso tem nos escravizado, causando a abolição de tudo o que é sagrado para a vida humana.

2 – Não farás imagens

Em Êxodo 20:4, temos o mandamento “Não farás para ti imagem de escultura”. Esse mandamento não pretende banir a arte, a pintura e a estética. O Tabernáculo tinha representações artísticas. O que se proíbe é atribuir a qualquer objeto eficácia espiritual, como se os artefatos feitos por homens pudessem nos aproximar de Deus, representá-lo ou estabelecer comunhão com ele. O segundo mandamento nos proíbe de adorar o verdadeiro Deus de maneira falsa.

Fazemos imagens de falsos deuses hoje? Se olharmos para o peso colocado no poder do homem em seus artefatos, vemos claramente a construção de imagens que substituem o verdadeiro Deus. A busca por autenticidade,²¹ por uma hiperexposição, é a marca de uma geração que é conhecida como “Geração Selfie”: sem demonstração pública de quem eu sou – uma imagem construída com auxílio de filtros –, não sou ninguém. Pervertendo a frase de Descartes, podemos dizer: “tiro selfie, logo existo”. A imagem se tornou um verdadeiro ídolo hipermoderno, e isso afeta tanto o objeto de nossa adoração como a forma de adorar.

Quando Paulo se dirige ao atenienses em Atos 17 para lhes falar sobre idolatria, ele também se dirigia a alguns grupos específicos, e um deles, os epicureus, tem conexão direta com o que tratamos aqui. Para estes, o objetivo da humanidade era alcançar a alegria e o prazer como se nada mais importasse. A centralização da imagem na cultura atual tem a propriedade de escravizar o olhar em aplicativos que nos trazem prazer. O poder dos filtros das redes sociais são tão intensos que impactam a vida real, assim como a percepção corporal e os relacionamentos. Há diversas cirurgias plásticas sendo realizadas para melhorar a aparência das pessoas em fotos e vídeos, influenciadas por filtros das redes sociais.²² Até algumas igrejas já sucumbiram à adoração da autoimagem, incentivando selfies durante o culto.²³ O narciso, interessado apenas em satisfazer seu prazer e adorar sua própria imagem, torna-se ídolo de si mesmo, e as redes sociais exploram essa nossa necessidade de admiração.²⁴ O indivíduo hipermoderno, ao postar algo, não quer somente a curtida, mas também a adoração.

3 – Não tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão

Nas redes sociais, facilmente alguém pode se tornar moralista e usar a religião para excluir quem pensa diferente em termos políticos, culturais e sociais. Algumas vezes, a expressão “essa é a vontade de Deus” expulsa o pensamento crítico e até uma melhor análise bíblica. Para a nossa vergonha, a história cristã não é livre de diversos erros justificados pela afirmação de ser a vontade de Deus. Escravidão, racismo e segregação foram defendidos teologicamente em dado momento; todavia, mais tarde, também foram refutados com base teológica mais alicerçada. Portanto, devemos estar atentos ao Espírito para discernirmos o tempo e a verdadeira vontade de Deus.

Atente-se ao fato de que isso não significa não falar o nome de Deus, mas sim usá-lo em vão, que no original quer dizer “com falsidade, vazio, trivial, sem sentido”.²⁵ Se usamos o nome de Deus levianamente para propagar falsas notícias ou para vencer uma argumentação, estamos incutindo erro. Quando nos posicionamos como baluartes da moral (não o somos, porque somos pecadores e carecemos da glória de Deus, como consta em Romanos 3:23-24), cometemos um estreitamento do discurso moral público, fechando as portas ao debate.²⁶ Em vez de excluir o outro com argumentos ferozes, devemos acolher, pois, se somos discípulos de Cristo, devemos aplicar seus ensinamentos também para a maneira como nos comunicamos, seja pessoalmente, seja nas redes sociais. Jesus era alguém que cativava com sua gentileza,²⁷ e isso é um cuidado que devemos ter até mesmo com nossa apologética atual, que algumas vezes tem uma ênfase na metáfora de guerra.

