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ARTIGO

A Bíblia, a complexa realidade do mundo e a verdade

André Reinke|

12/10/2023

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André Reinke

É bacharel em Desenho Industrial (habilitação em Programação Visual) pela UFSM, licenciado em História pela UFRGS, mestre e doutor em teologia (concentração em História das Teologias e Religiões) pela Faculdades EST. Vencedor do prêmio CAPES de melhor tese de doutorado em Teologia e Ciências da Religião de 2023. Autor dos livros “Os outros da Bíblia”, “Aqueles da Bíblia”, “Nós e a Bíblia” e “Atlas bíblico ilustrado”.

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Como citar

Reinke, André Daniel. A Bíblia, a complexa realidade do mundo e a verdade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A Bíblia é um livro assombroso. Como Northrop Frye (1912-1991) afirmou, a Bíblia é o “grande código da arte”, o fundamento sobre o qual boa parte da literatura inglesa – e eu diria, ocidental – construiu sua inspiração.¹ Quando lemos grandes autores como Milton, Melville ou Dostoiévski, percebemos o quanto as referências bíblicas pululam em seus textos. Elas simplesmente forjaram o imaginário ocidental. A Bíblia apresenta uma imensa reserva de símbolos e metáforas, fornecendo um potencial de sentidos a serem ressignificados, o que fertilizou culturas ao longo de milênios.

A Bíblia nos deixa deslumbrados, mas ao mesmo tempo transtornados. Ela não se deixa domar. Seus diferentes pontos de vista às vezes chegam à contradição. Como compreender Davi sendo incitado por Deus em um texto (2Samuel 24:1) e por Satanás em outro (1Crônicas 21:1)? Devemos responder ao insensato ou silenciar diante de sua estultícia (Provérbios 26:4-5)? Mesmo  os detalhes da vida, morte e ressurreição de Cristo são difíceis de esclarecer em função do desinteresse dos evangelistas em conciliarem suas narrativas.

Por que os autores bíblicos não ajustaram suas perspectivas ou mesmo suas teologias?

A Bíblia como testemunho

Aprendemos com Gerhard von Rad (1901-1971) que a história de Israel é contada de maneira confessional. Os autores bíblicos se envolveram apaixonadamente nos acontecimentos que narraram. Israel nunca falou impassivelmente de sua história, mas expressou entusiasticamente sua “glorificação e seu arrependimento”. Trata-se, portanto, de um querigma, um anúncio em uma história da salvação, produto de um texto evidentemente teológico, com o importante detalhe de que suas experiências com o sagrado foram vividas historicamente. O problema é que, para nosso desconforto, tais acontecimentos estão inacessíveis à crítica histórica.²

Rad nota a importância do fato histórico na tradição redacional da Bíblia: não há nenhuma “teologia sistemática” organizando o conteúdo bíblico, nenhum “logos” unificando seu pensamento; são os acontecimentos que ditam a reflexão teológica.³ Deus interveio em atos de salvação ou de julgamento, depois Israel refletiu sobre o ocorrido até fixar sua compreensão em textos. Por isso, as narrativas das destruições de Israel e de Judá nas invasões assíria e babilônica apresentam tal drama como resultado do julgamento de Deus (Isaías 10:5-6). Para os autores bíblicos, Deus castigou Israel pela mão dos assírios (2Reis 17:20) e Judá por meio de Nabucodonosor (Jeremias 32:28-31).

Assim, os redatores bíblicos registraram sua história explicitamente como interpretação do passado. Interpretação esta que não foi unificada em uma única linha teológica. Walter Brueggemann (1933-) nos chama a atenção para o fato de que a Bíblia apresenta um testemunho dos antigos judaítas sobre o que Deus falou a Israel. Mas esse testemunho aconteceu de maneira absolutamente variada, razão pela qual Brueggemann toma a metáfora do julgamento. Para ele, a Bíblia é uma espécie de tribunal que coloca em pauta diferentes testemunhas relatando aquilo que viram e experimentaram de Deus.

O que é curioso – e belo! – a respeito de tais testemunhos é que não foram iguais. Pelo contrário. A Bíblia é um tribunal que permitiu diferentes vozes. Escravos ou reis, pobres ou ricos, todos emitiram seu parecer. Como não ficar transtornado com os poetas do saltério, ora louvando a salvação de Deus (Salmos 18), ora lamentando a rejeição divina (Salmos 88)? Experimente ler Provérbios e Eclesiastes na sequência e perceba espíritos totalmente distintos. A Bíblia não censura. É um livro polifônico, “feito em mutirão”.

