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ARTIGO

A Trilogia Cósmica de C.S. Lewis, uma ponte entre a astroteologia e a ficção científica

Marcio Antonio Campos|

10/11/2023

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Marcio Antonio Campos

Jornalista com graduação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalha na Gazeta do Povo (Curitiba-PR) desde 2004, e mantém no jornal a coluna Tubo de Ensaio – Ciência e Religião, a primeira do gênero em um grande jornal brasileiro. É autor de "A razão diante do enigma da existência" e coautor de “Bíblia e natureza: os dois livros de Deus – Reflexões sobre ciência e fé”.

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Como citar

Campos, Marcio Antonio. A Trilogia Cósmica de C.S. Lewis, uma ponte entre a astroteologia e a ficção científica. Unus Mundus, Belo Horizonte, n. 2, jul-dez, 2023.

Até onde sabemos, estamos sozinhos no universo. Nenhum sinal de vida fora do nosso planeta foi encontrado até o momento, a despeito de todos os esforços feitos nas últimas décadas. No entanto, como afirma Carl Sagan em O mundo assombrado pelos demônios, “ausência de evidência não é evidência de ausência”, e a possibilidade de que haja algum tipo de vida em outros planetas não pode ser rejeitada de imediato. Uma eventual descoberta de vida fora da Terra, além de ser um marco para as ciências, também colocaria uma série de desafios aos religiosos e, especialmente, aos teólogos. A “astroteologia” surge, neste cenário, como um campo de estudo em que ciência e religião interagem na busca de respostas às questões levantadas pela possibilidade de existência de vida — qualquer tipo de vida — alienígena.

Não é objetivo deste breve artigo analisar as possíveis implicações teológicas da descoberta de vida microbiana fora da Terra; embora elas sejam aparentemente mais “simples” de enfrentar, sua existência é inegável, a começar pelo fim da noção de “exclusividade” de nosso planeta como o único local a abrigar vida.¹ Aqui, pretendo “saltar uma fase” e tratar mais especificamente das grandes questões que surgiriam caso tivéssemos contato com uma civilização alienígena inteligente.

Uma eventual descoberta de vida fora da Terra, além de ser um marco para as ciências, também colocaria uma série de desafios aos religiosos e, especialmente, aos teólogos.

O astrônomo e padre católico argentino José Gabriel Funes, ex-diretor do Observatório Vaticano, em entrevista ao autor, concedida durante um congresso de ciência e religião em setembro de 2023, resumiu assim os principais desafios à teologia cristã caso fossem descobertas civilizações inteligentes em outros planetas:

Na prática, quais seriam os temas que nos desafiariam mais concretamente, que nos fariam pensar? O primeiro é a Encarnação. Há teólogos católicos de posições distintas: ou Deus se encarnou apenas nesta humanidade, nesta civilização, ou então houve múltiplas encarnações. O segundo é a Redenção, se houve uma redenção cósmica, se a realidade do pecado é própria apenas dos seres humanos ou se existiria em outra civilização inteligente.²

Questionado sobre quais seriam suas respostas a essas questões, Funes afirmou que, ao menos no que diz respeito à Encarnação, ele já chegou a uma conclusão:

Creio que não seria necessário haver múltiplas encarnações. Poderia oferecer uma resposta bem elaborada, mas darei a resposta breve. Quanto mais simples a explicação, mais elegante ela é. Entendo a Encarnação como um evento único na história do universo, que ocorreu uma única vez, no planeta Terra, há uns 2 mil anos. Deus se encarnou no ser humano Jesus Cristo. E, mediante essa encarnação – isso quem diz é o Concílio Vaticano II, é São João Paulo II na Redemptor Hominis –, Deus se uniu a toda a humanidade; não só a nós, que viemos depois da Encarnação do Verbo, mas também aos que viveram antes. E, se é assim, por que não imaginar que, neste evento único da Encarnação do Filho de Deus, Ele também possa ter se unido a qualquer outra raça ou espécie inteligente e capaz de relacionar-se com Deus?³

A resposta de Funes vai na direção contrária à defendida por Christian Weidemann, cujo trabalho foi descrito pelo teólogo Tiago Garros.⁴ Weidemann parte do “princípio da mediocridade” para afirmar que a doutrina calcedoniana da união hipostática — a união das duas naturezas, humana e divina, na pessoa de Jesus Cristo — seria incompatível com a existência de outras civilizações inteligentes fora da Terra.