4 – O sabbath

É hora de fazer uma pausa. Deus diz, no quarto mandamento: “Lembra-te do dia de sábado, para o santificar” (Êxodo 20:8). Segundo nos conta DeYoung, “sabbath é a palavra hebraica para ‘cessar’. É o dia de cessação, o dia da parada”.²⁸ O mandamento nos comanda a lembrar, descansar e adorar, tornar um dia da semana em um momento especial de pensar na bondade da graça de Deus.²⁹

A lógica da aceleração é o que governa nossa época, e isso tem ameaçado a busca por uma vida boa.³⁰ Esperávamos que, com a tecnologia e maior automatização, ganharíamos mais tempo livre, mas isso não tem se revelado verdade. Já em 1958, Hannah Arendt percebia que “o ritmo das máquinas aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida”.³¹ Como a autora nota, trabalhamos mais que um camponês medieval. Somos uma sociedade cansada, como bem tem articulado Byung-Chul Han em diversas obras.³² Para ele, a atual sociedade causa doenças neuronais como a depressão, o transtorno de déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDAH), o transtorno de personalidade limítrofe e a síndrome de burnout. Nesse contexto, para esse autor, “o descanso contemplativo é recuperação”.³³ De fato, para Han até mesmo a atual crise religiosa é uma crise de falta de contemplação³⁴ que acabou por assumir a natureza mundana.

Assim, a ideia de desaceleração é profundamente bíblica, desde o “sábado” até o “entra no teu quarto” (Mateus 6.6). Quanto mais acelerada a sociedade, mais dificuldades temos de contemplar o belo, sintonizar com a criação, meditar nas Escrituras. Gera desengajamento com a realidade criada e com o criador. O sabbath nos reconecta com a realidade. Não é necessariamente não fazer nada, mas fazer atividades que “podem ser vistas como restauradoras de uma profundidade e integridade de nossas vidas que são, em princípio, excluídas dentro do paradigma da tecnologia”, como diz Albert Borgmann.³⁵ E essa reconexão sabática nos inspira e nos reorienta para que o nosso trabalho honre a bondade das coisas e de Deus.³⁶

Quanto mais acelerada a sociedade, mais dificuldades temos de contemplar o belo, sintonizar com a criação, meditar nas Escrituras. Gera desengajamento com a realidade criada e com o criador. O sabbath nos reconecta com a realidade.

5 – Honrarás pai e mãe

No hebraico, a palavra honra é kabod, que também significa “glória” ou “peso”. Honrar aos pais traz “a ideia de que o filho aceitará de coração as instruções dadas pelos pais”.³⁷ Percebemos como ainda há implicação desse mandamento para os dias atuais: a família é a esfera fundamental da qual todas as demais esferas são derivadas. Desequilibra-se a família e toda a sociedade está em risco. Analisar a história da família ao longo dos séculos é pertinente para compreender as doenças sociais e amparos de cada tempo.³⁸ Além disso, esse mandamento também possui uma promessa de prosperidade. Prolongar os dias na terra não significa somente quantidade de dias, mas também de qualidade. Vida longa e próspera é isso, uma vida em completude, em paz. Também é preciso pensar na honra entre gerações, buscando um caminho de harmonia, mesmo nas diferenças. Os filhos devem respeitar os pais ainda que não compreendam muito bem a forma de viver deles; na maioria das vezes, mais tarde se percebe a sabedoria e esforço parental na criação dos filhos.

Mas os pais também têm uma responsabilidade de criar um ambiente que facilite o convívio e a honra, e podem ajudar a cultivar os bons hábitos, um lugar onde flua o amor, compreensão, diálogo e respeito mútuo. E tudo isso deve ser levado em consideração com relação a tecnologia atual, porque ela envolve toda a nossa vida. O economista Jeremy Greenwood analisa, numa perspectiva macroeconômica, como a tecnologia impactou o lar, moldando e transformando o convívio familiar, inclusive no sentido de desestruturá-lo.³⁹ Sabemos como a introdução de qualquer tecnologia modifica toda a dinâmica de uma casa, e os celulares são talvez os que trazem o maior impacto negativo hoje nos relacionamentos familiares. Não excluímos outros elementos e nem queremos afirmar que se trata de uma causa única, mas a característica desses aparelhos é algo sem igual na história: facilidade de acesso à internet, de rapidez, de transporte e inúmeras possibilidades de aplicativos etc. Esses são elementos que afetam profundamente o convívio social e familiar, pois o celular causa disrupção nos relacionamento ao enfatizar a tela, o individual, em vez do convívio face a face. Facilmente relações reais são substituídas por relações virtuais, e até mesmo a autoridade dos pais fica erodida pelos youtubers e tiktokers.            