A Bíblia é um tribunal que permitiu diferentes vozes. Escravos ou reis, pobres ou ricos, todos emitiram seu parecer.

O realismo das narrativas bíblicas

“Nada faz sentido”, diz o Mestre (Eclesiastes 1:2). O mundo e nossa existência é um imenso caos, cujo sentido não pode ser apreendido diretamente. Como Paul Ricoeur (1913-2005) afirma, a especulação filosófica sobre o tempo é uma “ruminação inconclusiva” cuja única resposta é a atividade narrativa.⁶ Organizamos o caos da existência por meio de narrativas: o psicólogo nos conduz a reorganizarmos nossas histórias para dar sentido a quem somos; os historiadores fazem o mesmo em nível coletivo. Por isso, Ricoeur explica, a pergunta “quem é você” se responde com uma narrativa, contando a história de uma vida.⁷ Nossas identidades são narrativas.

O humano é um ser hermenêutico. Compreendido isso, é notável que Deus tenha manifestado sua Palavra especialmente por meio de narrativas. A Bíblia cristã, em si, é uma imensa intriga da história humana, pois ela começa com o Grande Começo no Gênesis e conclui com o Fim da História no Apocalipse, como bem nota Ricoeur.⁸ Apesar de haver gêneros literários distintos na Bíblia, como o poético, o sapiencial ou o profético, a narrativa tem lugar especial. Até mesmo textos legislativos são narrados: Moisés subiu ao Sinai para receber o Decálogo em meio a trovões, fogo e relâmpagos (Êxodo 19 e 20).

Entretanto, os autores bíblicos criaram uma forma narrativa inovadora. Segundo análise de Erich Auerbach (1892-1957), o texto bíblico é intencionalmente lacunar, não trazendo detalhes supérfluos, tampouco revelando a intencionalidade dos personagens ou as razões profundas dos temas propostos. Em outras palavras, as narrativas bíblicas apresentam vazios para produzir constante tensão, exigindo de seus leitores a interpretação tanto da essência de Deus como da atitude da pessoa envolvida na trama.⁹ Como leitores, somos convocados a lidar com as ambiguidades da Bíblia.

Por isso, Robert Alter (1935-) defende que a melhor rubrica para classificar o texto bíblico é a prosa de ficção, ou uma prosa de ficção historicizada.¹⁰ É no seu estilo literário lacunar, típico da escrita ficcional, que está a estratégia narrativa para apresentar a realidade da existência humana. A Bíblia se abre intencionalmente à indeterminação. Por isso, Alter afirma:

A escrita bíblica recusa a circularidade estável do mundo mitológico e se abre à indeterminação, às variedades causais, às ambiguidades de uma ficção elaborada para se aproximar das incertezas da vida na história.¹¹

As narrativas bíblicas são indeterminadas e ambíguas, e parecem não se importar com as regras formais que separam a escrita histórica da ficcional, porque refletem justamente a incerteza da vida. Somos reiteradamente chamados a interpretar. Seus personagens são absolutamente realistas justamente na sua ambiguidade. São homens e mulheres sujeitos à desgraça, sofrendo a dor da perda ou do pecado – mas ainda assim portadores da vontade divina. Os personagens bíblicos são forjados em momentos de desespero e abandono, fazendo aparecer mudanças, evoluções e involuções que refletem a condição humana. Por isso, mesmo que determinadas narrativas possam ser consideradas lendas (como Jó), ou sejam explicitamente ficcionais (como as parábolas de Jesus), a Bíblia sempre se ocupa do acontecer humano.¹²

Percebemos tal realismo ao analisar a forma como a Bíblia apresenta figuras importantes como Abraão e Davi. Ambos são retratados por longos períodos de suas vidas, envelhecem e são amassados pelo devir – e por Deus. Forjados em momentos de desespero, respondem de maneiras peculiares às suas contingências. Abraão envelhece e confia: entrega a um empregado a busca de uma esposa para seu filho, deixando nas mãos de Deus o destino de sua descendência. Davi envelhece e desconfia: o final de sua vida é palco de intrigas, tentativas de golpe e transmissão do reino por meio de uma maracutaia palaciana. A Bíblia não poupa nem seus heróis no compromisso com a verdade.

