QUEM SOMOS

ARTIGO

Quem é o ser humano?

Antropologia no limite da normatividade

Alexander Stahlhoefer|

15/12/2023

Screenshot 2023-12-14 at 12.52.24

Alexander Stahlhoefer

Doutor em Teologia pela Friedrich-Alexander Universität Erlangen-Nürnberg, Alemanha. Professor de história da igreja e ética na Faculdade Luterana de Teologia em São Bento do Sul/SC.

Baixe e compartilhe:

Como citar

Stahlhoefer, Alexander B.. Quem é o ser humano? Antropologia no limite da normatividade. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

A antropologia desempenha um papel crucial na teologia e na filosofia política, porém, a antropologia não recebe o mesmo espaço normativo. Na busca por uma neutralidade que promova um ideal liberal, a definição do ser humano parece ser evitada na filosofia. Sendo assim, este artigo critica as concepções de justiça distributiva¹ de John Rawls e Martha Nussbaum, destacando questões antropológicas subjacentes e a consideração insuficiente desses temas em suas teorias. Isso resulta em um reducionismo metodológico que dificulta a aceitação e aplicação dessas teorias em sociedades onde o paradigma liberal do ser humano não é predominante. Aqui, argumento que a discussão explícita sobre pressupostos antropológicos é crucial para teorias que buscam ser plausíveis em ambientes interculturais.

Na busca por uma neutralidade que promova um ideal liberal, a definição do ser humano parece ser evitada na filosofia.

A Teoria da Justiça de John Rawls e a sociedade como sujeito da justiça

O filósofo de Harvard, John Rawls, publicou em 1971 “Uma teoria da justiça”,² uma obra seminal na filosofia política. Sua teoria propõe que uma sociedade bem ordenada seria justa se três condições fossem atendidas: (a) todos tivessem acesso ao maior número possível de liberdades; (b) as posições sociais estivessem em igualdade de oportunidades; e (c) as desigualdades sociais fossem justificáveis apenas quando beneficiassem os menos favorecidos.³

As discussões em torno da teoria de Rawls abrangem desde posições libertárias até o comunitarismo, não apenas em virtude da discordância com os princípios de justiça, mas especialmente por sua fundamentação teórica. Rawls argumenta que a definição do ser humano deve ser secundária; suas teorias de justiça focam na sociedade, não nos indivíduos que a compõem. Para Rawls, as concepções sobre o ser humano seriam mediadas por posições filosóficas, políticas e religiosas. Ele propõe que, para postular princípios de justiça universalmente válidos, é necessário um ponto de partida neutro, fundamentado em um raciocínio lógico, sendo este raciocínio, porém, baseado na pressuposição de uma capacidade racional que é a base do seu sistema moral. Rawls propôs que um sistema justo parte de uma posição inicial de igualdade, recorrendo a uma forma rebuscada de argumentar que o contrato social de Hobbes, Rousseau e Kant pudesse ganhar nova força a partir de uma releitura analítica.

Apesar das críticas, Rawls mantém a ideia de evitar uma definição explícita do ser humano, argumentando que isso impediria a construção de princípios de justiça universais. Críticos, como os comunitaristas, apontam que a teoria de Rawls, embora negue, está fundamentada em uma concepção particular do bem, refletindo uma compreensão específica do ser humano.

Charles Taylor destaca corretamente que a teoria de Rawls implicitamente concebe um cidadão ideal como alguém livre, igual, racional e bem-instruído em economia, psicologia social e teoria política.⁴ A antropologia implícita de Rawls retrata um homo oeconomicus evoluído e moralmente preocupado com desigualdades socioeconômicas.

A antropologia implícita de Rawls retrata um homo oeconomicus evoluído e moralmente preocupado com desigualdades socioeconômicas.

Martha Nussbaum e as capacitações

O problema mencionado anteriormente não é exclusivo de Rawls. A abordagem das capacitações, que teoricamente deveria superar essa dificuldade, também falha em sua pretensa neutralidade. Martha Nussbaum propõe uma visão de cosmopolitismo como uma forma de contornar o desafio das concepções inerentes de bem nas teorias de justiça.⁵ Para ela, é necessário assumir uma concepção de bem que seja comum e culturalmente abrangente.

é necessário assumir uma concepção de bem que seja comum e culturalmente abrangente.

Nussbaum consegue demonstrar, em alguns estudos de caso interculturais, que sua teoria pode ser amplamente aceita e aplicável em contextos diversos. Ela compartilha o pressuposto de Amartya Sen,⁶ filósofo indiano que originalmente propôs a  abordagem das capacitações. Para Sen, a justiça não se resume a liberdades e direitos iguais, uma vez que injustiças naturais e sociais impedem que as pessoas atinjam seus objetivos. Portanto, há a necessidade de que estruturas sociais ofereçam condições para que os indivíduos possam realizar suas capacidades de acordo com suas liberdades. Sen construiu sua argumentação demonstrando que os paradigmas filosóficos da Índia também abordam questões de justiça, não se limitando apenas às categorias greco-romanas que são mais familiares a nós. A abordagem das capacitações de Sen e Nussbaum oferece uma leitura intercultural do problema da justiça e uma possível resposta “glocal” para o problema.