Parece ser quase unânime que a tecnologia atual tem tornado a tarefa de criar filhos mais complicada. Segundo pesquisas para o contexto estadunidense (mas por aqui deve ser semelhante), 65% dos pais colocaram as tecnologias como principal problema na criação de filhos, na frente de “o mundo está mais perigoso, questões financeiras, bullying nas escolas” etc.⁴⁰ Os pais têm um grande desafio de instruir seus filhos, criando um ambiente favorável ao amor e à honra. Assim, é importante ponderar no relacionamento com os pais mais velhos: como utilizar as tecnologias para honrar os pais? Se a sociedade hipermoderna trouxe muitas facilidades, também é verdade que impôs muitas dificuldades nesse sentido: o ritmo acelerado parece um empecilho entre gerações, que possuem ritmos próprios; nesse sentido, respeitar esses ritmos acaba sendo um exercício de paciência e uma lição para se criar um ambiente de paz e prosperidade.

6 – Não matarás

Esse é um mandamento aparentemente simples de se entender. Segundo John M. Frame “o contexto teológico […] é que Deus é o Senhor da vida” […], e “a palavra que resume de modo mais completo o resultado da queda de Adão é morte”.⁴¹ O termo algumas vezes é traduzido por “assassinar”, mas se aplica tanto ao homicídio culposo quanto ao negligente; assim, aqui também está implícito uma ética do cuidado.

Talvez o estudo mais completo no campo de ética acerca de matar seja o de Jeff McMahan, “The ethics of killing”, em que são tratadas diversas perspectivas sobre matar, aborto e eutanásia. Segundo ele, “não existe crença moral que seja mais universal, estável e inquestionável, tanto em todos os aspectos diferentes sociedades e ao longo da história, do que a crença de que matar pessoas é normalmente errado”.⁴²

Mas o cristão parece ter uma “dificuldade” extra em seguir essa ordenança, porque Jesus, ao ir no cerne do mandamento no Sermão da Montanha (Mateus 5: 21-26), ensina que se trata também de ira e de abuso verbal. E parece que as nossas tecnologias atuais facilitam cometer esses pecados.⁴³ As redes sociais muitas vezes se tornam antros de discurso de ódio, que, infelizmente, também são propagados por cristãos. Pessoas são canceladas e destruídas nesses ambientes, levando à depressão e até ao suicídio. O jornalista estadunidense Max Fisher reconstruiu de que maneira as redes se tornam amplificadoras de sentimentos negativos. Por meio dos algoritmos, as emoções são manipuladas e enfatizadas.⁴⁴ É muito fácil xingar alguém na internet por detrás de um véu de anonimato; sente-se que não se está falando com um outro ser humano, mas sim com um avatar. Assim, cabe repensar a maneira como temos utilizados nossos celulares: como ferramentas de destruição em massa ou como tecnologias propiciadoras de vida?

É muito fácil xingar alguém na internet por detrás de um véu de anonimato; sente-se que não se está falando com um outro ser humano, mas sim com um avatar. Assim, cabe repensar a maneira como temos utilizados nossos celulares: como ferramentas de destruição em massa ou como tecnologias propiciadoras de vida?

7 – Não adulterarás

Este também é outro mandamento que Jesus procurou realçar, não por ser um dos mais importantes, mas porque a natureza humana sempre procurou desculpas para contornar o seu pleno significado. Jesus diz: “Ouvistes que foi dito: Não adulterarás. Eu, porém, vos digo: qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, no coração, já adulterou com ela.” (Mateus 5.27-28).