As respostas da Trilogia Cósmica

C.S. Lewis nunca foi muito sutil nas analogias que empregava em suas obras de ficção, cujo teor apologético ele não fazia questão de esconder. Com a Trilogia Cósmica, protagonizada por Elwin Ransom, não foi diferente. Seus dois primeiros volumes, Além do planeta silencioso e Perelandra, trazem especulações astroteológicas com uma roupagem de ficção científica. Ainda que não fosse intenção explícita de Lewis apresentar suas respostas aos dois dilemas, o autor acaba deixando transparecer suas inclinações ao longo da narração.

Em um dos primeiros diálogos entre Ransom e a Dama Verde, no início de Perelandra, Lewis não chega ao ponto de afirmar taxativamente que Deus se encarnou apenas em nosso planeta, mas descreve a Encarnação como um evento ocorrido na Terra e cujo impacto se estende a todo o universo: 

Essa é uma das coisas que estão me confundindo disse Ransom. O fato de você não ser diferente. Você tem a mesma forma das mulheres de minha própria espécie. Eu não esperava por isso. Já estive em outro mundo além do meu. Mas as criaturas lá não são nem um pouco parecidas com você e comigo.

E por que isso o deixa confuso?

Não vejo por que mundos diferentes deveriam produzir criaturas semelhantes. Será que árvores diferentes dão frutos semelhantes?

Mas aquele outro mundo era mais velho que o seu disse ela.

Como você sabe? perguntou Ransom, perplexo.

Maleldil está me dizendo (…) Vejo as grandes criaturas peludas e os gigantes brancos… como é que você os chamava?… os sorns, e os rios azuis. Ah, que prazer enorme seria vê-los com meus olhos externos, tocar neles, e um prazer ainda maior porque já não há outros daquele tipo ainda por vir. É somente nos mundos antigos que eles ainda persistem.

Por quê? disse Ransom em um sussurro, levantando os olhos para ela.

Você deve saber disso melhor do que eu disse ela. Pois não foi em seu próprio mundo que isso aconteceu? (…) foi em seu mundo que Maleldil assumiu Ele próprio essa forma, a forma de sua espécie e da minha.

(…)

Ah, minha Dama, por que você diz que essas criaturas persistem apenas nos mundos antigos?

Você é assim tão jovem? – perguntou ela. Como elas poderiam voltar a surgir? Desde que nosso Amado se tornou homem, como a Razão poderia assumir outra forma em qualquer mundo? (…)”

Na sequência do mesmo diálogo entre Ransom e a Dama Verde, Lewis insinua uma resposta ao “princípio da mediocridade”:

(…) entre os tempos, há um tempo que vira uma esquina, e tudo do lado de cá é novo. Os tempos não voltam para trás.

E será que um mundo pequenino como o meu poderia ser a esquina?

Não entendo. Para nós, esquina não é um nome de tamanho.”

Em outras palavras, à pergunta “por que Deus escolheria um planeta como a Terra?”, Lewis responde simplesmente com outra pergunta: e por que não? Se por um lado “não há razão para crer que, havendo miríades de civilizações extraterrestres, elas sejam essencialmente diferentes de nós sob todos os aspectos, nem que os humanos na Terra ocupem lugar privilegiado perante Deus e todo o universo”,⁷ por outro lado também não haveria razão para descartar a priori que Deus tivesse escolhido, dentre inúmeros planetas e possíveis inúmeras civilizações, um planeta e uma civilização com a qual Ele interagisse de uma maneira única por meio da Encarnação de Seu Filho.