Entretanto, Nussbaum enfrenta o mesmo problema que Rawls. Há um ideal de pessoa não declarado na base de sua teoria, o que compromete a neutralidade anunciada. A abordagem das capacitações de Nussbaum busca criar mecanismos na sociedade para que uma vida humana possa ser vivida de maneira digna, o que é, sem dúvida, desejável. No entanto, a especificação do que constitui uma vida digna está vinculada a uma lista de capacitações humanas. A lista de capacitações de Martha Nussbaum engloba a busca por uma vida plena, acesso à saúde, integridade física, a capacidade de usar os sentidos e pensar, além do desenvolvimento emocional, razão prática, conexões sociais, respeito à natureza, a oportunidade de brincar e influenciar ativamente o ambiente político e material. Essa dignidade só é alcançada dentro de um conjunto mínimo de capacitações. Então, qual é o fundamento dessa lista?

Uma análise mais ampla dos referenciais que serviram de fundamento para a lista de Nussbaum nos remete a Aristóteles, Cícero e aos Direitos Humanos modernos.⁷ Novamente, estamos na tradição ocidental do Iluminismo. A concepção de ser humano de Nussbaum se assemelha a um humanista filantrópico ocidental, educado e bem informado sobre os problemas globais.

Desafios para a neutralidade

Os exemplos retirados das discussões sobre justiça social revelam o desafio da pressuposição e da crença em neutralidade na filosofia política. Como mencionado anteriormente, uma concepção normativa de justiça deve ser clara e razoavelmente fundamentada para ser amplamente reconhecida e seguida, visando alcançar uma sociedade estável.

Rawls e Nussbaum adotam abordagens distintas para justificar suas posições e alcançar o objetivo de reduzir desigualdades sociais e estabelecer uma sociedade bem ordenada com direitos comuns para todos. Rawls coloca o direito acima do bem para evitar depender fortemente de premissas robustas, mas isso arrisca enfraquecer sua persuasão diante de diversas concepções do bem e da humanidade. Nussbaum, ciente desse problema, delineia suas premissas desde o início, sustentando toda a sua teoria. Sua concepção de uma vida boa não é uma imposição, mas uma reivindicação, permitindo que cada pessoa viva conforme deseja. Apesar de buscar um amplo consenso, minha posição é de que a normatividade não pode se basear apenas na racionalidade, pois os valores não são neutros, sendo moldados por contextos históricos e culturais específicos.

Jonathan Haidt e Jesse Graham⁸ mostram que as ênfases no desenvolvimento moral são condicionadas pelo contexto. A concepção de Rawls pode ser consensual em culturas ocidentais esclarecidas, mas não é neutra. Nussbaum adapta seu enfoque para se adequar a diferentes culturas, embora sua pesquisa, assim como a de Rawls, esteja principalmente ancorada no legado cultural ocidental. A busca pela neutralidade é um ideal irrealizável; sendo assim, uma teoria pode ser consensual ao permitir outras posições e buscar respeitosamente um acordo, dialogando com diferentes sistemas de valores particulares.

Ambos, Rawls e Nussbaum, omitem uma discussão sobre pressupostos antropológicos ou o conceito de pessoa em suas teorias. Embora abordem o tema com cuidado, falando de uma teoria do bem e descrevendo o desenvolvimento moral, premissas e convicções implícitas inevitavelmente se revelam no trabalho científico. Mesmo que Rawls tenha abandonado suas convicções teológicas, às quais quase o levaram a se tornar clérigo episcopal, sua reflexão anterior sobre temas como pecado e comunidade permaneceu como uma estrutura de pensamento, evidenciando influências típicas de uma sociedade moldada pelo cristianismo.⁹ Jürgen Habermas, comentando a respeito da publicação póstuma de “On my Religion”, de Rawls, atesta que: “a visão biográfica dos primórdios da obra [de Rawls], postumamente revelada, oferece simultaneamente um exemplo destacado da tradução filosófica de motivos religiosos.”¹⁰ Questões importantes, como a igualdade das mulheres, também se tornaram elementos estruturais de seu pensamento a partir de experiências familiares. O mesmo se aplica a Nussbaum, cuja busca por justiça foi moldada por valores biográficos e vivências religiosas como judia liberal.

As premissas antropológicas não apenas justificam concepções do bem, conferindo força motivacional a uma teoria, mas também desempenham uma função sustentadora. Apesar das diversas imagens concorrentes do ser humano, encontrar um consenso que una tradições e convicções diversas é essencial para o convívio humano. A questão das concepções de humanidade na ética não pode ser ignorada, mas deve encontrar um lugar na formação teórica.

As premissas antropológicas não apenas justificam concepções do bem, conferindo força motivacional a uma teoria, mas também desempenham uma função sustentadora.