A expressão “com intensão impura”, ou “intenção sensual” em algumas versões, refere-se à palavra grega epithumeo: desejar, cobiçar. Adultério é uma questão do coração. Então, “ainda que não cometamos o ato físico com nosso órgão sexual, mesmo assim podemos ser culpados de pecado sexual por causa dos nossos pensamentos, nossas fantasias, nossas leituras, nossos ‘cliques’ e nossas afeições”.⁴⁵

Nunca foi tão fácil ter acesso à imagens relacionadas à sexo. Temos aplicativos para arranjar parceiros, para postar fotos e dancinhas indecentes, além de facilidade de acesso à pornografia. As redes sociais vieram enfatizar uma tendência que já existia na natureza humana caída: procurar sexo fora do casamento. Isso é tão forte que alguns estudiosos chamam a nossa cultura de “pornificada”.⁴⁶

E isso tem consequências devastadoras no cérebro. A pornografia afeta profundamente a capacidade de se relacionar uns com os outros, além de viciar. Diversos estudos apontam que “a pornografia deixa os homens indiferentes tanto ao ultraje quando ao estímulo, levando ao embotamento das sensações e, por fim, à insatisfação com as instâncias emocionais da vida cotidiana.” […] “A pornografia tende a entorpecer a sensibilidade das pessoas com relação ao sexo”,⁴⁷ e isso tem impactos fortes na família, nos casamentos, na relação de uma visão saudável de sexo por parte das crianças e adolescentes.

A pornografia é destrutiva para as relações conjugais, humilhante para as mulheres (às vezes homens também), por transformá-las em meros objetos disponíveis, e também torna seu consumidor insensível, pervertendo a percepção (Romanos 1.22, 28). Com a facilidade trazida pelos smartphones e a internet nessa área, a atenção deve ser ainda maior no sentido de restringir a todos a exposição a tais imagens. A pornografia tem impactos sociais (além de espirituais) gravíssimos,⁴⁸ todavia, o sétimo mandamento, se seguido em seu pleno sentido, ajuda a abolir os impactos da desvirtuação do sexo.

8 – Não roubarás

Mesmo para aqueles que não seguem a Bíblia, o preceito deste mandamento é claro e considerado basilar para manter coesão social. Mas mesmo entre seguidores da tradição mosaica muitas vezes a interpretação fica por demais restrita. A palavra bíblica para “furtar”, ganaf, abrange todos os tipos de roubos: materiais e imateriais.⁴⁹ Quando alguém obtém algum benefício de forma ilícita, está roubando: corrupção, manipulação por meio de propagandas, plágios, falsificações, muitos “jeitinhos” e malandragens entram na definição. O Catecismo de Heidelberg diz o seguinte sobre o tema:

Deus não somente proíbe o furto (1) e o roubo (2) que as autoridades castigam, mas também classifica como roubo todos os maus propósitos e as práticas maliciosas, através dos quais tentamos nos apropriar dos bens do próximo.⁵⁰

Como sabemos, a era conectada não inventou o roubo, só facilitou em muitas áreas o seu ato. Um dos maiores problemas que enfrentamos a cada momento que ligamos nossos celulares são os roubos de nossos dados: com nosso aparente consentimento, fornecemos informações valiosíssimas. Mas o problema é que a maior parte das vezes não estamos totalmente cientes da implicação da cessão de nossos dados; e pior: eles são usados para modular nossas vontades.⁵¹ Assim, sem nos darmos conta, esse duplo roubo, de nossos dados e a manipulação subsequente, somos furtados de nossa liberdade, de nossa comunicação e até de nossos direitos de decisão políticos. Muitos estudiosos têm se preocupado com a crise gerada pela atuação das Big Techs nesse sentido, e muitos países têm erigido pilares jurídicos mais robustos contra o roubo e utilização de dados individuais.⁵² A privacidade tem se reconfigurado quando estamos em torno de tantos objetivos que captam nossa vida em forma de dados: perdemos nossa liberdade, nossas vontades são mudadas e a constituição de nossa personalidade é raspada.⁵³

Mas nós mesmos também podemos estar roubando quando fazemos uso de plágios, de falsificações, “gatos” e piratarias. Os celulares conectados facilitaram alguns “jeitinhos” que são, na verdade, ilegalidades. Por ser fácil baixar um conteúdo pirata, parece que não estamos causando danos a ninguém.⁵⁴ Por esse motivo, restabelecer um verdadeiro padrão ético bíblico seria revolucionário para a sociedade da era tecnológica e seria um grande passo para aquilo que a ética tem buscado desde tempos imemoriais: uma boa vida e cuidado com o outro.