Já o dilema da redenção de uma civilização alienígena pecadora foi marginalmente tratado em Além do planeta misterioso. Vênus, ou Perelandra, é um mundo onde ainda nem há civilização propriamente dita, mas apenas um primeiro casal, e onde a Queda ainda não ocorreu. Já Marte, ou Malacandra, para onde Ransom viajou no primeiro livro, é um “mundo velho”, como diz a Dama Verde a Ransom, onde havia não uma, mas três civilizações inteligentes convivendo harmonicamente — aliás, os sorns ficaram surpresos com “o fato de termos apenas uma espécie de hnau [ser racional]”;⁸ Marcelo Gleiser tornaria a recíproca verdadeira.⁹

Em outras palavras, à pergunta “por que Deus escolheria um planeta como a Terra?”, Lewis responde simplesmente com outra pergunta: e por que não?

Na mesma conversa entre Ransom e os sorns, “eles ficaram espantados com o que Ransom tinha para lhes contar sobre a história humana — guerra, escravidão e prostituição”.¹⁰ Mas o espanto não se devia a alguma manutenção da inocência original. O diálogo do Oyarsa de Malacandra com Ransom e os antagonistas Weston e Devine deixa implícito que, antes da Redenção operada na Terra, o mal havia sido vencido em outros planetas por outros meios que não o sacrifício do Filho de Deus encarnado:

Muitos milhares de milhares de anos atrás, quando ainda não havia vida no seu planeta, a morte fria chegou à minha harandra. Naquela época, tive graves problemas, não pela morte dos meus hnau (Maleldil não lhes dá a capacidade de viver muito), mas principalmente pelas coisas que o senhor do seu mundo, que ainda não estava confinado, pôs na cabeça deles. Ele os teria transformado nisso que seu povo é agora: sábios suficiente para ver a aproximação da morte da espécie, mas não sábios suficiente para suportá-la. Decisões tortas logo teriam surgido entre eles. Eles tinham perfeita capacidade para fabricar espaçonaves. Através de mim, Maleldil os impediu. Alguns eu curei, outros descorporifiquei... (...) uma coisa nós deixamos para trás na harandra: o medo. E, com o medo, o assassinato e a rebelião.¹¹

Evidentemente, como afirma o atual diretor do Observatório Vaticano, Guy Consolmagno, a verdade é que não sabemos absolutamente nada quando se trata de vida extraterrestre inteligente. A essa altura, só o que existe é especulação — inclusive na astroteologia.¹² E se todas as hipóteses, das científicas às teológicas, estão na mesa, também a literatura pode dar sua contribuição, como fez Lewis em sua Trilogia Cósmica.

 

 

Os conteúdos das publicações da revista digital Unus Mundus são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, a visão da Academia ABC².

1. Tiago V. Garros, “O cristianismo está preparado para os ETs?”, Último andar, n. 29, 2016. Clique aqui para acessar.

2. Marcio Antonio Campos, “Ex-diretor do Observatório Vaticano fala sobre o fim do universo e vida inteligente fora da Terra”, Gazeta do Povo, 28 out 2023. Clique aqui para acessar.

3. Campos, 2023.

4. Garros, 2016.

5. C.S. Lewis, Perelandra, 2018, p. 74-76.

6. Idem, p. 76.

7. Garros, 2016, p. 165.

8. C.S. Lewis, Além do planeta misterioso, 2014, p. 139.

9. O astrofísico brasileiro acredita que duas espécies inteligentes não têm como conviver no mesmo planeta, pois uma inevitavelmente destruirá a outra. A não ser que “ambas tenham atingido um patamar moral extremamente elevado”. Marcelo Gleiser, O caldeirão azul, 2019, p. 102, 115-116.

10. Lewis, 2014, p. 139.

11. Ibidem, p. 190-191.

12. Guy Consolmagno, Vida inteligente no universo? A fé católica e a busca por vida extraterrestre inteligente,  2023, p. 58.

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