A função da teologia pública

Demonstrei que a consideração insuficiente de temas antropológicos nas concepções de justiça de Rawls e Nussbaum resultou em um reducionismo metodológico, dificultando a aceitação dessas teorias. Enquanto Rawls enfatiza uma visão mais racional-econômica do ser humano, Nussbaum destaca a idealização de uma boa vida humana.

Ao buscar a aplicabilidade dessas teorias em diferentes contextos, o objetivo não é combiná-las ou adicionar outras teorias não discutidas aqui para formular uma teoria abrangente. O cerne é perceber e respeitar as concepções de humanidade de diferentes sociedades e culturas. Em diferentes contextos, uma abordagem específica pode ser mais compreensível do que outras, e o contexto pode apresentar temas ou problemas não abordados.

Portanto, um debate teológico sobre esse tema é essencial. Nesse sentido, a teologia pública pode contribuir para o consenso social, partindo de uma concepção refletida de humanidade e enfatizando a interdependência entre antropologia e ética.¹¹ Para os cristãos evangélicos no Brasil, é crucial reconhecer a necessidade de explicitar, na reflexão bíblica e teológica sobre o ser humano, qual papel a antropologia desempenha no discurso ético. Isso estabelecerá condições e critérios para a aceitação de diferentes concepções de justiça distributiva que dialoguem com as diversas perspectivas presentes na sociedade e tenham potencial de serem aceitas e aplicadas nas comunidades cristãs evangélicas.

Nesse sentido, a teologia pública pode contribuir para o consenso social, partindo de uma concepção refletida de humanidade e enfatizando a interdependência entre antropologia e ética.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. A justiça distributiva não se restringe à distribuição de recursos econômicos. Seu conceito é mais amplo, englobando a distribuição social de direitos e deveres.

2. Tradução em português: John Rawls, Uma Teoria da Justiça, 2000.

3. Rawls, 2000, p. 64.

4. Charles Taylor, Die Motive einer Verfahrensethik, Moralität und Sittlichkeit: Das Problem Hegels und die Diskursethik, 1986.

5. Nussbaum resume sua posição de forma didática em: Martha C. Nussbaum, The Cosmopolitan Tradition: A noble but flawed ideal, 2019. A base teórica da sua teoria das capacitações pode ser encontrada em Martha C. Nussbaum, Fronteiras da Justiça: Deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie, 2013. 

6. Amartya Sen, Desenvolvimento como liberdade, 2018. Ver também: Amartya Sen, A ideia de Justiça, 2011.

7. Os primeiros trabalhos de Nussbaum são como especialista em estudos clássicos. Em sua análise das tragédias gregas, percebe-se os rudimentos da lista de capacitações, como se pode ver nos capítulos 9 a 12 de: Martha Crave Nussbaum, The Fragility of Goodness. Luck and Ethics in Greek Tragedy and Philosophy, 1986. A influência de Cícero é mais claramente percebida em: Martha C. Nussbaum, The Cosmopolitan Tradition: A noble but flawed ideal, 2019. Já a influência das teorias dos direitos humanos é refletida em Martha C. Nussbaum, Fronteiras da Justiça: Deficiência, nacionalidade, pertencimento à espécie, 2013.

8. Jesse Graham e Jonathan Haidt, “When Morality Opposes Justice: Conservatives Have Moral Intuitions that Liberals may not Recognize”, Social Justice Research, v. 20, n. 1, 2007.

9. Sobre a mudança de posição religiosa de Rawls, ver: John Rawls, A Brief Inquire into the Meaning of Sin and Faith: with “On my Religion”, 2009, p. 259ss.

10. John Rawls e Thomas Nagel (org.), Über Sünde, Glaube und Religion,  2010, p. 310.

11. Fiz esta provocação no fórum de missão da Igreja Evangélico-Luterana da Baviera em Neuendettelsau, Alemanha em 2015: Alexander B. Stahlhoefer, “Ist Luthers Theologie unpolitisch? Der Einfluss Lutherischen Kirchen in unsere Gesellschaften heute“, Vox Scripturae, v. 23, n. 2, 2015. A provocação encontra uma proposta refletida em minha tese de doutorado a ser publicada em breve em língua alemã e que contará também com uma adaptação para o português.

Outros artigos [n. 2]

20110318182437!V&A_-_Raphael,_St_Paul_Preaching_in_Athens_(1515) (1)
Screenshot 2023-12-08 at 09.25
pexels-cottonbro-studio-6153354
compare-fibre-tiSE_paTt0A-unsplash
James Webb Space Telescope
42646461524_5b16709ef7_k
Webb's_First_Deep_Field
Screenshot 2023-11-03 at 16.36
Cibernética e transumanismo
alexander-andrews-fsH1KjbdjE8-unsplash
O que é vida?
Søren <>
Subjetividade e verdade em Søren Kierkegaard

Junte-se à comunidade da revista Unus Mundus!