9 – Não dirás falso testemunho contra o teu próximo

Este mandamento se relacionava primariamente a questões de justiça num tribunal, e devemos estar cientes de que, nos tempos bíblicos, não se dispunha de tanto aparato técnico e científico para se chegar à solução de crimes, sendo a testemunha, portanto, chave.⁵⁵ Assim, “o fenômeno da falsa testemunha coloca diante de nossos olhos todo o sistema judicial exigido para salvaguardar a honra humana, a vida, o casamento e a propriedade”.⁵⁶ Como DeYoung comenta, “o que percebemos nos Dez Mandamentos é que, em geral, cada um deles nos apresenta o exemplo extremo do pecado”.⁵⁷ Jesus aponta como esse mandamento é mais complexo e também mais cotidiano do que se imagina: também está ligado à mentira. O Catecismo de Heildeberg comentando esse mandamento (resposta 112) menciona “distorção de palavras, fofoca, calúnia”. A parte final do mandamento é fundamental: o “próximo”. Quem é o meu próximo? É só o irmão que vai na mesma igreja? Eu posso proferir mentiras sobre alguém que não é meu conhecido? Um não cristão, por exemplo? Jesus, contando a parábola do Bom samaritano (Lucas 10:25-37), já nos respondeu: com todo aquele que eu encontrar; até virtualmente.

A tecnologia atualmente tem facilitado enormemente a distribuição de falsos testemunhos contra as pessoas. Vivemos em épocas de fake news, de pós-verdade, em que a veracidade dos fatos parece não importar, tudo isso impulsionado pelas redes sociais. Max Fisher, entre outros, expôs os mecanismos de funcionamento dos sistemas algorítmicos que tornam as notícias falsas mais fáceis de viralizar.⁵⁸

Vivemos em épocas de fake news, de pós-verdade, em que a veracidade dos fatos parece não importar, tudo isso impulsionado pelas redes sociais. Max Fisher, entre outros, expôs os mecanismos de funcionamento dos sistemas algorítmicos que tornam as notícias falsas mais fáceis de viralizar.

Mas, por maior que seja a culpa das grandes corporações de tecnologia, elas não agem de maneira isolada: tendemos a buscar verdades que confirmam nossos vieses, nos fechamos em bolhas de informações em que só entram dados que concordem com nossa visão de mundo e achamos que não estamos lidando com pessoas na internet, mas sim com “entidades” desprovidas de humanidade. Portanto, podemos mentir, distorcer e caluniar o outro porque ele é somente um “algo” virtual.

Apesar de tudo isso, a tecnologia tem, sim, um papel muito forte em dilatar essas formas negativas. As redes sociais se tornaram verdadeiros tribunais onde pessoas são julgadas por meio de testemunhos deturpados. Estes locais virtuais dão vazão a sentimentos presentes no coração humano pela forma como são construídos, fazendo uso de elementos da psicologia, da neurologia e das ciências humanas em geral.⁵⁹ A mentira implica custos imensos, acaba escravizando as pessoas e culminando em crises sociais.⁶⁰ Há muitos problemas advindos da cyberbullyings e todo tipo de violência digital, tendo, em alguns casos, levado ao extremo do suicídio.⁶¹ Até governos têm corrido perigos em decorrência da distribuição de fake news, sendo regiões ameaçadas e causando rebuliços sociais.⁶²

Quando Jesus é confrontado com a mulher pega em adultério (João 8), ele começa falando para os que o interpelaram que “o diabo é o pai da mentira”, mas lhes diz que não cabem a eles julgarem; e mais tarde fala para seus discípulos: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8.32). Os mandamentos começam da mesma forma, nos lembrando de que a busca por seguir aqueles preceitos nos manteria livres (Êxodo 20:2).

10 – Não cobiçarás

Especificamente, este mandamento proíbe a cobiça de todos os bens do próximo. No Novo Testamento, cobiça é definida como o desejo incontrolável de possuir o mundo, poder, influência, bens materiais. Segundo Hans Ulrich Reifler, “o apóstolo Paulo segue a tradição de Jesus (Marcos 7.22) e encara a cobiça como um vício”.⁶³ Cobiçar está entre a disposição de planejar/premeditar, de modo que a ação vai além das obras consolidadas (como o não matar) e se concentra no coração desejoso. Por isso, é importante ficar atento nos planos que qualquer um de nós arquiteta em direção ao objeto de cobiça.⁶⁴