A Bíblia não poupa nem seus heróis no compromisso com a verdade.

A Bíblia e a verdade

A verdade está no coração das narrativas bíblicas, mesmo quando seus autores elaboram ficções. Aparentes contradições, tensões ou reticências aparecem (explicitamente ou nas entrelinhas) porque a realidade é assim – ambígua, tensionada, de difícil apreensão. A complexidade do mundo e das relações humanas nos afligem, pois aspiramos ao controle. E quando refletimos sobre o divino, a dificuldade aumenta ainda mais. Deus é infinitamente maior do que pode ser descrito ou mesmo imaginado – inclusive pela Bíblia. Faltam palavras ao humano para falar de Deus.

Interpretar o mundo e nosso Deus é uma constante busca pela verdade. Entretanto, temos um sério problema: somos seres falhos, criaturas capazes de apreender a realidade apenas até certo ponto. Como chegar a ela? Para Ricoeur, existe uma verdade absoluta e imutável, mas não conseguimos acessá-la diretamente. Podemos ver apenas uma parte do todo, razão pela qual nunca poderemos discernir a verdade absoluta, mas apenas uma “verdade presumida”.¹³ Tal condição nos torna permanentes garimpeiros da verdade.

Voltemos ao Deus apresentado pela Bíblia, nossa fonte revelada. Por incrível que pareça, embora o grande tema de qualquer teologia seja Deus, os textos bíblicos não oferecem uma “oferta coerente e completa de Deus (e nunca pretende fazê-lo)”, como afirma Brueggemann ao tratar do Antigo Testamento. Disso deduzimos que o Grande Sujeito da Bíblia não pode ser contido em nenhuma categoria preconcebida.¹⁴ Deus não pode ser compreendido ou representado por uma única palavra, um único símbolo ou uma única metáfora. Por isso, a Bíblia nos oferece um mosaico, no qual muitas imagens compõem, juntas, um quadro muito maior.¹⁵

Esse quadro amplo, segundo apontam os autores do Novo Testamento, é Jesus. A grande pintura da Bíblia está no Messias de Nazaré.¹⁶ As afirmativas de Jesus tratam disso. Ele usa as metáforas para falar de si: é o caminho, a verdade e a vida (João 14:6). Jesus não nos entregou proposições sobre a verdade, mas nos convidou a um relacionamento com o Filho de Deus. Quem o vê, vê o pai (João 14:9).

A grande pintura da Bíblia está no Messias de Nazaré. As afirmativas de Jesus tratam disso. Ele usa as metáforas para falar de si: é o caminho, a verdade e a vida (João 14:6).

Não teremos respostas fáceis para as aparentes contradições da Bíblia. A racionalidade, por si apenas, não nos trará resposta final à verdade do mundo, aos dilemas hermenêuticos, tampouco aos existenciais. Jesus nos convida a tomar sua mão em confiança, sair do frágil barquinho das nossas certezas e caminhar sobre águas revoltosas.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Northrop Frye, O Código dos Códigos: a Bíblia e a literatura, 2004, p. 15.

2. Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, 2006, p. 109-110.

3. Rad, 2006, p. 117.

4. Walter Brueggemann, Teologia do Antigo Testamento, 2014, p. 175-180.

5. Gottgried Brakemeier, A autoridade da Bíblia: controvérsias – significado – fundamento, 2003, p. 14.

6. Paul Ricoeur, Tempo e narrativa: a intriga e a narrativa histórica (volume 1), 2010, p. 16.

7. Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa: o tempo narrado (volume 3), 2010, p. 418.

8. Paul Ricoeur, Tempo e Narrativa: a configuração do tempo na narrativa de ficção (volume 2), 2010, p. 38-39.

9. Erich Auerbach, Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental, 1971, p. 12.

10. Robert Alter, A arte da narrativa bíblica, 2007, 38.

11. Alter, 2007, p. 50.

12. Auerbach, 1971, p. 14-17.

13. Ricoeur, v. 3, 2010, p. 387.

14. Brueggemann, 2014, p. 175.

15. Marcos Botelho, Mosaico Bíblico: uma introdução à hermenêutica e ao modo de pensar dos autores bíblicos, 2023, p. 102-104.

16. Botelho, 2023, p. 105.

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