Veja-se por exemplo a progressão da concupiscência em Gênesis: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento, tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gênesis 3.6). Uma vez que a ideia do objeto desejado foi plantada na mente, um grande esforço é exigido para vencer a tentação. “A cobiça pode nos dominar de tal forma que, de fato, pode ser chamada de uma forma de idolatria” (conforme Colossenses 3.5).⁶⁵

As telas dos celulares muitas vezes são espelhos negros de nossas concupiscências: nossos feeds mostram o que de pior há em nossos corações. Com ajuda dos algoritmos, pululam imagens que atiçam nossos desejos. Na internet, qualquer um, com poucos cliques, tem acesso a inúmeros produtos, além de enxurradas de propagandas e diferentes estilos de vida. Nas redes sociais, as pessoas parecem ser mais felizes, viajam mais, possuem mais, enfim, “a timeline do vizinho é mais verde”, e desejamos ser iguais. Porém, a comparação nos deixa depressivos e tristes (até porque os feeds são construídos como uma manipulação da realidade, e não com a realidade em si). Há numerosos estudos que apontam que as redes sociais aceleram o sentimento de inveja.⁶⁶ Para o cristão, o ato de possuir bens não é condenável, mas o desejo cobiçoso de possuir sim.⁶⁷ A busca tem que ser por contentamento, por ser grato pelo que se tem. Em uma sociedade em que o desejo de ter mais tem conduzido a problemas como consumismo, questões ambientais e até aquecimento global, com certeza as redes sociais não estão aí para favorecer o sentimento de contentamento. Mas podemos utilizar essas ferramentas de uma forma boa, sabendo seus limites e tendo em mente que a cobiça nos prende, mas que o contentamento é libertador. 

Para o cristão, o ato de possuir bens não é condenável, mas o desejo cobiçoso de possuir sim.⁶⁷ A busca tem que ser por contentamento, por ser grato pelo que se tem.

Conclusões

Jesus resumiu todos os mandamentos em dois: “Amar a Deus em primeiro lugar e ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22: 37-39). Mas como as tecnologias que carregamos nos bolsos têm nos ajudado ou atrapalhado nisso? Olhando para cada um dos mandamentos, podemos refletir em que medida temos nos aproximado ou nos afastado de uma vida boa em nossa sociedade hiperconectada. O objetivo deste artigo foi refletir sobre como a ética dos dez mandamentos ainda permanece válida para os tempos atuais, repletos de novas tecnologias, e percebê-la como uma base firme para a coesão social. Para isso, devemos ter em mente que as nossas telas não tornaram obsoletas as regras escritas em pedras há tantos milênios.

 

Agradecimentos do autor:

Gostaria de agradecer ao pastor Leonardo Mani da Igreja Evangélica Livre pela sugestão de criarmos uma Escola Bíblica Dominical sobre esse tema; inclusive, o título foi ideia dele. Também agradeço às excelentes sugestões e revisão atenta de Mabel d’Haese Borges.

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Leslie Stevenson, David Haberman, Dez teorias da natureza humana, 2005.

2. Philip Ryken, Os dez mandamentos para os dias de hoje, 2018.  

3. Todas as citações bíblicas são da versão Almeida Revista e Atualizada, salvo indicação contrária.

4. Kevin Deyoung, Os dez mandamentos: Significado, importância e motivos para obedecer, 2020, p. 25.

5. Ibidem, p. 32.

6. Neil Gaiman, Deuses Americanos, 2016, p. 140.

7. Ryken, 2014, p. 56

8. Johan Hari, Foco roubado, 2023; Maryanne Wolf, O cérebro no mundo digital, 2019.

9. Noreena Hertz, O século da solidão, 2021.

10. Anna Lembke, Nação dopamina, 2022; Jaron Lanier, Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais, 2018.

11. Adam Alter, Irresistível¸2018.

12. Byung-Chul Han, Sociedade do cansaço, 2017b; Michel Desmurget, A fábrica de cretinos digitais, 2021; Rodolfo Capler, Geração selfie, 2021.

13. Byung-Chul Han, Sociedade da transparência, 2017a; Byung-Chul Han, Vita Contemplativa,2023; Sherry Turkle, Alone Together, 2011; Jean Twenge, Igen, 2020.

14. Shoshana Zuboff, A era do capitalism de vigilância, 2021.

15. Max Fisher, A máquina do caos, 2023; Byung-Chul Han, O desaparecimento dos rituais, 2021.

16. James K. A. Smith, Imaginando o reino, 2019, cap. 3.

17. Jacques Ellul, The meaning of the city, 2011. Egbert Schuurman, Fé, esperança e tecnologia, 2021.

18. Harari, 2016.

19. David F. Noble, The religion of technology, 2013.

20. C. S. Lewis, A abolição do homem, 2017; Norman Wirzba, Nossa vida sagrada, 2023.

21. Charles Taylor, A ética da autenticidade, 2011.

22. Robert Dorfman; Elbert Vaca; Eitezaz Mahmood; Neil Fine; Clark Schierle, “Plastic Surgery-Related Hashtag Utilization on Instagram: Implications for Education and Marketing”, Aesthetic Surgery Journal, Volume 38, Issue 3, 2018.

23. Juliana Borges e Manoela Albuquerque, “Igreja evangélica faz ‘culto da selfie’ em Vitória”, G1 Espírito Santo, 9 de maio, 2015. Clique aqui para acessar.

24. Eugênio Bucci, A superindústria do imaginário, 2021; Byung-Chul Han, Sociedade da transparência, 2017a.

25. John Frame, A doutrina da vida cristã, 2013, p. 479.

26. Justin Tosi; Brandon Warmke, Virtuosismo moral, 2021.

27. Dallas Willard, A gentileza que cativa, 2018, p. 14.

28. Deyoung, 2020, p. 82.

29. Ryken, 2014, p. 89.

30. Hartmut Rosa, Alienação e aceleração, 2022, p. 9.

31. Hannah Arendt, A condição humana, 2020, nota 85, pg 163.

32. Han, 2017b.

33. Byung-Chul Han, O desaparecimento dos rituais, 2021, p. 76.

34. Han, 2023, p. 153

35. Albert Borgmann, technology and the character of contemporary life, 1988, cap. 23.

36. Wirzba, 2023, p. 187.

37. Jochem Douma, Os dez mandamentos, 2019, p. 205.

38. Ver, por exemplo, o impressionante trabalho precursor da história da família: Philippe Ariès, História social da criança e da família, 2021.

39. Jeremy Greenwood, Evolving househulds, 2018.

40. Andy Crouch, Sabedoria digital para a família, 2021, pgs. 18-19; Alessandra Borelli, Crianças e adolescents no mundo digital, 2022, prefácio; Desmugert, 2021.

41. Frame, 2013, p. 651.

42. Jeff Mcmahan, The ethics of killing, 2002, p. 189.

43. O tema do aborto, tão importante nos dias de hoje, não será tratado aqui por questões de espaço e por estarmos nos focando na relação entre mandamentos e smartphones.

44. Fisher, 2023.

45. Deyoung, 2020, p. 130.

46. Pamela Paul, Pornificados, 2006; Han, 2017a, p. 59.

47. Paul, 2006, p. 89-90.

49. Riken, 2014, p. 143.

51. Evgeny Morozov, Big tech, 2018.

52. A lei geral de proteção de dados pessoais (LGPD) brasileira, na esteira da lei européia, é exemplo disso. Clique aqui para acessar o documento da lei brasileiraE clique aqui para acessar o documento da lei europeia.

53. Luciano Floridi, The 4th revolution, 2014, capítulo “Privacy”.

54. Ibidem, p. 50-52.

55. Douma, 2019, p. 362.

56. Ibidem, p. 363.

57. Deyoung, 2020, p. 161.

58. Fisher, 2023.  

59. Alter, 2018.     

60. Veja o documentário: Depois da verdade: desinformação e o custo das fake news, direção: Andre Rossi, HBO, 2020.

61. Capler, 2021, veja especialmente o cap. 6, “enfrentando a violência digital”.

62. Fisher, 2023. O autor relata diversos casos individuais e de regionais, inclusive tratando das eleições dos EUAe do brasil. 

63. Hans Ulrich Reifler, A ética dos dez mandamentos, 2019, p. 231.

64. Douma, 2019, p. 392.

65. Ibidem, p. 394.

66. Helena Wenninger; Christy Cheung; Michal Chmielinski, “Understanding envy and users’ responses to envy in the context of social networking sites: A literature review”, in: International Journal of Information Management, vol. 58, 2021.

67. Douma, 2019, p. 400.

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